Esta
semana fiquei sabendo que, durante a restauração da antiga
Catedral, ali na Primeiro de Março, tinham desencavado a antiga
Ermida do Ó. Assim, munido da minha câmera e minha nova lente, que
eu estava doido pra usar, fui visitar o local. Tem um Museu e Sítio
Arqueológico, minúsculos, na velha Sé, mas vale a visita. Vai me
dizer que nunca viajou e foi visitar uma igreja que mais tarde
descobriu ser do século XX e a maior armadilha de turista, sem nada
de interessante dentro?
A Ermida
do Ó era uma capelinha tosca e simples, como muitas do primevo Rio
de Janeiro. As suas ruínas são essas da primeira e da segunda
fotos. Ao seu lado foi construído um Hospício e não, não era para
alojar os meus amigos de faculdade, mas o nome que se dava na época
à Casa dos Romeiros. Quem fazia romaria ou peregrinação ao Rio de
Janeiro do século XVI ninguém nunca explicou, mas pelo menos casa
pra recebê-los tinha. Talvez justamente pela parcimônia desses
fiéis é que quando chegaram na década de 80 uns padres pra fundar
a Ordem de São Bento, alojaram eles lá. Logo depois, Manuel de
Brito, capitão português que veio pra cá com Estácio de Sá e
assim se tornou dono de umas terras, doou-lhes um morro e os
beneditinos estão lá até hoje. Aliás, por causa desse Manuel de
Brito é que a praia que tinha ali onde hoje é a Praça XV se
chamava Praia de D. Manuel e até hoje a rua do Fórum se chama rua
D. Manuel.
Realojados
os padres, o Hospício logo em seguida recebeu outros. Eram
carmelitas, com o mesmo intento de estabelecer sua ordem por aqui.
Ofereceram-lhes a princípio um morro, mas eles o acharam ermo e
distante. Era o Morro hoje de Santo Antônio (ou o que restou dele).
Lembrem-se que naquela época a área da Lapa – Passeio, Carioca e
redondezas – era um pantanal, e daqueles malcheirosos. Tanto que
abriram uma vala pra drenar aquelas águas e renová-las. Hoje é a
rua Uruguaiana e por isso ela é uma das poucas retas daquele tempo.
Os
carmelitas gostaram da área onde estavam e conseguiram permissão
para construir seu convento ali mesmo, em 1611, começando a
construção em 1619, quando receberam permissão da Câmara pra usar
as pedras da hoje Ilha das Enxadas, onde fica a Escola Naval, mas que
na época não tinha nome e passou a se chamar Ilha de Ruy Vaz Brito
porque este foi o governador que concedeu a licença de exploração.
A
concessão de terreno mencionava a construção do convento e sua
“cerca”. Talvez fosse a paliçada, que está na terceira foto. Na
base de pedra, podem se ver os buracos onde ficariam os troncos.
Curiosamente, é parecida com aquela de “O Novo Mundo”, do
Terence Malick, com as toras espaçadas (se bem que no filme estavam
mais pra gravetos do que pra toras). A nossa ideia é que qualquer
paliçada seja maciça, como um forte, mas provavelmente eles não
estavam esperando ataques de artilharia dos índios (contra quem ela
foi provavelmente erigida) e queriam poder ver o que estava
acontecendo do outro lado – como, curiosamente, os agentes de
imigração disseram que queriam o “muro” pro Trump.
Na época,
o mar batia até ali. Frei Vicente de Salvador (1) conta que uma
baleia certa feita encalhou em frente ao Convento. Por algum motivo
de aquecimento global ou fosse lá o que fosse, ainda no século XVI
o mar já estava começando a recuar. E, como era um costume tolerado
pelos governantes na época, a área que se formou ali passou a ser
extensão daquela dos Carmelitas, que dela se apossaram. Até que em
1683 a Câmara botou o olho naqueles terrenos valorizados e resolveu
reparti-los e aforá-los. Os padrecos ficaram furiosos, disseram que
iam perder a vista, o ar fresco, que teriam o claustro devassado,
enfim, botaram a boca no trombone. E não era de bom tom mexer com os
caras – podiam ser monges, mas não do tipo que pensamos.
Bagunceiros, irredutíveis, insurretos, tinham por algum motivo uma
rivalidade com a Ordem da Misericórdia, que já naquela época
possuía o monopólio dos funerais. Quando passava um féretro em
frente ao Convento do Carmo, eles desciam de porrete na mão pra
tocar o terror, hábito esse que mereceu uma ordem real vinda de
Portugal pra acabar. Pra dar mais jeito de Ordem religiosa a eles,
mais tarde foi nomeado um interventor, que ficou famoso por sua
rigidez, Joaquim José Justiniano. O que foi uma pena, porque
provavelmente a Igreja Católica não estaria perdendo tantos fiéis
hoje em dia se tivesse guardado esses
rituais.
