maio 07, 2006

Projeto Além da Imaginação

Este é mais um roteiro para o projeto de uma série brasileira imitando Além da Imaginação, do Rod Serling. A idéia era do Luiz Carlos Maciel, fã do programa, mas não foi adiante. Anteriormente publiquei aqui a história de uma festa de crianças. Esta é uma história fantástica mais clássica, e a preferida do Maciel dentre as que escrevi:

cena i
jardim/ext/dia

visão subjetiva de uma borboleta em vôo. a câmera passeia alegre e vivazmente. Algo meio indefinido se aproxima. Em cima da hora, vê-se que é uma teia de aranha. uma manobra arriscada a evita - e à aranha, se houver recursos para tal - e nosso inseto pousa numa bela flor. corte em semelhança ...

cena ii
laboratário/int/dia
william/konrad/takeshi/assistentes/maciel
... da flor para um aparelho que suporta william, no centro de um laboratório, ligado a um monte de fios e a um computador. maciel fala, junto ao homem que começa a se levantar desta "flor" eletrônica.
maciel: Durante a contracultura, Timothy Leary e seus seguidores tentaram expandir a consciência do homem com o LSD e outras drogas. Sua busca por uma realidade expandida não conseguiu levá-los aos resultados desejados. Mas naquela época eles ainda não tinham acesso à realidade virtual. Uma tecnologia que pode levar a mente do homem a qualquer mundo que ele possa imaginar. Mas se sua mente e razão podem ser alteradas e expandidas pela tecnologia, o que pode acontecer com seu coração... e suas emoções?
maciel sai. takeshi se aproxima de william que já se livrou da tralha, o capacete e o visor que usava e deixavam livre o rosto abaixo dos olhos.
william: (OLHA A "FLOR" ONDE ESTÁ): Por que me tirou de lá?
takeshi: Tivemos umas leituras de pico... o que houve?
william: Uma teia de aranha. Escapei por pouco.
takeshi: Ainda bem. A retrocarga psíquica poderia danificar seu sistema nervoso. Ninguém sabe o que pode acontecer se você morre no mundo virtual.
konrad: (CHEGANDO) Porque os programas têm travas de segurança. Isso nos impede de explorar os limites da realidade virtual.
takeshi: Foi você quem pôs a teia lá, Konrad?
konrad: Mandei programarem. Mas ela arrebentaria... é assim que se fala, não? Ar-re-ben-tar... ela se arrebentaria com o impacto. Ele não correu nenhum risco.
takeshi: Como você pode ter certeza?
konrad: Faça a compilação das leituras. Você poderá ver perfeitamente o que se passou. E qual o risco que seu amigo correu. Ah, e entregue-as para mim até o fim do expediente... (SAI)
takeshi: William, você sabe que o Konrad veio fazer este projeto aqui no Brasil porque não obteve autorização na Europa... por que você aceitou ser a cobaia dele? Você não sabe que isso pode ser perigoso?
william: Eu sempre apreciei as teorias dele sobre computadores orgânicos. Usar sistemas nervosos integrados a processadores para ampliar a capacidade de processamento.
takeshi: Ele é brilhante, mas este estudo pode levar a transformar homens em meros terminais de computador, William. Prender as mentes a milhões de linhas de programas pré-fabricados...
william: Ou libertá-la. Eu estou aqui por causa da realidade virtual. Você não tem idéia de como é lá dentro. Completamente livre. Sem fios, visores, ou (SEU CORPO) essa massa desajeitada de carne. Apenas... liberdade.

cena iii
rua/ext/anoitecer
william/motorista de táxi/pessoas na rua

cena dispensável. William vai de táxi pela rua para casa e passa, digamos, pela rio branco. Vê pessoas esbravejando, a fumaça, gente tentando subir em ônibus cheios depois de correr atrás deles, mendigos pela rua, tendo que ouvir em altos brados péssima música no rádio do motorista, que também tem uma aparência algo suja. enervado e irritado, william olha através da janela para cima e vê um pássaro voando. corta para.

