agosto 26, 2019

Os Homens que Odiavam as Mulheres II

Tem um episódio dos Simpsons em que o Homer faz amizade com o dono de um antiquário algo excêntrico e ele até começa a frequentar a casa deles. Tão amigos eles ficam que a Marge, achando estranho essa demonstração de mente aberta do marido, tenta avisá-lo sobre a orientação sexual do sujeito. Depois de tentar inutilmente várias metáforas, ela fala, “acho que ele prefere a companhia de homens”. Ao que o Homer ri, com aquela risada profunda do soberbo dublador original, responde, “ora, e quem não prefere?”

No mundo mais careta e binário, onde meninas vestem rosa e meninos vestem azul, estes últimos não têm muito estímulo pra ter amigas. Elas só falam de bonecas, não praticam esportes, não gostam de armas, não gostam de pescar, curtem moto, mas só pra andar na garupa, e preferem carros confortáveis a enormes jipossauros. E têm que cozinhar, cuidar dos filhos e da casa. Não são boa companhia pra sair, tomar umas cachaças e ficar falando de mulheres e filmes de ação.

O problema é que vivemos numa sociedade machista. E a principal constatação dessa nossa sociedade machista é que o sucesso de um homem é medido pelas mulheres que ele é capaz de arrumar. Dinheiro? Você precisa até uma certa quantidade – depois do suficiente pra poder viver sem ter preocupações financeiras, não faz tanta diferença assim. Embora teste de QI não seja tão confiável assim, vários estudos já apontaram que os rendimentos de uma pessoa correspondem ao seu QI até um certo patamar. Depois, começa a cair. É como se a galera mais cabeça achasse que depois dessa barreira, o esforço não vale a pena.

Não, dinheiro é na verdade um indicador que você é um macho atraente. Até o Trump diz isso com todas as letras em sua biografia. O importante não é o dinheiro que você ganha num negócio, o importante é levar a melhor num negócio. O dinheiro é só a medida disso. Não adianta você ter dinheiro e não ser um vencedor. E você só é um vencedor se arrumar a mulher certa.

Essa ideia é tão entranhada em nossa sociedade que as vivemos e experimentamos o tempo todo sem nos darmos conta. Nos filmes e livros, a recompensa do herói é no final conseguir a mocinha, principalmente se for um jovem solitário e incompreendido numa história de fantasia (inclusive se de repente ele for declarado por alguém que chega de repente que ele é o escolhido pralguma coisa, embora nunca tenha demonstrado nenhuma qualidade de liderança). Certa vez, levei uma amiga mexicana minha, punk, feminista, daquelas de me chamar a atenção o tempo todo, pra visitar o Museu Imperial de Petrópolis. Contei-lhe como Pedro II, ultimamente redescoberto como um monarca progressista, o imperador cidadão, o imperador filósofo, manteve o Brasil unido e relativamente estável enquanto a nação se consolidava. Mas, ao ver o busto da Teresa Cristina, ela comentou, rindo, automaticamente, “nossa, a mulher dele era feia”.

Assim se cria um veeeelho paradoxo da nossa sociedade, ultimamente relevado com a chegada da internet. Criamos um monte de garotos e homens que não gostam da companhia de mulheres, mas precisam delas pra garantir respeito. Gente que não gosta verdadeiramente de sexo, mas precisa fazê-lo. Existem milhões de maneiras de se usar seu corpo pra se ter um orgasmo, por várias vias. O que diferencia a relação sexual é justamente a palavra “relação”. No entanto, se usado pra comprar respeito (isso fica pra outra postagem), se torna algo vazio e vago.

Você deve conhecer o tipo. Aquele que só fala de mulher, julga a mulher dos outros, mas quando você aparece no aniversário dele, só tem homem. Aquele que te pergunta como é que você não se entedia viajando sozinho. Aquele que fica contando das conversas no aplicativo de pegação como se tivesse realmente pego alguém. Também são sujeitos que contraintuitivamente gostam de falar mal da promiscuidade da sociedade. O que eles entendem como promiscuidade muitas vezes é só um sexo casual, mesmo daqueles afetuosos, porque eles simplesmente não têm amigas casuais, ou relacionamentos afetivos com gente do outro sexo que não envolvam “quero te comer”.

