janeiro 14, 2020

A Justiça Cativa


Antes da Constituição de 1988, os concursos para juízes exigiam pelo menos 35 anos de idade do candidato. Era um tempo para o sujeito se formar e passar uns 10 anos trabalhando em algum lugar antes de encadeirar-se em sua sinecura. Não por coincidência, já diziam os antigos – aquele povo qe vivia antes da Constituição de 1988 – que você levava 10 anos pra se tornar bom naquilo que gostava de fazer.

Nesse ínterim, se você fosse trabalhar com Direito, você iria lidar com clientes. Com juízes. Com funcionários. Interagir com gente, enfim. Aprender como funciona o mundo. Porque um dos assuntos da moda entre o povo pensador é como as redes sociais criam “bolhas”, isolando o indivíduo do contato com pessoas que vivam ou pensem diferentemente dele, mas na realidade estamos fazendo o mesmo há décadas, desde que arquitetos e governantes decidiram que o modelo ideal de cidade é a equivocada “cidade-jardim” de Le Corbusier – uma ideia, aliás, que lá por fora já está se tornando obsoleta, mas por aqui ainda é um ideal de vida (cf. Barra da Tijuca, que, mesmo nos anos 70, o auge do pensamento urbanista modernista, era conhecida como um “bairro sem esquinas e, portanto, sem bares de esquina”).

Quem aliás primeiro chamou a atenção pra isso foi a Jane Jacobs no seu fundamental e altamente influente livro, “Vida e Morte das Grandes Cidades”. Ela conta que, no começo do século XX, com o automóvel barateando, Le Corbusier e sua turma sonharam com uma “cidade-jardim”. As pessoas não precisariam morar perto do trabalho, porque poderiam se deslocar até lá em seus próprios veículos. Pra quem viveu nos já citados anos 70, respirando as titânicas nuvens de carbono dos escapamentos dos ônibus e carros mal regulados, a ideia pode soar ridícula, mas é porque, segundo a Jane, nunca tivemos que chafurdar em bosta de cavalo acumulada por ruas estreitas e fedorentas, sem ventilação ou árvores.

Além do mais, no século XIX, um prefeito de Paris, o Haussman, botou meia cidade abaixo pra criar bulevares arborizados, com casas devendo obedecer regulamentos não só de construção como de estética, e amplos, bem amplos (segundo muita gente, pra facilitar a movimentação de tropas pra reprimir as constantes revoltas populares parisienses). Que fica bonito é inegável, mas esse tipo de reforma acaba levando primeiro ao afidalgamento do lugar (gentrificação de cu é rola) pela valorização imobiliária e, subsequentemente, ainda que paradoxalmente, à decadência da área (a turma endinheirada acaba preferindo ir criar seus filhos em um lugar mais isolado, onde não tenha tanto barulho e movimento, deixando tudo pro comércio e pra serviços, o que torna o local deserto à noite, atraindo prostituição, tráfico, violência etc. Etc. - cf. Avenida Central, atual Rio Branco, aqui no Rio de Janeiro).

Mas, voltando ao Le Corbusier. Influenciado por Haussman, ele foi ainda mais radical. Livraria as massas da imundície e pestilência das fezes equinas e as levaria ao paraíso: blocos residenciais cercados de jardins e alamedas arborizadas, com enooormes ruas para o deslocamento dos veículos que levariam o povo a seu trabalho e às suas compras, em centros comerciais. Bem-vindos a Brasília e à Barra da Tijuca. Ou aos famosos “suburbs” americanos (1).

A Jane afirmava que esse tipo de urbanismo é típico de alguém que ODIAVA cidades. Pois o bom da cidade é justamente a mistura. A convivência com pessoas de outras camadas sociais, com outros objetivos na vida, com outro tipo de pensamento. Pra vocês entenderem, aquela coisa do jornaleiro que tomava conta pra você se o encanador ia chegar, o coroa dono do bazar/papelaria/loja de material de construção/armarinho/loja de brinquedos (sim, antigamente tinha muitas e muitas dessas lojinhas) que trocava seu cheque e por aí vai. É exatamente essa vivência que é o objetivo da cidade. O pessoal ia pra ela pra arrumar trabalho, aprender um ofício, abrir as ideias. Já que falamos de Paris, os pintores, escritores e afins iam todos pra lá no começo do século XX justamente pra ter contato com o pensamento de toda essa turma onde tudo estava acontecendo agora.

Não demorou muito pras pessoas descobrirem o que podia dar errado com esse urbanismo: grandes engarrafamentos, dificuldade pra sair do bairro pra fazer qualquer coisa e voltar (Barra, estou falando com você), tédio e degradação. Já em 1965 essa mulher (http://blog.modernmechanix.com/one-womans-confession-i-hate-suburbia/) reclamava de tudo: acabavam não indo para o sonhado clube ou golfe por falta de tempo, gasto nos congestionamentos; falta de entretenimento; falta de vida social ou cultural, porque ninguém tinha disposição pra ir até o centro: e, finalmente, voltando lá pro assunto inicial, sua preocupação com a sua filha adolescente atraída pelo filho do vizinho, que a mãe julgava superficial e materialista – mas com quem mais ela iria se enrabichar, se não conhecia ninguém, ou pelo menos ninguém diferente? (2)

A Constituição de 1988 acabou com esses limites de idade por causa de sua vocação antidiscriminatória. Ninguém deveria ser prejudicado por problemas físicos, religião, ideologia, orientação sexual ou... idade. Pra cima ou pra baixo. Afinal de contas, porque vedar acesso à magistratura de gente que já com 20 anos poderia passar num concurso pra juiz? Por falta de vivência, talvez.

