maio 12, 2006

A História da Copa do Mundo capítulo V - A Copa de 1950 e a Diagonal de Flávio Costa

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A EVOLUÇÃO TÁTICA - A DIAGONAL DE FLÁVIO COSTA

Até os anos 40 os times brasileiros ainda jogavam na formação da pirâmide (2-3-5), da década de 1880. Gentil Cardoso começou a implantar o WM no Bonsucesso, mas a tática não se popularizou, nem mesmo quando o húngaro Dori Krueschner aplicou-a no Flamengo. Os jogadores não conseguiam se adaptar ao esquema, principalmente aquele escalado para fazer o zagueiro central. Além disso o time se ressentia da ausência do vital centromédio atacante.
Atrasados taticamente e com o futebol argentino em grande fase, os times brasileiros costumavam ser presas fáceis para os portenhos. Numa excursão com um combinado Fla-Flu os técnicos Flávio Costa e Ondino Viera, cansados de sofrer goleadas, resolveram modificar o estilo de marcação e a disposição dos jogadores em campo e inauguraram definitivamente a era do WM no Brasil.
No entanto, foi necessária uma adaptação para o estilo brasileiro. O quadrado do meio-campo, com dois médios e dois meias, foi "entortado" um pouco, preservando o centromédio à frente da defesa e transformando-se praticamente num losango. A formação 3-2-2-3 típica transformava-se num 3-1-2-1-3. Este jogador à frente da zaga acabaria tendo funções cada vez mais defensivas e se transformaria no cabeça-de-área, enquanto outros países sul-americanos preservariam a tradição do volante ofensivo, e na Europa a marcação feita no meio-campo não teria a característica de proteção aos beques de área.

FIGURA 12 - (Atenção, não encontrei esquema da "diagonal". Posso fazer um desenho eu mesmo seguindo as descrições - algumas conflitantes - que li). FIGURA 12a (Mostrando a diferença entre um WM e um diagonal).

Para isso o vértice superior direito do "M", o médio direito, era empurrado para o baixo e toda a linha para a esquerda. O médio direito praticamente se transformava então num centromédio. O médio esquerdo passava a ter ao lado o meia-direita, recuado até o meio-campo, e o meia-esquerda transformava-se numa espécie de "número 1", jogando entre o meio-campo e ataque. Esta posição consagraria Ademir no Vasco e na Copa de 1950, pois aproveitaria ao máximo sua insuperável arrancada com a bola dominada.
Flávio Costa defenderia suas idéias num artigo na revista Cruzeiro, quando pela primeira vez na história usaria números para explicar as táticas, tais como 3-4-3 e 4-3-3. Nesse artigo ele dizia que o futebol moderno tolhia a improvisação e pregava que um time deveria defender bem para atacar ainda melhor, iniciando um desenvolvimento que acabaria levando ao revolucionário 4-2-4 de 1958.

FLÁVIO COSTA

Flávio Costa foi o primeiro "Professor". Brilhante, estudioso de teoria, de personalidade forte e autoritário, estava acima de qualquer discussão e dirigiria a seleção brasileira por mais de uma década, acabando por ficar marcado pela derrota de 1950.
Flávio Costa nasceu em 1906 e foi centromédio sem brilho, mais conhecido pela violência na marcação, que lhe valeu o apelido de "Alicate". Ao parar de jogar tornou-se assistente do técnico húngaro Dori Krueschner, que estava trazendo para o Flamengo as idéias mais novas surgidas no futebol mundial. Com a saída de Krueschner, Flávio assumiu o cargo e continuou aperfeiçoando as táticas do time rubro-negro, levando-o ao tricampeonato carioca.
Contratado pelo Vasco, assumindo uma equipe montada por Ondino Viera, transformou-o num esquadrão conhecido por "Expresso da Vitória", vencendo 4 dos 6 campeonatos estaduais seguintes e conquistando o Sul-americano de clubes, primeiro título do futebol brasileiro no exterior.
Flávio Costa criou a "diagonal", uma variação do WM que antecipava o 4-2-4, a primeira tática contemporânea, cuja origem pode ser traçada até um artigo que ele escreveu para a revista "Cruzeiro", em que pela primeira vez descreveu os esquemas de jogo da maneira que fazemos hoje, usando números e traços (4-2-4, 4-3-3, 4-4-2).
Flávio foi o treinador do Brasil na derrota para o Uruguai em 1950. Embora estigmatizado, continuou com alto prestígio nos clubes, mas a revolução tática a que dera início espalhava-se e ele deixou de ser figura de proa do desenvolvimento do futebol brasileiro. Autoritário e disciplinador, apressou o fim da carreira de Leônidas ao convocá-lo apenas para a reserva para a seleção, e suas brigas com Gérson levaram o jogador a abandonar o Flamengo.
Os últimos títulos de Flávio Costa foram em 1952, com o Vasco, e 1963, com o Flamengo, quando, além da briga com Gérson, pôs na reserva Dida, o maior goleador da história rubro-negra antes de Zico. Aposentou-se pouco depois, porque, como dizia, não tinha mais paciência para ser babá de jogadores. Morreu em 1999, aos 92 anos.