Isso tudo, obviamente, pra falar do Inominável. Seus filhos estão sempre fazendo postagens acompanhados de outros amigos, varas de pescar, fuzis e afins. Casam-se, mas parecem nunca ter tempo prum programa a dois – sair pra dançar, prum show, pra passar pela cidade. Quem acompanha as viagens e os compromissos do Inominável pode ter a impressão de que ele é casado com o Hélio Lopes. Pelo menos estão sempre almoçando juntos, passeando juntos. Não é de se admirar, Hélio Lopes provavelmente entende mais de pesca, tiro e futebol do que qualquer mulher do clã. E, é claro, não é bom ficar levando a mulher pra passear por aí, pra se arriscar a alguém roubá-la. Vocês devem estar lembrados daquela nebulosa história do buquê de flores do Joesley pra Marcela Temer, envolvendo um avião ou algo parecido. Muito pior do que não arrumar uma mulher atraente é alguém passar a mão nela na sua frente. Aliás, é bom que ela não goste muito de sexo exatamente por isso. Pode querer variedade.

Você pode julgar o Macron. Pode dizer que, se os sexos fossem trocados, todo o mundo ia achar a história esquisita. Mas a graça é justamente que os sexos estão trocados. Ele é que é o homem poderoso. Não é uma jovem menina em busca de fortaleza e proteção como a sociedade diz que ela só vai encontrar em uma figura masculina de autoridade, mais velha e respeitável. E, pelo menos, eles estão sempre juntos. Por mais que seja um recurso publicitário, temos imagens deles de mãos dadas, comparecem a eventos e cerimônias um acompanhando o outro. Parece um relacionamento. Parece um casamento. Parece que o Macron não está entediado por ter que conviver com uma criatura chata pra poder ter seu lugar no mundo. Não parece que ele seja um incel, reclamando da liberdade sexual feminina que faz com que elas não deem pra eles, apesar deles serem legais e bons em videogame. Parece que eles conversam.

Parece que eles vivem, fora de um mundo de ganhar dinheiro e respeito.

agosto 18, 2019

A Antiga Catedral e a Ermida do Ó


Esta semana fiquei sabendo que, durante a restauração da antiga Catedral, ali na Primeiro de Março, tinham desencavado a antiga Ermida do Ó. Assim, munido da minha câmera e minha nova lente, que eu estava doido pra usar, fui visitar o local. Tem um Museu e Sítio Arqueológico, minúsculos, na velha Sé, mas vale a visita. Vai me dizer que nunca viajou e foi visitar uma igreja que mais tarde descobriu ser do século XX e a maior armadilha de turista, sem nada de interessante dentro?

A Ermida do Ó era uma capelinha tosca e simples, como muitas do primevo Rio de Janeiro. As suas ruínas são essas da primeira e da segunda fotos. Ao seu lado foi construído um Hospício e não, não era para alojar os meus amigos de faculdade, mas o nome que se dava na época à Casa dos Romeiros. Quem fazia romaria ou peregrinação ao Rio de Janeiro do século XVI ninguém nunca explicou, mas pelo menos casa pra recebê-los tinha. Talvez justamente pela parcimônia desses fiéis é que quando chegaram na década de 80 uns padres pra fundar a Ordem de São Bento, alojaram eles lá. Logo depois, Manuel de Brito, capitão português que veio pra cá com Estácio de Sá e assim se tornou dono de umas terras, doou-lhes um morro e os beneditinos estão lá até hoje. Aliás, por causa desse Manuel de Brito é que a praia que tinha ali onde hoje é a Praça XV se chamava Praia de D. Manuel e até hoje a rua do Fórum se chama rua D. Manuel.