cena iv
apartamento de william e mônica/int/anoitecer
mônica/william
o pássaro (pode vir daqui ou entrar em fusão enquanto o william fala "liberdade" lá na cena ii) está saindo de dentro de uma impressora de alta qualidade. este é o escritório dela, que é designer, artista gráfica ou outra carreira nebulosamente parecida. O aposento é colorido e cheio de figuras de pássaros e borboletas, principalmente os posters da campanha ou capa de livro que ela está fazendo. O microondas apita. Ela corre até a cozinha e retira uma lasanha congelada. Prova-a. faz uma cara meio contrafeita. Há um barulho de chave na fechadura e a porta da sala abre.
william: Mônica?
ele caminha até a cozinha e a encontra ainda com a lasanha. Beija-a.
william: Comida congelada outra vez?
mônica: Você acha mesmo? Pois saiba que esta lasanha estava viva e saltitante há duas horas. Você não sabe o quanto ela lutou antes que eu finalmente conseguisse desentocá-la.
william: Você desentoca qualquer coisa.
mônica: Claro. Desentoquei você. Um homem bonito, inteligente e queria se manter escondido das mulheres... felizmente venho de uma família de bandeirantes, que sabiam todos os truques para desbravar os maiores rincões, embora minhas amigas invejosas dissesem que em vez disse eu desenvolvi foi um enorme talento pra ficar dando bandeira... Muito bem, já tirei as vísceras todas da lasanha, como é que você vai querer a sua? William? William?
Mônica e william são bem-sucedidos e vêm de boas famílias, então vivem bem. William também tem um escritório para si. Só que o seu é insosso, cheio de publicações técnicas, uns revell e um monte de coisas eletrônicas e informáticas. Enquanto mônica solta esse enorme diálogo e prepara a sucinta mesa de jantar, seu marido, algo alheio, sentou-se em frente à tela de seu computador, ligou-o e nem ouviu a esposa.
mônica: William? Você não vai comer?
a animação da tela do computador pessoal de william é pobre face à do laboratório. ele tenta se concentrar olhando para o programa de borboleta, há flashbacks DELE PROCURANDO COMIDA, EM CÂMERA SUBJETIVA, NO RICO SOFTWARE DO SEU TRABALHO. cORTA PARA A DECEPCIONANTE IMAGEM NA TELA DE SEU MONITOR. o CIENTISTA CERRA OS DENTES E TENTA SE LEMBRAR DA DETALHADA VIAGEM DE REALIDADE VIRTUAL COMO BORBOLETA. bEM NO FUNDO, MUITO NO FUNDO, ELE OUVE UMA VOZ DISTORCIDA, QUE LEMBRA VAGAMENTE A DE SUA ESPOSA.
mônica: (DISTORCIDA) William? Amor? O que você está fazendo?
a voz o chama, o cientista cerra os dentes, ela o está distraindo de sua viagem virtual. Ele tenta se manter concentrado, mas a mão de sua esposa aparece na tela do computador.
william: Nós vamos criar toda uma nova geração de soft, Mônica. Vamos mudar a forma do homem ver o mundo.
mônica: Que forma, William? Você não anda conseguindo nem me ver! O que está acontecendo com você? Você quer voltar aos seus tempos de cientista louco? Escondido atrás dos seus livros e sua HP programável? Eu levei tanto tempo para conseguir fazer você ver o mundo e agora você quer começar tudo de novo?
william: Não é a mesma coisa, Mônica. Você não está entendendo. Isso... (APONTA A TELA) Isso é a porta para um outro mundo...
mônica: Não parece grande coisa...
william: Mas é, Mônica. É que sem a aceleração gráfica dos chips orgânicos, a qualidade da imagem cai a ponto de perder toda a sensação do que é real...
mônica agarra a mão do marido e a põe em seu peito. Seus peitos, para ser mais exato.
mônica: Isso é a sensação do real, William. Nós somos chips orgânicos e isso é a sensação do real. Você está se perdendo, William. E você sabe que você tem problemas com isso. Eu não quero perder de você. Por favor, William.
william: Mônica, eu não quero me perder de novo, mas eu... eu tenho que ir adiante nisso. É uma daquelas coisas... que dá significado à sua vida...
mônica segura a mão dele e a faz acariciar seus maravilhosos seios.
mônica: William, não se preocupa com significado. Seja filosófico. Preocupe-se com os signos. Preocupe-se comigo. Não se preocupe em fazer algo da sua vida. Deixa a vida fazer algo de você.
ela, sedutora, se aproxima do marido e beija-o. Ele come'ça relutante, mas o corpo dela, a mão nos peitos, o beijo acabam levando-o. Ela se equilibra no beijo pondo uma mão sobre o monitor que escorrega e a marca de suor e gordura sobre a tela borra ainda mais a imagem. corte para