ZIZINHO

Depois de Friedenreich e Leônidas, o próximo brasileiro candidato ao título de melhor jogador do mundo foi Zizinho. Assim como acontece com o "Diamante Negro", há quem garanta que o "Mestre Ziza" era um jogador tão bom como Pelé, embora nunca tenha atingido a fama e a popularidade de Leônidas. Infelizmente Zizinho jogou antes do videotape e da transmissão dos jogos pela tevê, restando muito pouco de suas jogadas para serem conferidas.
Zizinho nasceu em 1921, filho de um dono de um time de São Gonçalo, então distrito de Niterói, no Rio de Janeiro. Recusado no América por ser baixo e ter pernas grossas, foi tentar a sorte no Flamengo em 1939. Flávio Costa deixou-o entrar e disse "você tem 10 minutos para mostrar o que sabe". E ele mostrou.
Zizinho gostava de entrar em ziguezague pelas defesas adversárias. Tinha drible fácil e excelente visão de jogo e era excelente finalizador, principalmente nas cabeçadas. Participou da campanha do tricampeonato rubro-negro de 1942/43/44, mas foi ofuscado como estrela do time primeiro por Leônidas e depois por Domingos da Guia. Os anos seguintes marcariam a ascensão do Vasco e da popularidade de Ademir. Ainda assim Zizinho era um armador respeitado por ser um jogador completo, capaz de atacar e defender.
O grande momento de Zizinho foi na Copa de 1950, quando foi descrito pelo jornal milanês Gazzetta dello Sport como um Leonardo da Vinci, "criando obras de arte com seus pés na imensa tela do Maracanã". Foi a partir de sua volta ao time, após uma contusão, que o Brasil disparou a vencer e aplicou as históricas goleadas de 7 x 1 sobre a Suécia e 6 x 1 sobre a Espanha.
Mas não houve goleada contra o Uruguai. A derrota na final marcou todos os jogadores e Zizinho não foi exceção. O Flamengo, que se recusara a vendê-lo para o Coríntians por 3 milhões cedeu-o para o Bangu por menos de 500 mil. Jogando num time com pouca torcida, mesmo exibindo seu futebol de sempre não foi chamado para a Copa de 1954. Transferiu-se para o São Paulo em 1957 e foi mais uma vez campeão estadual, mas ao não ser convocado para a Copa de 1958, resolveu encerrar a carreira. Contratado para ser o técnico do time Ajax Italiano, acabou atuando como jogador por mais dois anos.
Zizinho faleceu em 2002, aos 80 anos. Suas outras paixões eram o samba e o basquete. Até sua morte, em todas as vésperas de 16 de julho tirava o telefone do gancho, para não ter que passar o dia explicando como o Brasil perdeu aquele jogo para o Uruguai.