Realojados os padres, o Hospício logo em seguida recebeu outros. Eram carmelitas, com o mesmo intento de estabelecer sua ordem por aqui. Ofereceram-lhes a princípio um morro, mas eles o acharam ermo e distante. Era o Morro hoje de Santo Antônio (ou o que restou dele). Lembrem-se que naquela época a área da Lapa – Passeio, Carioca e redondezas – era um pantanal, e daqueles malcheirosos. Tanto que abriram uma vala pra drenar aquelas águas e renová-las. Hoje é a rua Uruguaiana e por isso ela é uma das poucas retas daquele tempo.

Os carmelitas gostaram da área onde estavam e conseguiram permissão para construir seu convento ali mesmo, em 1611, começando a construção em 1619, quando receberam permissão da Câmara pra usar as pedras da hoje Ilha das Enxadas, onde fica a Escola Naval, mas que na época não tinha nome e passou a se chamar Ilha de Ruy Vaz Brito porque este foi o governador que concedeu a licença de exploração.

A concessão de terreno mencionava a construção do convento e sua “cerca”. Talvez fosse a paliçada, que está na terceira foto. Na base de pedra, podem se ver os buracos onde ficariam os troncos. Curiosamente, é parecida com aquela de “O Novo Mundo”, do Terence Malick, com as toras espaçadas (se bem que no filme estavam mais pra gravetos do que pra toras). A nossa ideia é que qualquer paliçada seja maciça, como um forte, mas provavelmente eles não estavam esperando ataques de artilharia dos índios (contra quem ela foi provavelmente erigida) e queriam poder ver o que estava acontecendo do outro lado – como, curiosamente, os agentes de imigração disseram que queriam o “muro” pro Trump.



Na época, o mar batia até ali. Frei Vicente de Salvador (1) conta que uma baleia certa feita encalhou em frente ao Convento. Por algum motivo de aquecimento global ou fosse lá o que fosse, ainda no século XVI o mar já estava começando a recuar. E, como era um costume tolerado pelos governantes na época, a área que se formou ali passou a ser extensão daquela dos Carmelitas, que dela se apossaram. Até que em 1683 a Câmara botou o olho naqueles terrenos valorizados e resolveu reparti-los e aforá-los. Os padrecos ficaram furiosos, disseram que iam perder a vista, o ar fresco, que teriam o claustro devassado, enfim, botaram a boca no trombone. E não era de bom tom mexer com os caras – podiam ser monges, mas não do tipo que pensamos. Bagunceiros, irredutíveis, insurretos, tinham por algum motivo uma rivalidade com a Ordem da Misericórdia, que já naquela época possuía o monopólio dos funerais. Quando passava um féretro em frente ao Convento do Carmo, eles desciam de porrete na mão pra tocar o terror, hábito esse que mereceu uma ordem real vinda de Portugal pra acabar. Pra dar mais jeito de Ordem religiosa a eles, mais tarde foi nomeado um interventor, que ficou famoso por sua rigidez, Joaquim José Justiniano. O que foi uma pena, porque provavelmente a Igreja Católica não estaria perdendo tantos fiéis hoje em dia se tivesse guardado esses rituais.

Mas a queixa dos padres desordeiros deu resultado. Conta Vieira Fazenda que lhes foi cedido o direito àquela várzea em frente pelo rei, que para tanto argumentou: os Jesuítas, Beneditinos e Franciscanos ocupam montes e têm fresco em primeira mão; os Carmelitas ficaram na planície e precisam de ar e luz; logo, há toda a razão, e como eles são viventes como os mais, têm direito ao que pedem.”

E tão enfezados eram os capuchinhos daquela época que, quando viram uma pedra fundamental erigida naquele terreno foram lá e arrancaram. As autoridades foram reclamar com eles, que era uma afronta, afinal era um marco real – e um marco real concedendo aquela área aos carmelitas. Os padres disseram que não estavam acima de reconhecer um erro e que a poriam de volta no lugar, o que fizeram.