cena v
quarto do casal/int/noite/inserts de vôo de borboleta
william/mônica
mônica e william entregam-se aos reclames da carne. Ela está por cima e vira-se, fazendo o marido ver abaixo dela a esposa. Uma flor. Ele começa a ver cenas de um maravilhoso vôo de borboleta enquanto geme. montagem em paralelo. A sequência de vôo subjetiva começa a durar mais do que a trepada. Finalmente, ele parece atingir o êxtase num longo mergulho em direção a uma flor ou semelhante e, quando vai pousar, é interrompido pelo rosto de sua mulher suada levantado para ficar ao seu nível.
mônica: O que você está fazendo no meu corpo, William, se você não está aqui? Onde você está? Onde?
william não responde.

cena vi
restaurante do mam ou similar/int/tarde
mônica/takeshi/garçons/fregueses
Um garçom anônimo - só vemos as mãos e parte do corpo - anota algo junto a uma mesa com também anônimos clientes. Ele se dirige ao balcão onde outras mãos pegam a nota e digitam dados num terminal de computador. o garçom pega a nota impressa e a leva à mesa, de onde se descortina o aterro, verde e a baía, azul. a Câmera pára numa mesa onde mônica está se sentando. takeshi a esperava.
takeshi: A vista acaba de melhorar.
mônica: Eu sou uma mulher casada, Takeshi.
takeshi: Com o cara errado.
mônica: Você está errado, Takeshi. Eu é que sou uma mulher errada.
takeshi: Eu sei. Eu nunca tive nenhuma chance. Afinal, eu era apenas um estudante dedicado enquanto o William era um gênio perturbado incapaz de se relacionar com pessoas...
mônica: Você está sendo mau perdedor.
takeshi: Eu? Ele é que foi um mau ganhador. Aquilo foi tudo armado. Como é que um aspirante a cientista poderia atrair uma mulher como você senão percebendo que ela adora desafios e bancando o esquizofrênico que só precisa de uma chance? Quando eu crescer quero ser que nem o William.
mônica: Deixa disso, Takeshi. O William teve milhões de problemas na infância dele.
Takeshi: Eu também. Eu já lhe contei de quando me tomaram meu trenó favorito? Rosebud?
mônica: É sério, Takeshi. É até por causa disso que eu vim falar com você. Eu acho que estou perdendo ele.
takeshi: Perdendo? Uma mulher como você perder um homem é algo tão fora de lugar como uma aranha devorada por uma mosca...
mônica: Ele está se alheando, Takeshi. Está ficando indiferente. Como era. Que programa de realidade virtual e borboleta é esse que ele está trabalhando?
takeshi: É o lepidóptero 1.0. Estamos quase na versão beta.
mônica: E por que o William está tão fascinado com o projeto?
takeshi: Bem, Mônica, até hoje os programas de realidade virtual são um tanto... grosseiros. Eles geram cenários rígidos, com objetos inanimados. Quando há alguma vida, é um avião inimigo. Apenas algo suposto dentro de outro objeto inanimado. Ou uma criatura incapaz de aprender alguma coisa ao interagir com você.
mônica: Entendo. Em vez de seres vivos, objetos inanimados que se movem...
takeshi: Exato. O Konrad usa programas muito mais realistas. Estamos trabalhando com o de borboleta. O mundo de um inseto é muito mais simples, mas ainda assim muito complexo. Árvores que se movem com o vento, flores que crescem e morrem, pássaros que o caçam até aprenderem que você não tem um gosto bom e assim por diante.
mônica: Este programa não pareceu tão interessante assim lá em casa...
takeshi: A versão doméstica é apenas para exercitar a programação, Mônica. Não tem comparação. O grande segredo do Konrad é o uso dos chips orgânicos. Estamos ligando os processadores ao sistema nervoso animal para acelerá-los. No caso, o sistema nervoso de uma borboleta. Uma piada particular do Konrad.
mônica: Vocês estão usando o cérebro de uma borboleta pra rodar o programa?
takeshi: Grosseiramente falando, é...
mônica: Takeshi... o William passa o tempo inteiro sonhando com seus vôos de borboleta. Ele teve seus tempos difíceis, mas de lá pra cá eu já vi ele entusiasmado com outros projetos. Não é assim. O que está acontecendo?
takeshi: Bem... ele está sendo a cobaia.
mônica: A cobaia? Num programa de realidade virtual de imersão total? Com todos os problemas que ele passou? Como vocês deixaram, Takeshi? Por quê?
takeshi: Ele disse que precisava da sensação, Mônica. Que aprendeu com você o quanto ela era importante...
mônica: Tão importante que estas sensações, Takeshi... estão roubando ele de mim. Você tem que parar com isso...
takeshi: Ele fez muita questão, Mônica... E você sabe que... (PAUSA) O que eu posso fazer? Ele é o gênio. Como argumentar com um gênio?
mônica: Simples, Takeshi. A gente não argumenta. A gente faz. Ou perde a discussão e a chance. (PAUSA. A CENA PODE ACABAR AQUI E CORTAR DIRETO, OU) Eu preciso ir ao banheiro, Takeshi, peraí...
mônica se levanta e takeshi fica olhando. Chega o garçom.
garçom: O que vão querer?
takeshi: Espera a moça voltar. (MELANCÓLICO) Eu nunca soube decidir.