A COPA DE 1950 - O SONHO NÃO ACABOU, NA VERDADE ESTAVA APENAS COMEÇANDO

A II Guerra Mundial, de 1939 a 1945, interrompeu a Copa. O Brasil havia apresentado sua candidatura para 1942, disputando com a Alemanha. Jules Rimet passou aqui no primeiro semestre de 1939 e encantou-se com a terra. Mas em 1o. de setembro, antes que pudesse viajar para a Alemanha para conhecer a infra-estrutura do país, estourou o conflito. Rimet levou a FIFA para a Suíça, para evitar que os nazistas a encampassem quando invadiram a França, e até hoje a sede da organização lá permanece.
Em 1948 nenhum país europeu estava interessado em organizar o torneio. O Brasil, durante a guerra, ficara sem poder importar todos os produtos que vinham da Europa e, sem opção, começou a produzi-los aqui mesmo. Além do mais, com toda a destruição dos combates, os europeus passaram a ter que comprar quantidade bem maior de alimentos e minérios para sua indústria, que os brasileiros tinham para vender. Como consequência, ao fim do conflito o Brasil tinha liquidado sua dívida externa, estava com dinheiro sobrando e começara definitivamente a se tornar uma nação industrializada. E para mostrar essa pujança toda para o mundo, nada melhor do que hospedar - e ganhar - uma Copa.
Sem outros candidatos disponíveis, a FIFA deu ao Brasil o direito de sediar o campeonato. Em um ano foi construído o maior estádio do mundo. Na verdade levou menos de um ano e foi tão rápida a construção que muita gente não foi ver a Copa porque tinha certeza de que aquilo iria cair. Ele não caiu em sua inauguração em 16 de junho de 1950. O mundo é que cairia exatamente um mês depois.

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A construção do Maracanã foi tão grandiosa e apressada que quantidades imensas de pastilhas azuis para o revestimento do estádio sobraram nos canteiros de obras. Elas acabaram sendo roubadas e, a partir da década de 1950 até hoje, começou uma tradição nos subúrbios cariocas de casas revestidas com pastilhas.

Os brasileiros sugeriram à FIFA uma mudança no regulamento. Em vez de jogos eliminatórios, a Copa de 1950 teria apenas jogos classificatórios. Ou seja, os participantes seriam distribuídos em 4 grupos. Os vencedores de cada chave jogariam todos entre si e quem fizesse mais pontos nessa fase seria o campeão. Os europeus estranharam, mas acabaram aceitando. Não que eles viessem em grande quantidade. A maioria estava ocupada reformando a casa depois da passagem do furacão Hitler. Os argentinos, então em grande fase, não vieram porque o último Brasil x Argentina em 1946 tinha acabado numa pancadaria tão grande que eles temiam o que pudessem fazer aos seus jogadores. Mas, grande novidade, a Inglaterra, que depois da guerra bem que estava precisando dar uma arejada, iria pela primeira vez mandar seu time. E o mundo inteiro pôde ver que aqueles anos todos trancados em casa não tinham feito bem à seleção inglesa.
Numa das maiores zebras da história das Copas, os ingleses perderam para os Estados Unidos por 1 x 0. O time dos americanos era composto de imigrantes e seus descendentes e nenhum deles era profissional. Tão convictos estavam de sua derrota que passaram a véspera do jogo se encachaçando numa visita a uma fazenda, achando que não faria diferença se ficassem em casa descansando. Mas acabaram ganhando, motivando uma famosa manchete do Times: "Morreu e foi sepultada ontem num campo da distante Belo Horizonte a outrora respeitável seleção inglesa". Os britânicos perderam também para a Espanha, que venceu a chave.
O Brasil estreou contra o México e, apesar de ganhar por 4 x 0, não convenceu. O jogo seguinte seria em São Paulo e Flávio Costa, para agradar, escalou um time com mais paulistas. A "diagonal" do Professor troumbou de frente com o "Ferrolho" suíço e a partida foi um sufoco, acabando em 2 x 2. Precisando vencer, de novo no Rio e com a volta de Zizinho, Flávio descartou seu esquema. Voltou ao WM clássico e finalmente a seleção agradou, vencendo sua chave com uma vitória de 2 x 0 sobre a boa equipe da Iugoslávia, gols de Ademir e do Mestre Ziza.
Os outros grupos não tinham quatro times, por falta de competidores. Num deles a Suécia desclassificou Itália e Paraguai. O outro só tinha Uruguai e Bolívia, por causa do sorteio. A sorte começava a pender para os uruguaios. Eles não tiveram nenhum trabalho para fazer 8 x 0 nos bolivianos e se mandarem para a segunda fase.

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A Copa de 1950 foi a primeira em que os jogadores passaram a usar números atrás da camisa para facilitar a identificação.