Certo, certo, não vamos discordar que existem aqueles gênios superdotados que aos 14 anos já estão na faculdade (o que, aliás, costuma levar a gente que aos 30 anos não sabe o que quer na vida, conforme um documentário que vi há alguns anos, mas cujo linque não consegui achar). Mas Direito não é uma ciência exata. Leis não se aplicam com manuais, apesar do que possam querer fazer os leigos acreditar. E o Estado de Direito é muito mais complexo e exigente do que nós, nos inexperientes 20 anos, poderíamos pensar.

Um juiz tem que saber como a sociedade funciona e os limites de seus poderes e entendimento. O que é um conhecimento que 10 anos de advocacia ajudariam bastante a adquirir (ou piorar, mas aí são casos perdidos mesmo). Aceitar garotada de 20 e poucos anos que nunca trabalhou de verdade na vida e saiu da faculdade pra ficar em casa estudando prum concurso é como querer botar na magistratura astros do rock que gostam de demolir quartos de hotel enquanto cheiram todas ou jogadores de futebol que acham que craque é só o sujeito que faz muito gol ou dribla todo o mundo.

Descobrir como sentenças afetam as vidas de seus clientes, ser reprimido ou intimidado por juízes e funcionários, aprender a lidar com as pessoas e seus sentimentos, isso é um capital que não se adquire lendo livros ou aprendendo teorias. Até porque, na verdade, Direito é como História. O historiador não é aquele sujeito que decora todas as datas, até porque isso basta ver na enciclopédia. É na verdade o cara que entende como as coisas se desenrolam, a vida e a morte das civilizações, e pode até mesmo descobrir analogias que nos permitam prever o futuro. Do mesmo modo, o bom advogado – ou juiz - não é necessariamente aquele que sabe todos os artigos da Lei, mas que entende o que é justo e é legal e usa a lógica para aplicar esses conhecimentos a casos concretos. E só colecionando um monte de experiências e interações é que se pode chegar a uma verdadeira compreensão do que é justo e legal.

Também não vale nem a pena levar em conta que garotada tem mais tempo e concentração pra estudar. Passar num concurso tão jovem também pode levar a criatura a perder o hábito de aprender – sim, porque isso é um dos maiores problemas com nosso sistema educacional, quando realmente começamos a entender e a apreciar o que é aprender, somos jogados no mercado de trabalho, sem tempo pra isso. Gente que estuda o tempo inteiro, às vezes anos (1 ou 2 anos parecem uma eternidade quando se tem 20, lembram?), passa no que quer e depois pronto, não quer mais ver aquilo. Cristaliza seu conhecimento e não quer mais saber de nada.

As nossas bolhas chegaram à Justiça e criaram gente que chegou ao pináculo da profissão (3) ainda muito jovens. Não conhecem restrições, não têm ideia das consequências dos seus atos e não conhecem as pessoas. É assim que formamos gente que condena porque tem convicção, mas não provas, que acha justo que ninguém sequer investigue se algo assustou um policial e ele matou o cara, e que acha que qualquer um que queira, basta estudar e chega lá. Um amigo meu definiu bem, nós inventamos os juízes criados em cativeiro.



  1. Não vou traduzir porque o que chamamos de subúrbio é outra coisa completamente diferente. O dos americanos é aquela coisa que vemos em filme, um monte de casinhas com quintal, longe do centro, longe de tudo.
  2. Pra dar um pouco de tempero ao texto, vou contar que justamente esse isolamento e falta de entretenimento teriam dado origem à cultura do “swing” - a popular troca de esposas. Juntando-se a isso o tédio das mulheres, ainda não inseridas no mercado de trabalho e passando as tardes sozinhas em casa, com suas tarefas reduzidas por causa dos eletrodomésticos e refeições industrializadas (restos de refeição envolvidos em gelatina instantânea viraram um fundamento da culinária dos anos 50!, e começou a era das infidelidades, dos divórcios, e das festas da chave. Essa modorra existencial levando a sexo casual foi o tema de vários filmes eróticos (não pornográficos, até porque nem rolava na época) de Joe Sarno, hoje em dia um cultuado diretor, considerado um autor cinematográfico. Confira a sua obra-prima, “Sin in the Suburbs”. Pode começar com esse trecho no VocêTubo, pra depois ver se tem coragem de me dizer que o Kubrick não assistiu a essa fita.
  3. Na verdade, um advogado realmente bem-sucedido ganha mais – e pode amealhar bem mais poder – do que um juiz. O que causa muitas rivalidades quando dois grandes egos se encontram, um de cada lado da tribuna.