novembro 20, 2021

Viva o Pensamento Renascentista

 Tem um conto do Isaac Asimov, agora eu esqueci qual, sobre um mundo onde as crianças aos 7 anos entram numa máquina que baixa instruções pra cabeça delas e elas saem sabendo ler. Ninguém vai pra escola. Aos 20 anos, a garotada – presumivelmente depois de passar a adolescência toda chapada, imersa em sexo e álcool – volta mais uma vez pro mesmo lugar, dessa vez pra se ligarem numa engenhoca que vai analisar as sinapses e os neurônios dos viventes, decidir pra qual carreira a mente deles é desenhada e eles receberem um daunloude do curso pro qual foram designados.

O protagonista sonha em ser, se não me engano, algum tipo de engenheiro eletrônico, físico ou inventor (ou então “cientista”, naquela vaga definição que envolvem Reed Richards e Peter Parker) e passou sua juventude lendo muitos livros sobre o assunto. No dia em que ele vai lá receber o curso na cabeça, os orientadores lhe explicam que ler sobre o que gostaria de fazer não influencia a máquina, só o que interessa é o que ela decidir. E olha só, apesar do nosso herói ter fama de muito inteligente e dedicado, a traquitana chega à conclusão que o cérebro dele não tem nenhuma aptidão específica pra nada. E a história começa justamente com ele numa Instituição, conversando com um interno veterano, que passa o tempo todo lendo. Aos poucos, isso tudo que contei nos dois primeiros parágrafos vai sendo narrado em flechebeque e, no final do primeiro ato, revela-se que a Instituição é uma “Casa para Débeis Mentais”.

O garoto em quem já investimos nossa simpatia resolve se rebelar e fugir da Casa, e após algumas peripécias, consegue uma entrevista com algumas autoridades, tentando vender a ideia de que as pessoas poderiam aprender por si próprias e assim evitar casos muito comuns em que engenheiros, por exemplo, não sabiam trabalhar com máquinas que tinham aparecido APÓS sua graduação e ficavam restritos a empregos que não a utilizassem. As autoridades rebatem a ideia, o rapaz tem um desmaio e, quando acorda, tudo está resolvido. 

Sim, ao despertar ele dá de cara com seu ex-companheiro de Casa, agora vestido como uma autoridade. Enquanto o garoto se recobrando, ele chegou à conclusão que essa inabilidade das pessoas de se adaptarem às novidades significava que ALGUÉM que não recebera seu conhecimento pelas máquinas era quem inventava esses aparelhos novos. As pessoas criativas. Os inventores e artistas. Aqueles cujo conhecimento e vontade de saber não se enquadram dentro de nenhum campo específico, saca? Mas não basta isso, é preciso também ter iniciativa e gana, por isso a história de internar na casa dos débeis mentais, pra ver se o sujeito se rebela e demonstra vontade de quebrar os paradigmas blablabla etc. Etc. “A maioria das pessoas está satisfeita com o que aprendeu e tem muito orgulho de andar por aí com o crachá exibindo sua profissão, como “cozinheiro registrado” ou “advogado registrado”, explica o antigo parceiro de instituição. O crachá era recebido no dia da Graduação. “Poucos são os que estão a fim de ir além”.

Mas e o que acontecia com quem não demonstrasse iniciativa? O sujeito que gostava de ler explica que estes se tornam os psicólogos, filósofos, sociólogos, antropólogos. Alguém tem que analisar as fitas de cursos, os avanços tecnológicos, as personalidades dos candidatos e desenhar os aprendizados e mesmo as orientações da sociedade. O ex-companheiro do protagonista era, por exemplo, um psicólogo. E assim acaba a história, com final feliz, como normalmente favorecido pelo Asimov (exceto por alguns contos do auge da Guerra Fria).

Lembrei dessa história por conta do nosso ex-ministro da Educação e do eleito, que já várias vezes disseram que brasileiro tem que aprender a ler, escrever e fazer conta e acabar essa história de se estudar Ciências Humanas (1). O problema é que ler e escrever não adianta de nada se a pessoa não conseguir interpretar texto e decorar tabuada não vai ter nenhuma utilidade no mundo das calculadoras se o vivente não souber como funciona uma operação aritmética. Poucas pessoas têm sequer ideia que elas envolvam Teoria dos Conjuntos. E que “lógica” também decorre dela. Sem essa compreensão, vivem num mundo de analogias – e, por consequência, falácias. 