A SEGUNDA FASE

Para os uruguaios deve ter parecido um daqueles exageradíssimos dramalhões, com final feliz inacreditável e tudo. Infelizmente para nós alguém tinha que ser escalado para ser o vilão todo-poderoso e pusilânime. E para fazer bem esse papel, deveríamos primeiro mostrar-nos invencíveis. Foi o que fizemos.
Contra a Suécia o Brasil fez inacreditáveis 7 x 1, a maior goleada brasileira em Copas até hoje. Ademir marcou quatro vezes, igualando a marca de Leônidas contra a Polônia. E sem prorrogação. Os próximos adversários, os espanhóis, provavelmente tinham espiões assistindo ao jogo, perceberam como o artilheiro jogava e devem ter feito algum esquema especial para marcá-lo, já que ele passou em branco na partida. Infelizmente para eles o resto do ataque fez seis gols. Final, 6 x 1, comprovando o que a maioria dos analistas dizia antes do jogo, que não iria ser a moleza que tivéramos contra os suecos. O Maracanã inteiro começou a cantar espontaneamente a marchinha "Touradas em Madri", de Braguinha, um sucesso da época. Os brasileiros mostravam seu lado todo-poderoso.
Foi depois dessas exibições que a imprensa mundial se encantou com o Brasil, com seu estilo ofensivo e vibrante, chegando a comparar Zizinho, o maestro da equipe, a Leonardo da Vinci, pintando com seus pés obras de arte na imensa tela que era o Maracanã. Nos outros jogos o Uruguai empatara com a Suécia (2 x 2) e vencera com dificuldades a Espanha por 3 x 2. Os suecos se despediram com uma vitória de 3 x 1 sobre os espanhóis. O jogo decisivo seria Brasil x Uruguai e os brasileiros tinham a vantagem do empate. Tudo e todos estavam contra os uruguaios.
Os jogadores da seleção brasileira, até então hospedados no longínquo Joá, para terem tranquilidade, foram transferidos para o estádio do Vasco, bem mais perto do centro da cidade. Durante toda a noite anterior ao jogo, políticos em busca de promoção, aproveitadores, bajuladores, jornalistas e torcedores acorreram a São Januário. O jornal A Noite estampou de véspera a manchete "Estes são os campeões do mundo", sob uma foto do time. Depois de sua aparente onipotência, os brasileiros mostravam sua pusilanimidade. Os vilões perfeitos. Ninguém lembrava que dois meses e meio antes, no Pacaembu, o Uruguai vencera o Brasil por 4 x 3.
Antes da decisão os jogadores foram levados por Flávio Costa para assistir a uma missa. Ficaram inexplicavelmente de pé por duas horas. No estádio as roletas foram quebradas. O público presente era muito maior do que os 173.850 pagantes. O Maracanã resistiu. A seleção brasileira não.