cena vii
LABORATÓRIO/int/noite
takeshi/william/konrad/cientistas e seguranças
william está saindo da "flor". takeshi se aproxima.
takeshi: Mônica me convidou para almoçar.
william: E quando é que você vai lá em casa?
takeshi: Não, William. Ela queria conversar.
william: É, Ela sempre quer conversar.
takeshi: Sobre você.
william: (PENSA UM POUCO) É. Gosto de ser o assunto dela. (CONTINUA AJEITANDO SUAS COISAS).
takeshi: Depois transamos selvagemente em cima da mesa.
william: Ela faz isso bem.
takeshi: William, o que está acontecendo com você? Você mal ouve o que eu digo.
william: Takeshi, você é que não está falando coisa com coisa...
takeshi: Eu estou, William, mas você é que não está ligando a coisa e a coisa.
william: Está vendo? Isso não soa muito científico. Não faz sentido. "A coisa e a coisa".
takeshi: Eu só fiz uma brincadeira, William. Mas você não pegou. Você não entendeu. Quando você ouve o que te falam, você toma ao pé da letra.
william: (PÁRA PARA PENSAR) Ando meio distraído. Os cientistas são assim.
takeshi: Não, William! Você está perdendo contacto com a realidade!
william: Defina "realidade".
takeshi: Enfim, uma piadinha. Talvez o caso não esteja completamente perdido!
william: Takeshi, eu estou tentando me concentrar em meu trabalho e você vem me dizer que você e a Mônica acham que eu ando concentrado demais no trabalho. Dizem que estão com medo que eu esteja louco. Eu vou ficar louco se vocês não me deixarem em paz!
takeshi: Você não está concentrado em seu trabalho, William! Eu vi o seu cronograma! Você está atrasado, William! Semanas atrasado!
William: Cheguei numa encruzilhada e vocês não me deixam trabal...
takeshi: Você é o gênio da turma, William. Você nunca se atrasou antes. Você não está concentrado no trabalho! Tudo que você tem feito no trabalho nos últimos meses é rodar o Lepidóptero!
william: Estou testando os limites.
takeshi: De quê, William? Do programa? Do chip orgânico? (BATE NUMA CAIXA FECHADA CHEIA DE FIOS) De você? Do seu casamento? Você tem falado com sua mulher, William?
william: Isso não te interessa, Takeshi.
takeshi: Interessa sim. Foi ela quem me contou. O que tem de tão interessante aqui, William? Voar como um inseto? Comer, trepar e pôr ovos e morrer?
william: É, Takeshi! É! Sem cálculo. Equação. Lógica. Axioma. Teorema. Minha vida inteira eu fiquei cercado por eles. Eu gosto disso, Takeshi! Gosto de voar sem ter que pensar. Raciocinar. Racionalizar. Não há nada disso ali! Nada!
takeshi: Nem pessoas. E nem a Mônica, William.
william: E qual o problema? Um homem não tem que ter seu espaço secreto? Uns vão a bordéis, outros bebem com os amigos, vão ao Maracanã... eu vôo.
takeshi: Você não voa, William. Não há espaço secreto nenhum ali. Você tem razão. Não há nada ali. Só instruções e códigos que você mesmo fez.
william: E tenho muito orgulho disso.
takeshi: William. (PAUSA) Isso não é saudável...
william: Takeshi, o quê não é saudável? É só um programa de realidade virtual! Qual o problema? Você e Mônica não conseguem aprender, evoluir? Acham que eu sou a mesma pessoa que conheceram há tanto tempo?
takeshi: Não, você não é, William. Aquele cientista jamais perderia seus prazos e sua esposa que tanto sacrifícios fez...
william: Eu não estou perdendo nada, Takeshi. Estou ganhando.
takeshi: O quê? O que você está ganhando?
william: Você não sabe como é. Você não tem que ser criativo e genial todo o tempo. Você não tem que ser o marido ideal da mulher maravilhosa o tempo todo. Você não tem que estar sempre provando sua recuperação. É por isso que você não confia no Konrad. Não sabe como é difícil. Não sabe como é. Você deveria experimentar, Takeshi.
william termina de juntar suas coisas e abre a porta do laboratório.
takeshi: Para onde você está indo?
william: Para casa, Takeshi. Onde mais? (SAI)
takeshi senta-se na flor, desolado.
takeshi: Eu tentei, Mônica.
ele pega o visor e o capacete e o aparato craniano do computador.
takeshi: Como você é, afinal? Será que você é tão perigoso como a Mônica quer afinal ou não? Será que o William é que está certo?
takeshi anda até o painel, ajusta tudo e veste o aparato. vemos sua reação quando o programa começa a rodar. Ele fica assustado, maravilhado, extasiado, preocupado, tudo isso usando o capacete. Não vê, no entanto, que konrad, cercado por dois seguranças entra na sala e vai até os controles do computador.
konrad: Você não ajustou para um mergulho total. Vamos aumentar o nível de detalhe, de realidade... e fazer a ligação direta do seu córtex cerebral... aos chips orgânicos...
quando konrad fala em chips orgânicos, a câmera sai de sua mão ajustando tudo e corre até a caixa cheia de fios onde está guardado esse negócio tão falado. a caixa brilha por um instante, assim como o capacete, enquanto takeshi solta um gemido, um suspiro quase sexual e continua pateticamente a agir como experimentando as mais diversas e intensas sensações sob o olhar desabonador de konrad, que sai da sala sorrindo, acompanhado dos seguranças.