A próxima digressão agora é sobre uma matéria que li outro dia, infelizmente agora não me lembro onde, sobre como entendemos errado a história de que na China os salários são baratos. A imagem de que no Império do Meio há um monte de operários trabalhando em suétechopes, ganhando duas mariolas por dia seria, segundo o articulista, completamente ultrapassada. Não só já não existem tantos trabalhadores miseráveis recebendo consideravelmente menos que os assínicos, como uma imensa parte desse tipo de labor atualmente é feita por robôs. As remunerações baratas que fazem valer a pena ter uma fábrica num lugar praonde a rota transpolar é mais curta seriam as dos sujeitos formados com títulos universitários, como os engenheiros, analistas de sistemas, programadores. Isso porque na América, com os custos das universidades decentes em centenas de milhares de dólares, os ordenados desse povo, ainda que abaixo do que os pais recebiam, é bem acima daqueles dos chineses educados em faculdades estatais comunistas.

Mas o mais surpreendente é que o uso desses sujeitos formados não é pra novos desenvolvimentos. O uso desses universitários é basicamente técnico. Seus títulos na verdade os credenciam a ser os gerentes, supervisores, ou até mesmo os zeladores das linhas de produção. São os viventes que vão fazer os ajustes nas máquinas, na engenharia da produção, dinamizar o throughput, flexibilizar a distribuição e vários outros clichês corporativos. Porque esses diplomas de “exatas” e afins se tornaram, nesse mundo de robôs e algoritmos, exatamente isso – um curso técnico mais profundo. É aquele efeito que você já deve ter visto de algum conhecido, o bancário que faz Administração ou Economia à noite pra poder subir um nível salarial, ou o concursado que faz Direito pro mesmo fim. Já escrevi aqui inclusive sobre a garotada mais bem-nascida que vai se embrenhar nas leis não pra advogar ou se especializar em profundas análises dos códigos civis e penais, mas sim pra fazer concurso pra juiz e disparar sentenças como aprendidas na faculdade, porque não aprenderam a pensar, saindo direto dos bancos escolares, viciados em pensar que estudar serve apenas para conseguir as notas necessárias. E isso, é claro, não se aplica apenas a juízes, mas a gente em todos os ramos desses conhecimentos “exatos”.

E mesmo essa tecnização universitária, criando montes de gerenciadores de rotina, também tem um prazo de validade. Assim como a robotização destruiu os operários de fábricas, a informatização está começando a destruir os velhos empregos de classe média. Hoje em dia bancos funcionam praticamente com atendentes de telemarketing e gerentes. Todos aqueles cargos clericais se foram. E mesmo as atribuição dos gerentes não passam de administração da rotina. Algoritmos de mesas de crédito decidem a quem e como devem ser feitos os empréstimos, algoritmos de mesas de investimentos decidem onde e em quem aplicar e assim por diante. Tribunais funcionam com metade dos funcionários, pois não há mais necessidade de um batalhão de datilógrafos pra endereçar as intimações. Artefinalistas, letristas, tipógrafos, esse tipo de gente não mais povoa agências de publicidade. Essas tomadas de decisão ou habilidades artísticas básicas já podem ser feitas por qualquer um que saiba usar um computador. Quem desejar realmente um trabalho à prova de futuro não pode ser o operador desses instrumentos. Tem que ser o sujeito que desenha ou programa esses instrumentos. Ou quem toma as decisões complexas, que vão formatar os algoritmos para as decisões mais simples. Os ANALISTAS.

Como esse texto já está prolixo mesmo, é hora então de contar outra historinha (esse negócio de gente contando uma história por cima da outra me lembra A COMPANHIA DOS LOBOS). E, por falar em contos de fada realistas ingleses do final dos anos 80, início dos 90, a historinha que vou contar agora é sobre o Neil Gaiman. O inglês gótico lá pelo meio dos anos Zero (sim, século XXI), recebeu um convite do governo chinês pruma convenção de nerds. Você sabe, aqueles encontros de fãs e autores de fantasia, ficção científica, histórias pseudomedievais, super-heróis e essas coisas todas. O Gaiman jogou seu sobretudo e suas roupas pretas na mala e se mandou lá pro outro lado do mundo. E estava animado o negócio. Tanto que, a certa hora, perguntou lá pros representantes do governo que tinham ido recebê-lo, “sabe, eu fiquei surpreso de vocês terem me chamado pressa convenção. Não faz muito tempo vocês nem publicavam meus livros, porque eram pueris fantasias burguesas e em nada contribuíam para formar o cidadão”. 