16 DE JULHO DE 1950 - O DIA EM QUE O MUNDO ACABOU

O primeiro tempo transcorreu sem gols. Tudo bem, a vantagem do empate era da gente. E os uruguaios correram atrás o tempo todo. Cederam 19 escanteios. Era só uma questão de tempo. O que ficou provado logo no primeiro minuto do segundo tempo, quando Friaça abriu o escore. Agora o Uruguai precisava de dois gols. Teria que partir para a frente e se abriria aos contra-ataques do Brasil.
Mas os contra-ataques não saíram. Talvez a equipe já se sentisse vitoriosa e tivesse se desconcentrado da partida. Não pensava mais no que estava ocorrendo em campo e assim não tinha mais o mesmo entusiasmo para correr. No segundo tempo de um jogo o corpo já está cansado e é preciso motivação para fazê-lo continuar correndo. Se o atleta não estiver concentrado no que está fazendo faltam-lhe pernas.
Não era o caso do Uruguai. Nas duas partidas anteriores o time saíra atrás e fora buscar o resultado, o que mostrava que os atletas estavam altamente motivados e em excelente forma. Quando um time vira seguidamente os jogos no final significa duas coisas: ou seus jogadores têm uma técnica superior que prevalece quando os adversários estão cansados demais para marcá-los ou têm um preparo físico muito melhor, que lhes permite continuar correndo quando os oponentes estão exaustos. Os uruguaios se encaixavam nos dois casos. Tinham defensores dedicados e atacantes velozes e habilidosos. E foi com um deles que começou a tragédia brasileira.
Ghiggia, o ponta-direita da Celeste, que havia marcado gols nos três jogos anteriores, chegou em velocidade à linha de fundo dentro da área e cruzou para Schiaffino marcar, aos 22 minutos. O placar ainda favorecia o Brasil, mas o estádio inteiro se calou. Aquele gol não estava nos planos de ninguém (exceto dos uruguaios, é claro). E quem acha o caminho para o gol uma vez acha outra. Um placar de 0 x 0 é muito mais confortável para quem precisa do empate do que 1 x 1. O time brasileiro começou a jogar preocupado, pensando como estivera tudo tão bem até aquela jogada de Ghiggia.
E ele fez outra treze minutos depois. Passou velozmente por Bigode e chegou à linha de fundo. Barbosa, o goleiro brasileiro, pensando que ele cruzaria novamente para um companheiro, deixou o gol para cortar o cruzamento. Ghiggia chutou entre ele e a trave e se tornou o primeiro jogador de um time finalista a marcar em todos os jogos de uma Copa.
Os brasileiros se desesperaram, se desorganizaram e não conseguiram empatar outra vez. O mundo acabou. Os uruguaios deram o nome de Maracanã a uma rua em Montevidéu e a uma tribuna do Estádio Centenário. Durante vários dias a melancolia podia quase ser sentida, pesada, no Rio de Janeiro. Outros dizem que era só a umidade.


EM BUSCA DE UM CULPADO

Ghiggia mesmo disse que em futebol, quando acaba um jogo começa a busca pelos culpados. Numa época ainda de preconceitos, Barbosa, o primeiro goleiro negro da seleção e um dos maiores da história brasileira, foi o primeiro. Qualquer garoto aprende logo que jogando no gol ele deve sempre se preocupar com o chute de quem está com a bola e não com o passe ou cruzamento. Se ele não tivesse saído o extrema não poderia ter chutado entre ele e a trave. Todas as outras opções disponíveis para o uruguaio, tais como realmente cruzar de novo, chutar cruzado ou fechar para o meio, escaparam aos críticos, e Barbosa morreu em 2000 magoado por ser lembrado não como o grande jogador que foi, mas como o homem que tomou o gol entre a bola e a trave.
Flávio Costa achava que o culpado era Juvenal, o zagueiro central, que deveria ter coberto Bigode. Mas foi o lateral quem ficou como o principal vilão no imaginário popular. Ele estaria jogando com medo, assustado, depois de levar um tapa do capitão uruguaio Obdulio Varela. Na verdade o centromédio passara a mão de leve no pescoço do defensor brasileiro, mas sem videotapes para mostrar o que realmente acontecera, a lenda cresceu e se tornou tão incontrolável quanto o Penta. E com ela cresceu também a de Obdulio Varela, o homem que arquitetou nossa derrocada, a alma da vitória platina, o comandante que nos faltara, o que nos impedira de ganhar nossa primeira Copa.

OBDULIO VARELA

Obdulio Varela passou o jogo inteiro gritando com seu time e, principalmente, com os brasileiros. Provocou-os, passou a mão no pescoço de Bigode, berrou o tempo inteiro e empurrou os jogadores para a frente, para a vitória. Conta a lenda que começou seu trabalho na véspera, trazendo para a concentração diversos exemplares de A Noite que trazia a seleção brasileira sob a manchete "Esses são os campeões do mundo". Juntando os companheiros, ele lhes teria ordenado que cuspissem nos jornais1.
Obdulio Varela era conhecido como "El Negro Jefe" pela sua liderança. Nascido em 1917, ainda com 37 anos era titular e capitão da Celeste Olímpica na Copa de 1954. Contundido nas quartas-de-final contra os ingleses, ficou de fora quando os uruguaios foram eliminados na prorrogação pelos húngaros, a sensação do certame. Ele nunca perdeu um jogo de Copa do Mundo. Muitos analistas crêem que com ele em campo a invencibilidade de quase seis anos da seleção húngara não teria chegado até a final.
Obdulio Varela foi um dos últimos e melhores centromédios atacantes. Já em 1950, na Hungria e no Brasil, novos esquemas estavam surgindo que relegariam seu tipo de jogo ao passado. Mas antes disso ele teve tempo de inscrever seu nome na história.
Obdulio faleceu em 1996. Ele marcou dez gols em 49 jogos pela Celeste Olímpica.