O atual convento já foi alvo de muitas reformas, o que lhe descaracterizou a fachada. O mais próximo do aspecto original, segundo Vivaldo Coaracy, é a face que dá pra Sete de Setembro, que está na quarta foto. Os carmelitas ficaram instalados no Convento até a chegada da Família Real. Sendo o Paço muito pequeno pro tamanho e pros gostos dos portugueses, eles se adonaram também do edifício ali próximo e foi assim que eles foram sendo empurrados até a Tijuca, na igreja dos Capuchinhos.



Mas antes disso, no século XVIII, eles construíram a atual igreja de Nossa Senhora de Monte do Carmo, a antiga catedral. E como ela se tornou a antiga catedral, com tantas igrejas mais luxuosas, como a Candelária, dando mole? A primeira Sé do Rio, quando ele se tornou uma diocese, foi uma igreja no Morro do Castelo, no século XVII, que, com a mudança da cidade pra várzea e crescimento, foi se tornando cada vez menos frequentada, ainda mais com o templo dos Jesuítas, mais opulento e atraente, ali perto. Quando foi instituída na cidade a Ordem de São Benedito, dos “homens pretos”, foi-lhes concedido alojamento junto à Sé.

Os negros, obviamente, não recebiam um bom tratamento das autoridades eclesiásticas, que muitas vezes os tratavam como provavelmente os viam – seus escravos. Após alguns anos, eles se cansaram, e obtiveram permissão para construir sua própria igreja. Após obtê-la, conseguiram surpreendentemente levantar uma grande quantidade de fundos e construíram a atual Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, aquela branca do lado do camelódromo – a da quinta foto. Mais próxima do Centro da cidade da época, e relativamente monumental, a turma do Bispo logo achou que ali seria um ótimo local para a nova Sé. Principalmente porque as outras irmandades não estavam a fim de receber ordens de estranhos dentro de sua própria casa, e ali era a casa dos negros mesmo.



Então, como num pesadelo, na igreja que eles construíram para se livrar da turma episcopal, logo estava morando a turma episcopal – e torrando a paciência deles novamente. O pessoal da Sé vivia dizendo que ia logo construir um templo, mas foram ficando por quase 80 anos. Mesmo tendo sido designado local pra construção – que passou a se chamar “Largo da Sé Nova” e hoje atende por Largo de São Francisco, eles continuaram aboletados junto aos homens pretos. O que só iria mudar com a chegada da Família Real, também.

A Família Real chegou e ia assistir à primeira missa no Brasil. Deles, não do Brasil. Obviamente seria uma ocasião de gala, cheia de festança e jaez. O povo da Sé mandou avisar aos homens pretos que era pra eles se esconderem, para que os Bragança não se ofendessem com a presença de negros. O que, obviamente, levou-os a se enfileirarem de cada lado da rua do Rosário carregando palmas para saudar o rei. O espetáculo enfureceu tanto o bispado que a Matriz se mudou para a igreja dos carmelitas, que tinha a conveniência pros regentes que era ali do lado mesmo.

A Igreja sofreu várias reformas, e uma recente restauração. A torre direita é do começo do século XX e aquele Cristo (ou santo) realista lá em cima não tem nada a ver com o resto. Pelo menos ainda conserva o frontão que é considerado o mais bonito do Rio. A recente restauração foi a que desencavou a Ermida do Ó. Ela – e a catedral, é claro – estão abertas para visitas, aos sábados, de 9h30m a 12h30m. Seja um bom carioca e vá visitar. Não temos muito monumentos antigos e com história pra apreciar nesta cidade.

O restante das fotos são imagens variadas da igreja, incluindo os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, na cripta desde 1903. Esperamos que tenham se divertido e curtido o tour.















P. S.: a última foto é obviamente obra de um pedófilo pervertido do século XVIII.



(1) Escreveu uma história do Brasil, acho que em 1723, e, pela primeira vez, alguém escreve que o problema do Brasil é a mentalidade extrativista – os colonos vinham aqui somente pra extrair o que pudessem, lucrar o que pudessem, e voltar pra casa, sem intenção de construir uma nação ou permanecer. Certos conceitos da nossa terra são mais antigos do que pensamos.