Os representantes do governo concordaram e explicaram pro inglês cabeludo o que tinha levado-os a mudar de ideia: “Bem, sr. Gaiman, estamos muito felizes de finalmente encontrá-lo face a face. Durante muito tempo o senhor foi um escritor fascinante... fascinante mas que julgávamos pouco poder oferecer para moldar o caráter de um útil cidadão de nossa milenar nação. Mas, nos últimos anos, começamos a perceber que formávamos engenheiros, programadores e desainers muito bons para fazer engenharia reversa de outros produtos, ou mesmo simplificar meios de produção de certas mercadorias, barateando seu custo... mas não temos grandes inovadores. Faltam-nos aqueles criadores visionários que impulsionam o grande salto para a frente... Então, começamos a fazer uma pesquisa, no estilo que vocês anglo-saxões chamariam de analytics ou big data. Esquadrinhamos os fatos conhecidos das vidas desses grandes inovadores e chegamos a uma surpreendente conclusão. Essas pessoas costumam ter tido durante a infância uma grande atração por histórias fantásticas e de ficção científica. Devoraram livros e livros – e filmes e afins em períodos mais recentes – relativos a mundos que nunca existiram. Não somos inflexíveis, sr. Gaiman, e aprendemos bastante rapidamente com nossos equívocos. Portanto, em vez de desencorajar esse tipo de literatura e arte, passamos em pouco tempo a encorajá-la, na esperança de forjar com ideias retiradas de universos alternativos o futuro do Império do Meio” (provavelmente não com essas palavras, é claro).

Isso porque esse tipo de mente criativa precisa de mais estímulo e até uma certa idade eles não têm compreensão suficiente pra pegar um livro sobre a História da Riqueza do Homem. Então partem pra fantasia, que requer menos conhecimento factual sobre o mundo real. Aqueles que desde cedo saem em uma jornada pra conhecer as pessoas nesse mundo real, então, fazem melhor ainda. Porque a mente humana, pra ser produtiva, precisa de estímulo. E ensinar a ler, escrever e fazer contas, a seguir as regras exatas das “exatas” sem questioná-las, sem delas duvidar, sem desafiá-las, é a estrada da mediocridade. Um programa de OCR lê mais rápido e eficientemente do que a imensa maioria das pessoas. Uma calculadora de 10 reais faz contas melhor do que qualquer gênio matemático. Ler e escrever não é ensinar a fazer um texto; fazer contas não é matemática. Ambas são formas de arte, literatura e matemática pura, essa particularmente uma ciência abstrata e praticamente irreconhecível pelos fãs do tecnicismo.

Bill Gates largou o curso de Direito em Harvard pra ser o homem mais rico do mundo. Marissa Mayer, ex-executiva top do Google e ex-presidente do Yahoo, “ingressou na Universidade de Stanford pretendendo se tornar neurocirurgiã pediátrica, mas trocou o curso de neurociência pediátrica para sistemas simbólicos, que combinava filosofia, psicologia cognitiva, linguística e ciência da computação”. Steve Jobs famosamente nunca se formou, apesar do que seus pais adotivos tinham prometido à sua mãe biológica (ela não ficou chateada com isso). Ele chegou a entrar numa faculdade, mas cursou apenas 6 meses e obteve uma permissão para assistir aulas livremente, por 18 meses, como Observador. Segundo o próprio, um dos cursos que mais o impressionou e influenciou foi Caligrafia. Nas palavras do sr. Maçã, "aprendi sobre letras com serifas e sem serifas, sobre variar a quantidade de espaço entre diferentes combinações de letras, sobre o que torna uma tipografia excelente. Era lindo, histórico, artisticamente sutil de uma maneira que a ciência não pode captar, e achei fantástico”. Bem-vindos ao povo que, no mundo do conto do Asimov, iria parar na “Casa”. Esse é o tipo de gente que queremos formar. O resto são empregos que vão acabar. A única formação técnica com futuro pelo menos pelos próximos anos é o tipo de ensino que ninguém quer financiar: pedreiros, carpinteiros, bombeiros hidráulicos, porque não temos nenhuma previsão de quando teremos um robô capaz de quebrar uma parede, encontrar um defeito e consertá-lo. E, por incrível que pareça, ENCONTRAR UM DEFEITO NESSAS COISAS E SABER CONSERTAR exige um conhecimento analítico que surpreenderia a maior parte dos universitários que sabem ler, escrever e fazer conta e chamam o chefe quando veem algo com o qual não sabem lidar.