cena viii
restaurante do mam/int/tarde
mônica/takeshi/garçons/fregueses
mônica conversa com takeshi enquanto garçons sem rosto passam em primeiro plano.
takeshi: Você está preocupada à toa, Mônica.
mônica: Ele não come mais, Takeshi. Está emagrecendo a olhos vistos. Mal fala comigo.
takeshi: Mônica, nosso trabalho entrou numa fase crucial. É isso. O William já tem tendência, perdeu a vontade de conversar. Mas vai passar.
mônica: Que trabalho que ele está fazendo? Ele fica o tempo inteiro em casa olhando praquela tela infeliz! E com aquele olhar embasbacado de quem está pensando na amante! Preferia que fosse uma amante! Amantes dão tesão num homem, sobra até mais pra esposa!
takeshi: Pára de falar essas bobagens, Mônica!
mônica: Por quê? Isso te incomoda? E você? Você está fazendo o mesmo trabalho que ele. Você tem tido tesão, Takeshi? Tem se interessado por alguém?
takeshi: Todos nós estamos trabalhando muito, Mônica...
mônica: Mas é o meu marido quem está preso naquela máquina, Takeshi! É o meu marido que está se viciando em ser um inseto! É o meu homem que eu estou...
enquanto ela fala, baixa o rosto irritada, olha para o outro lado. Quando se volta, ela vê que takeshi está olhando interessadíssimo para uma borboleta pousada do lado de fora do vidro. Mônica pára de falar horrorizada ao ver a absorção de takeshi pelo lepidóptero.
mônica: Você... você também...
takeshi: O que foi, Mônica?
mônica: Você está na máquina também. Você experimentou.
takeshi: Eu precisava saber o que o William estava experimentando...
mônica levanta-se horrorizada.
mônica: Mas não daria tempo para viciar... não é vício. Não é fraqueza psicológica. É o chip. O cérebro da borboleta!
takeshi: Do que você está falando, Mônica? É só um programa...
mônica: É só um programa, mas está ligado ao cérebro de uma borboleta... que está comendo o cérebro de vocês!
takeshi fala calmamante a mônica, mas a moça entra em pânico.
takeshi: Mônica...
mônica: Não! Me larga! Me solta! Vocês não estão percebendo!
a borboleta voa do vidro e mônica, horrorizada ao perceber, sai correndo. takeshi continua sentado, vira-se para o vidro e segue o vôo do inseto com a cabeça.
takeshi: Eu te amava tanto, Mônica, que ia ser tão difícil aguentar ver você indo embora assim...

