julho 31, 2019

O Estado Sou Eu (e eu sou contra o Estado)

Certa vez, li uma postagem de um blogue de um jovem cabeludo conservador, uns 10 anos atrás, quando esse fenômeno estava apenas começando. O rapaz comentava as cobranças dos torcedores sobre Diego Hypólito por vitórias e dizia que, se fosse o Diego, mandava todo o mundo se danar, porque ele não devia nada ao Brasil ou aos torcedores, somente ao seu talento.

Obviamente o nubente reaça conheceu – provavelmente de segunda mão – o pensamento de Ayn Rand, e aplicou-o no caso do Diego. Não sei qual era a história pregressa do jovem blogueiro, mas é o tipo de pensamento que acomete pessoas sem muita experiência de diversidade no mundo. Tudo é muito simples, tudo é absoluto, navalha de Occam, o que interessa é simplificar e racionalizar. Por isso que, como diria Luke Skywalker, a postagem era “amazing. Every single word you said is wrong”.

Diego Hypólito não tem, como supostamente tinha Galt, algum talento ou conhecimento imprescindível para as massas. Ele apenas é capaz de dar pulinhos muito precisos. A utilidade prática desse tipo de conhecimento tende a zero. Imagina alguém chegando numa entrevista de emprego numa grande corporação, “muito bem, e qual sua maior qualidade?” “Posso, com apenas dois passos, saltar no ar, dar duas piruetas e cair com meus dois pés juntos”. “Certo, certo, mas você sabe usar o Word?”. A única razão pela qual existem atletas de esportes competitivos é porque existem torcedores. São eles que vão fornecer a grana pra movimentar o mundo. Entretenham-nos, façam-nos torcer por vocês, sejam nossos avatares e nos façam nos sentir vencedores. Se não for você, meu amigo, vai ser outro. Quantas pessoas você conhece que sabem se um duplo carpado com twist misto é melhor do que um mortal de costas 360? Ou que se importam? O que importa é a medalinha de ouro.

E, é claro, na postagem do blogueiro, além do desconhecimento de como funciona o esporte psicologicamente, há a total ignorância relativa a quem financia o esporte no Brasil. O governo, através de renúncia fiscal, e, no caso da ginástica olímpica, contratando técnicos estrangeiros e construindo centros de treinamento. O Diego deve tudo aos torcedores e aos brasileiros. Ele é pago pra gente por torcer por ele e ele ganhar medalhinha. Temos todo o direito de cobrar e, como aparentemente o neotene pretenso liberal que redigiu a matéria original nunca jogou nem uma peladinha com os amigos, se NINGUÉM COBRAR OU DER ATENÇÃO, O ESPORTISTA NÃO VAI ACHAR A MENOR GRAÇA. Esqueça os jogadores de futebol reclamando das vaias da torcida, é como briga de namorados adolescentes, aquelas que acontecem pra quebrar a rotina e depois dar umazinha tremendamente intensa.

Desculpem pela digressão tergiversada, mas isso tudo é pra mostrar que essas histórias de “liberdade de escolha” dos pais quanto a cadeirinhas de bebês é uma bobagem completa. Estamos vivendo num mundo em que, se não for de nossa vontade, precisamos cada vez menos interagir com gente diferente. Condomínios tipo Barra, com pequenos mundos trancafiados sob grades e segurança particular, com suas lojas, academias de ginástica, falta de calçadas e comércio variado, tornaram-se a norma. Assim, tudo é simples, direto, monocromático, sem nuances. Se você só vê gente como você, com os mesmos interesses que você, com a mesma cor que você, ganhando o mesmo que você, e só frequentam as mesmas praças de alimentação de shopping, então tudo é fácil de solucionar. Como já diz um dos meus ditados prediletos, se tudo que você tem é um martelo, todos os seus problemas se parecem com um prego.

Vejam então, o caso das cadeirinhas de bebês. Os pais que escolham, certo? À parte discussões teóricas sobre tutela de menores e deveres pátrios, existem pura e simplesmente as implicações práticas: assim como cigarros, capacetes, limites de velocidade, os idiotas que fazem essas merdas estão ME dando prejuízo. A mim, a você e todos nós. Porque nenhum homem é uma ilha. Vivemos em sociedade e todas nossas ações a influemciam – e vice-versa.

O que acontece com os pais que levam um bebê que sofrem um acidente? Quem irá resgatar o bebê das ferragens? O plano de saúde ou os bombeiros – ou paramédicos – pagos com o nosso dinheiro? Por experiência própria, sei que os paramédicos levam você para o pronto-socorro público mais próximo. Por irresponsabilidade de um casal que não quis gastar uma grana com bobagem, porque dirigem bem e jamais sofreriam um acidente, recursos que poderiam estar disponíveis para outros acidentes, leitos que poderiam estar sendo usados para outros pacientes, estão ocupados, médicos e paramédicos que poderiam estar atendendo outras pessoas, trabalhando numa via pública que tem que ser interditada, atrapalhando a vida das pessoas que querem ir pra casa.

E o que acontece com a criança que sofre sequelas pelo acidente? Vai abrir mão de qualquer suporte pelo Estado? Nenhuma pensão por invalidez? E a dificuldade para o mercado de trabalho? Não vai ocupar vagas de outros especiais que precisem mais? Será que os pais realmente estão completamente dispostos a abrir mão de tudo isso? De ficarem largados num local de acidente, sem atendimento, sem remoção para hospital, porque não quiseram usar cinto de segurança e nem cadeirinha?

Liberdade de escolha presse povo significa não abrir mão de seu conforto, não ter trabalho. Os outros, esses sim, podem ter trabalho por eles. Vivemos numa cultura que ensina a todo o mundo que eles são especiais e diferentes. O roteiro padrão desses livros de fantasia que tanto influenciam a mente da garotada que está crescendo é um garoto merda, vivendo em um lugar merda, que não parece dedicado particularmente a nenhum grande interesse ou aspiração, subitamente sendo contatado por algum mestre, força ou coincidência que mostra a ele que, secretamente, ele é o fodão das galáxias. Que se foda a sociedade, ninguém precisa deles. Eu tenho que salvar o universo. Por que será que depois esse povo cresce e se acha melhor do que os outros?

Afinal de contas, os outros, principalmente se forem pobres, com problemas ou afins, nunca tiveram tempo pra ler (caros) livros de fantasia na preadolescência.