Isso me lembra ainda quando, depois de uma longa entrevista ao Globo, o Eugênio Gudin tornou-se colunista no jornal. Não de economia, mas de variedades, um precursor do Roberto Campos. Só o conheci já quase nonagenário – o que hoje em dia valeria como centenário – e tinha e apenas uns 14, 15 anos, mas o tipo de pensamento conservador “iluminado” dele me deixava furioso. Americanófilo declarado, defendia ideias de que os ianques tinham perdido a guerra do Vietnã por causa dos protestos dos hippies e do Congresso, porque não podiam usar todo o seu arsenal contra aqueles minúsculos orientais (não, eles não podiam usar porque senão os soviéticos iriam usar o deles também) e que não fazia sentido tentar industrializar o Brasil, porque era pouco inteligente tentar competir com a indústria estadunidense.

Hoje em dia ninguém tenta rivalizar com o magnífico parque industrial americano mesmo. Ele migrou todo pra outros lugares. Ficaram os analistas, os desenhistas. Ninguém compra mais produtos “made in USA”, mas coisas como “made in China, designed in Palo Alto, California”. A propriedade intelectual está se tornando o bem mais valioso. Já aconteceu com a Inglaterra e o Japão. Este último, inclusive, está cada vez mais dominando o mundo culturalmente à base de animê, mangá e ninfetinhas amarradas sendo estupradas por tentáculos. Mas não era por causa disso que o Gudin achava desnecessário a ideia de criar uma firme industrialização no Brasil. Ele não previu as mudanças pelas quais o mundo iria passar com a informatização, inclusive por causa do seu pensamento conservador. A época da coluna dele era a mesma em que os robôs das automobilísticas japonesas estavam levando-as a dominar o mercado, mas ele não via isso. Era o começo das fábricas automáticas. Estamos caminhando para um futuro “Jornada nas Estrelas”, em que bens de consumo ainda estão looooonge de serem feitos por sintetizadores (movidos a reação de matéria e antimatéria), mas os métodos de fabricação automatizados barateraram tanto a produção que mergulhamos num mar de consumo desenfreado (para o bem e para o mal). Lembro que meu pai, marceneiro e carpinteiro, escondia de suas crianças algumas chaves de fenda de relojoeiro porque eram caras e frágeis. E delicadas. Você pode comprar um estojo delas no camelô hoje em dia por 10 reais.

Finalmente, para fechar o raciocínio, uma última historinha. Lá do começo dos anos 90. A Veja, já há 30 anos, apoiou firmemente o Collor, porque já naquela época era preciso não deixar o PT chegar ao governo. Então, como hoje, acabaram se arrependendo quando o sujeito tentou sequestrar MESMO o poder, acumulando em suas mãos – e de sua turminha – todos os cargos e até mesmo símbolos que pudesse. E, então como hoje, começaram a fazer uma campanha contra ele. Lembro de um artigo que eles fizeram indo a Maceió e entrevistando os coronéis da terra pra “entender o pensamento” do presidente, mostrando-os como uma cáfila de grosseiros broncos. Num dos parágrafos, diziam que, num esforço para aumentar o refinamento da galera, o governo incentivou a abertura de um restaurante de luxo, mas que tinham acabado por permitir que as pessoas fossem de bermuda, por ser impossível detê-las (sim, sinta a ironia do pensamento conservador, que hoje a adota como uniforme). E, numa das entrevistas com os poderosos, que tentavam parecer modernos e empreendedores, um deles dizia que a vocação do Nordeste era o turismo, mas ele era populoso demais pra isso. Então a solução seria mandar metade do povo pra Amazônia.

Esse é o tipo do pensamento conservador dessa galera. Pra eles e pra todos seus conhecidos, a vida está ótima. Eles estão bem, dá pra galera ganhar uma grana pilotando Uber e bicicleta de entrega, e estudando – lendo, escrevendo e fazendo conta – pra manter as coisas funcionando. Não as mudar. Como aquela piada do algoritmo para reparar sistemas - “está funcionando?” - “Não mexa” - “Você mexeu?” - “seu idiota”. É preciso ser exato e técnico. Nada pode escorregar do lugar, principalmente porque não vai ter ninguém pra ver que o lugar escorregadio é que de repente dá onda.