cena ix
casa de william e mônica/int/noite
william/mônica
detalhe do monitor com a paupérrima animação de borboleta. de repente, mônica põe as mãos por sobre a tela. As duas mãos abertas, como se fossem a borboleta. William, apático, vira-se para ela.
william: O que você está fazendo, Mônica?
mônica: Eu preciso de você, William. Por favor, deixa esse computador...
william responde apático. Sua vontade parece já ter sido toda drenada.
william: Não é verdade. Você sempre teve todos os seus amigos e admiradores. Seus amantes e namorados. Você nunca precisou de mim...
mônica: (QUASE CHORANDO) Por que você acha que eu os abandonei todos?
william: Eu não sei.
mônica: Claro que não sabe. Você não consegue mais pensar. Você passou tempo demais ligado ao cérebro de uma borboleta, meu amor... se ele conseguiu dominar sua mente tão facilmente, imagine o que ele pode fazer quando vender essa tecnologia aos milhões...
william: A humanidade inteira vai poder voar livre...
mônica: Não, amor... liberdade não é isso. Para sermos livres, temos que estar conscientes de tudo que nos cerca e prende... como você fez ao sair detrás dos seus livros... sai agora desse computador.
william: Eu não posso. Eu tenho que trabalhar.
mônica, que assumiu uma posição suplicante, de joelhos, começa a chorar, enquanto william volta-se para a tela. Ela então tem uma idéia. Novamente põe a mão sobre o monitor.
william: Tire a mão, Mônica...
mônica: Não.
william: Tire-a...
mônica: Não, William. Você não quer isso. Isso é pouco pra você. Você precisa voar. Voar por todo o jardim...
william: Jardim?
mônica: Floresta, mata, o que quer que seja. Você precisa de muito mais do que isso! Voar! Abrir todas as suas asas!
william: Minhas asas?
mônica: Todas. Você precisa decolar. Por que não vai até o laboratório?
william: Está fechado...
mônica: Seu trabalho é importante, William. Muitl improtante. E você quer abrir suas asas.
william: Eu quero. Quero abrir minhas asas...
mônica: Então... vamos ao laboratório, William! Para o laboratório!
william: Sim...
william começa a se levantar mecanicamente. Pega algumas chaves na gaveta e alguns cartões magnéticos. Mônica corre até o seu escri'torio, pega também alguns cartões magnéticos e ferramentas e um casaco e corre atrás dele.