GHIGGIA

Ghiggia nasceu em 1926 e estreou na seleção uruguaia justamente quando ela venceu o Brasil por 4 x 3 no Pacaembu, 71 dias antes da decisão de 1950. Como em tragédia grega, um presságio do futuro: o novato marcou um dos gols.
Rápido, objetivo, com chute forte e bem colocado, o ponta-direita foi um dos melhores jogadores da Copa e o atacante mais decisivo, marcando gols em todas as partidas, fato só repetido por Jairzinho em 1970. Com todas suas qualidades, sua carreira com a Celeste não durou muito. Em 1952 agrediu um árbitro e para escapar de uma suspensão que poderia ser de anos, transferiu-se para o Roma, da Itália, conquistando em 1961 o campeonato europeu de clubes, atual Liga dos Campeões. No mesmo ano transferiu-se para o Milan, onde jogavam os brasileiros Dino Sani e Mazzola, e foi campeão italiano. Numa época em que as seleções européias estavam repletas de jogadores naturalizados, Ghiggia chegou a jogar pelo time da Itália em cinco partidas, entre 1957 e 1959, marcando um gol.
Ghiggia voltou para o Peñarol em 1963 e encerrou a carreira em 1968, aos 42 anos. Dois anos depois foi levado como talismã pelos uruguaios para assistir à semifinal contra o Brasil. Não deu tanta sorte fora de campo, sem uma bola para chutar entre Félix e a trave.
Ghiggia está vivo, acha que o futebol atual é muito defensivo e que Ronaldo, Ronaldinho, Zidane e Henry são os melhores do mundo. E que, pela ordem, Pelé, Di Stefano e Puskas foram os melhores da história.

ADEMIR

"Ademir pegou a bola e desapareceu/o goleiro está procurando onde a bola se meteu", cantava a torcida do Vasco (e, por algum tempo, a do Fluminense) nos anos 40 e 50, quando seu time era conhecido como "Expresso da Vitória". A marchinha fazia referência à jogada típica do atacante, a arrancada com a bola dominada, conhecida na época como "rush", finalizada com força e precisão já dentro da área.
Ademir não era um atacante driblador e clássico, mas era rápido, arrematava bem com os dois pés e dificilmente desperdiçava uma boa oportunidade. Como não precisava tomar grande distância da bola e nem mudar o passo para chutar, costumava surpreender os goleiros em suas finalizações, como Ronaldo na semifinal de 2002 contra a Turquia. Versátil e veloz, podia jogar em qualquer posição da frente.
Com seus "rushes", Ademir era o atacante perfeito para a "diagonal" de Flávio Costa. Jogando entre a linha média e o ataque, não precisava carregar demais a bola até chegar na grande área e tinha espaço para começar a jogada sem a marcação dos beques. Essa posição, na ponta do quadrado "entortado" de Flávio Costa, passou a ser conhecida como "ponta-de-lança", dando origem ao "número 1" e ao meia-atacante de hoje. Sua eficiência forçou à adoção de esquemas especiais que acabariam levando à marcação por zona e ao 4-2-4.
Ademir nasceu em 1922 no Recife e começou a carreira no Sport, onde o pai, vendedor de automóveis, era diretor de remo. Numa excursão ao Rio de Janeiro seu futebol chamou atenção e foi contratado pelo Vasco, clube com o qual seria sempre identificado. No entanto, teve uma passagem pelo Fluminense. Em 1946 o técnico Gentil Cardoso disse aos dirigentes tricolores, "dêem-me Ademir e eu lhes darei o campeonato". E ele deu. E o Vasco foi buscar de volta o ponta-de-lança.
Ademir continuou no Vasco até 1955 e voltou para o Sport, jogando como amador pelo clube até 1956. Ganhou praticamente tudo que disputou, sendo exceção a Copa do Mundo, da qual foi artilheiro, o maior até então, com 9 gols.
Ademir tornou-se jornalista e comentarista de futebol e faleceu em 1996.