Mas
a queixa dos padres desordeiros deu resultado. Conta Vieira Fazenda
que lhes foi cedido o direito àquela várzea em frente pelo rei, que
para tanto argumentou: “os
Jesuítas, Beneditinos e Franciscanos ocupam montes e têm fresco em
primeira mão; os Carmelitas ficaram na planície e precisam de ar e
luz; logo, há toda a razão, e como eles são viventes como os mais,
têm direito ao que pedem.”
E tão
enfezados eram os capuchinhos daquela época que, quando viram uma
pedra fundamental erigida naquele terreno foram lá e arrancaram. As
autoridades foram reclamar com eles, que era uma afronta, afinal era
um marco real – e um marco real concedendo aquela área aos
carmelitas. Os padres disseram
que não estavam acima de reconhecer um erro e que a poriam de volta
no lugar, o que fizeram.
O
atual convento já foi alvo de muitas reformas, o que lhe
descaracterizou a fachada. O mais próximo do aspecto original,
segundo Vivaldo Coaracy, é a face que dá pra Sete de Setembro, que
está na quarta foto. Os carmelitas ficaram instalados no Convento
até a chegada da Família Real. Sendo o Paço muito pequeno pro
tamanho e pros gostos dos portugueses, eles se adonaram também do
edifício ali próximo e foi assim que eles foram sendo empurrados
até a Tijuca, na igreja dos Capuchinhos.
Mas
antes disso, no século XVIII, eles construíram a atual igreja de
Nossa Senhora de Monte do Carmo, a antiga catedral. E como ela se
tornou a antiga catedral, com tantas igrejas mais luxuosas, como a
Candelária, dando mole? A primeira Sé do Rio, quando ele se tornou
uma diocese, foi uma igreja no Morro do Castelo, no século XVII,
que, com a mudança da cidade pra várzea e crescimento, foi se
tornando cada vez menos frequentada, ainda mais com o templo dos
Jesuítas, mais opulento e atraente, ali perto. Quando foi instituída
na cidade a Ordem de São Benedito, dos “homens pretos”, foi-lhes
concedido alojamento junto à Sé.
Os
negros, obviamente, não recebiam um bom tratamento das autoridades
eclesiásticas, que muitas vezes os tratavam como provavelmente os
viam – seus escravos. Após alguns anos, eles se cansaram, e
obtiveram permissão para construir sua própria igreja. Após
obtê-la, conseguiram surpreendentemente levantar uma grande
quantidade de fundos e construíram a atual Igreja de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito, aquela branca do lado do camelódromo –
a da quinta foto. Mais próxima do Centro da cidade da época, e
relativamente monumental, a turma do Bispo logo achou que ali seria
um ótimo local para a nova Sé. Principalmente porque as outras
irmandades não estavam a fim de receber ordens de estranhos dentro
de sua própria casa, e ali era a casa dos negros mesmo.
Então,
como num pesadelo, na igreja que eles construíram para se livrar da
turma episcopal, logo estava morando a turma episcopal – e torrando
a paciência deles novamente. O pessoal da Sé vivia dizendo que ia
logo construir um templo, mas foram ficando por quase 80 anos. Mesmo
tendo sido designado local pra construção – que passou a se
chamar “Largo da Sé Nova” e hoje atende por Largo de São
Francisco, eles
continuaram aboletados junto aos homens pretos. O que só iria mudar
com a chegada da Família Real, também.
A
Família Real chegou e ia assistir à primeira missa no Brasil.
Deles, não do Brasil. Obviamente seria uma ocasião de gala, cheia
de festança e jaez. O povo da Sé mandou avisar aos homens pretos
que era pra eles se esconderem, para que os Bragança não se
ofendessem com a presença de negros. O que, obviamente, levou-os a
se enfileirarem de cada lado da rua do Rosário carregando palmas
para saudar o rei. O espetáculo enfureceu tanto o bispado que a
Matriz se mudou para a igreja dos carmelitas, que tinha a
conveniência pros regentes que era ali do lado mesmo.
A
Igreja sofreu várias reformas, e uma recente restauração. A torre
direita é do começo do século XX e aquele Cristo (ou santo)
realista lá em cima não tem nada a ver com o resto. Pelo menos
ainda conserva o frontão que é considerado o mais bonito do Rio. A
recente restauração foi a que desencavou a Ermida do Ó. Ela – e
a catedral, é claro – estão abertas para visitas, aos sábados,
de 9h30m a 12h30m. Seja um bom carioca e vá visitar. Não temos
muito monumentos antigos e com história pra apreciar nesta cidade.
O
restante das fotos são imagens variadas da igreja, incluindo os
restos mortais de Pedro Álvares Cabral, na cripta desde 1903.
Esperamos que tenham se divertido e curtido o tour.
P.
S.: a última foto é obviamente obra de um pedófilo pervertido do
século XVIII.
(1)
Escreveu uma história do Brasil, acho que em 1723, e, pela primeira
vez, alguém escreve que o problema do Brasil é a mentalidade
extrativista – os colonos vinham aqui somente pra extrair o que
pudessem, lucrar o que pudessem, e voltar pra casa, sem intenção de
construir uma nação ou permanecer. Certos conceitos da nossa terra
são mais antigos do que pensamos.
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