cena x
patíbulo de entrada do prédio do laboratório/int/noite
william/mônica/segurança/supervisora
há um segurança a quem william se identifica. Sua esposa corre atrás. O segurança a detém.
segurança: Aonde a senhora vai?
mônica: Eu... eu vou atrás dele...
segurança: A senhora trabalha no prédio?
mônica: Eu... sou esposa dele.
segurança: Ele não tem autorização para trazer parentes para o prédio...
mônica espicha o rosto e consegue ver que o marido pegou o elevador. Ela começa a ficar impaciente.
mônica: Mas eu preciso ir atrás dele.
segurança: Impossível.
mônica: Eu preciso, por favor!
segurança: Por quê?
mônica está nervosa quando vê uma senhora com uma prancheta falando com outro segurança ao fim do corredor. É uma mulher e parece ser uma supervisora, uma superior hierárquica. Mônica sorri e começa a gritar.
mônica: Por quê? Eu te digo porquê! Porque o meu marido está tendo um caso com a secretária e você quer esconder! Porque vocês, homens, são todos iguais! Acham o máximo ter uma amante, não é? E eu, onde fico? Em casa, esperando?
a supervisora, ao ouvir os gritos, anda apressada até onde o segurança assustado olha para os lados. Plano geral. Vemos os três gesticulando, mas não ouvimos o que dizem. Apenas que a supervisora libera mônica, que sai sorrindo enquanto a supervisora parece passar uma leve reprimenda no segurança. Mônica vê que o seu marido pegou o elevador e desembesta pela escada.

cena xi
entrada do laboratório/int/noite
william/mônica
mônica sai das escadas no quarto andar, ofegante e vê que seu marido está JUSTAMENTE abrindo a porta, digitando alguma coisa e passando um cartão magnético numa maquininha. Ele entra. Mônica corre, se atira e desliza pelo corredor e consegue com o pé, caída, impedir que a porta se feche. Ela se levanta, cautelosamente, empurra a porta e entra.

cena xii
portas de acesso ao laboratório/int/noite
william/mônica/segurança
mônica segue seu marido por algumas portas, sempre impedindo que elas se tranquem por detrás dele. Finalmente william entra numa porta na qual ela não consegue se meter. Uma porta giratória que trava após a passagem de cada um, por exemplo. Bem, ela então saca sua chave de fenda, um palmtop e conecta ao sensor da porta ou então começa a desaparafusar a tranca, o que for mais barato e acessível. Ou ela vai desmonar o mecanismo de segurança ou descobrir a senha com um aparelho eletrônico. Lembrem-se que ela também é fera em informática e estudava na mesma faculdade que william e takeshi. Só que ela dispara sem querer um alarme. Ela o silencia rapidamente, mas ouve passos de outro segurança vindo. Ela enTão rasga o casaco, abre a camisa e baixa o soutien, despenteando os cabelos. Quando o segurança chega, ela está apoiada na parede e ofegante, parecendo apavorada.
mônica: Ele... oh, meu Deus... ele foi por ali!
O SEGURANÇA OLHA PARA ELA E SEGUE NA DIREÇÃO INDICADA.
Segurança: Pode deixar, dona... eu pego ele!
ela volta ao seu trabalho e consegue acesso ao laboratório.

cena xiii
laboratório/int/noite
william/mônica/konrad/seguranças
william já está na "flor" quando mônica entra. Ela olha para o marido, que faz caras de idiota e extasiado enquanto está indefeso no capacete. Aproxima-se carinhosa dele.
mônica: É isso... é isso que você chama de liberdade, meu amor? Essa completa vulnerabilidade? Completa dependência? Não, William, não é...
ela o acaricia, mas ele nem sente.
mônica: Não é isso que é sentir. Não é isso que é viver. Não é isso que é ser livre...
ela caminha até a caixa que guarda os chips orgânicos, seguindo os fios do computador. Ela abre a caixa e encontra a borboleta, atravessada por fios e agulhas. Ela pega alguma peça pesada e solta providencialmente à disposição na sala, ou então o extintor de incêndio, o que a faz gemer e suspirar para carregar o peso e levantá-lo acima da cabeça, sobre a caixa. Ela finalmente termina a frase.
mônica: Eu vou te mostrar o que uma pessoa livre realmente faz, meu amor! O que é a liberdade de verdade!
ela joga o extintor ou a peça pesada sobre a caixa, esmagando a borboleta. faíscas e afins, com todas as explosões e efeitos que o orçamento permitir. Nesta hora, adentram a sala konrad e os seguranças.
konrad: O que você fez, mulher?
konrad corre até a caixa e tira os destroços. A borboleta ligada ao chip está completamente destruída. imprestável. Os seguranças prendem os braços da mulher.
mônica: Eu libertei o meu marido!
konrad: Você não está entendendo nada, não é mesmo? Nunca entendeu nada...
mônica: Eu entendo que você dominou o meu marido... e acho que queria até dominar o mundo! Que nem nos filmes antigos!
konrad: Filmes antigos? Não... nada disso... talvez uma história... ainda mais antiga...
Mônica se debate para se livrar e os seguranças atrás dela desaparecem, para seu espanto.
mônica: O que... o que é isso?
konrad: Você queria salvar o seu marido, não é? Salvar o seu amor... pois você o perdeu... perdeu-o para sempre...
mais coisas na sala começam a desaparecer.
mônica: O que... o que está acontecendo? O que você fez com o laboratório? Que projeto era esse?
konrad: Esse? Um projeto de realidade virtual e chips orgânicos. Mas muito... muito mais ambicioso do que você podia pensar...
mônica: Você... estava criando que tipo de realidade virtual?
konrad: Uma muito sofisticada. Nós estávamos ligando o cérebro de uma borboleta diretamente ao banco de dados de um supercomputador... dentro de um programa de realidade virtual em que a borboleta faria o papel... de um ser humano.
mônica: Um ser humano? Então...
konrad: Exato. Um ser humano. E a borboleta ligada neste programa criaria a realidade a seu bel-prazer. Criaria amigos, um local de trabalho, colegas e até... pessoas amadas... muito amadas.
mônica: Você está mentindo! Mentindo!
konrad: Mas você se precipitou... e destruiu tudo. Nós, Mônica... eu, você, os seguranças... não existimos. Seu casamento não existiu. Porque seu marido não é um homem num programa de realide virtual no papel de uma borboleta... mas uma borboleta... num programa de realidade virtual para que pensasse ser um homem...
enquanto ele fala, também vai desaparecendo. só sobram na sala mônica e william. Ela se debruça sobre o corpo do marido e começa a chorar.
mônica: William! William, meu amor... o que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?
e também ela começa a desaparecer, somente sobrando william.

cena xiv
laboratório/int/tarde
william/takeshi/trabalhadores
um alarme toca. William corre até os controles.
takeshi: O que aconteceu?
william: Retrocarga. O cérebro da borboleta... nós... (OLHA DESOLADO PARA O COMPANHEIRO) Nós o perdemos. O projeto se foi.
takeshi abaixa a cabeça, desolado.

cena xv
sala de troca de roupas/int/noite
william/takeshi/maciel
william e takeshi estão se preparando para irem embora.
takeshi: Estranho, não? Pelas gravações, é como se a própria borboleta tivesse criado as circunstâncias da sua destruição. Como se ela estivesse vivenciando algo que ela não podia aguentar. Algo muito forte.
william: Mal de Amor.
takeshi: Como, William?
william: Não sei. É que eu vou sair daqui para ir lá pra casa... todos aqueles livros e computador e trabalho... e de repente tudo isso me parece tão pouco...
takeshi: Que que tem isso a ver com a borboleta, William?
william: Nada, Takeshi. É que você falou em vivenciar algo terrível... e desde hoje à tarde, eu estou com uma sensação tão estranha... como se eu tivesse perdido uma grande esperança... como se eu estivesse perdendo algo importante... algo como perder um grande amor...
takeshi: Nós somos cientistas, William. Nós não temos grandes amores.
william: É. Você tem razão.
os dois homens solitários arrumam metodicamente seus jalecos para os guardarem no armário, o que aumenta o clima de solidão e vazio que deve permear suas vidas, enquanto vestem suas roupas sem graça e sem imaginação. Entra maciel.
maciel: Um velho sábio chinês, Chuang Tzu, certa vez sonhou que era uma borboleta. Um sonho vívido e intenso. Tanto que, quando acordou, ele se perguntou, "será que eu sou um homem que sonhou que era uma borboleta ou sou uma borboleta sonhando que sou um homem?" Uma pergunta que ele não tinha como responder... pois a resposta está em algum lugar... no limiar do desconhecido.