O brilhante intelectual Gudin não podia ver para onde o mundo estava indo bem debaixo de seus olhos e ainda se agarrava à vocação agrária do Brasil. O próprio agronegócio hoje em dia é automatizado e desumano – no sentido de que precisa de relativamente poucos humanos para funcionar. O mundo muda, a tecnologia surge porque, apesar de todos os esforços dele, a galera cujo cérebro não tem as sinapses pré-programadas pralguma coisa pensou em algo diferente.

Esse é o pensamento da mediocridade. Vimos agora as filas enormes em shoppings, mesmo sob risco de pandemias. As vitrines são padronizadas, o céu não e visível, os restaurantes são franquias que fazem a comida de acordo com as normas exatas. Passar pela rua, pelo Saara, esbarrar em lojas antigas e empoeiradas não são a onda deles. É o mundo uberizado, onde podem ser mimados e ter o prazer de encontrar o já conhecido. Não sofrer o estresse do desafio. É o povo que acha que o turismo é mandar metade da população pra outro lugar, ou abrir à exploração uma área preservada, pra fazer um complexo como o de Cancún. Ou Miami. O turismo tem que ser para um lugar reconhecivelmente como um shopping. Não há o interesse em conhecer o diferente, só o semelhante. São turistas registrados. Assim como profissionais registrados, exibindo seu crachá de ler-escrever-fazer conta. Nunca tive – e lamento – vocação pra mochileiro, mas lembro uma vez em Madri quando encontramos uma brasileira e perguntamos sobre Toledo, e ela disse que bastava uma tarde pra conhecer, pegar um trenzinho pra circular pela cidade e pronto. E quando chegamos encontramos uma lindíssima vila medieval, inclusive pouco modificada pelo menos desde o Tristana, do Buñuel, lá de 1970. Porque lembro de estar vendo o filme com a Ana e, quando o Fernando Rey para pra falar com um personagem, “ei, eu conheço essa porta. Hoje em dia tem uma fábrica de espadas (aço toledano!) lá”. E, quando a câmera abre, vemos o cartaz – o mesmo! - da fábrica de espadas.

Weintraub – e Bolsonaro – foram treinados na mediocridade. Este é um militar de média patente, acostumado a seguir – e dar ordens, sem questionar ou ser questionado. Não para pensar. Não por acaso ele sempre gostou de dizer que qualquer coisa, pergunte ao fulano do seu governo. Ele faz apenas o que o mandam fazer, e exige o cumprimento inquestionável, mesmo que não entenda ou concorde. Já o primeiro é bem-nascido filho de um famoso psiquiatra que cresceu à sombra do pai e se envolveu em um processo para interditar o patriarca, porque receber a herança dos pais é o desenvolvimento óbvio de sua vida. Obcecados em criar um país de técnicos de “exatas”, aparentemente nem percebem que estão seguindo as ordens de seu grande ídolo, um autodenominado filósofo, sem formação universitária, mas cujo conhecimento geral – ainda que superficial – é bastante superior ao deles (2) – para não falar de sua oratória e gramática. 

Tivessem eles tido uma formação humanista geral, não se deixariam enganar tão facilmente.

(1) Há muitos anos, um amigo meu com inclinações parecidas falava que realmente o que importavam eram as Leis Naturais, que são fixas e imutáveis (parece que ele não entende muito de fisica quântica – aliás, nem eu). Tentei explicar pra ele que ciência na verdade é uma corrente filosófica, basicamente. Ela se apoia na ideia de que certos fenômenos cíclicos continuarão sendo cíclicos (ou algo parecido, não sei explicar direito agora). Pra explicar melhor, por exemplo, chegamos à conclusão que a Terra gira em torno do Sol porque todo dia ele nasce no leste e se põe no oeste, mas, na verdade, não temos NENHUMA garantia de que isso vá acontecer amanhã. Não existem “Leis Naturais”, algo como uma Constituição firmada e promulgada por Deus, Odin, Galactus e o Tribunal Vivo (ele era nerd). Não existem “números” na Natureza, é uma invenção humana, abstrata e de difícil explicação. As “Leis Naturais” são uma abstração da mente humana tentando fazer sentido de um monte de matéria – e energia – espalhados pelo Universo.

(2) Existe esse tipo de pessoa que tem um conhecimento geral superficial, oriundo de fontes de segunda mão (ops, estou me expondo!), artigos de revistas ou lições bem lembradas do segundo grau. Normalmente ele se sobressai entre os viventes de formação puramente de série de tevê e filme americano, o que acaba subindo à cabeça deles e fazendo-os crer que têm a explicação para tudo. Quando se junta a uma personalidade carismática, costumam ter um séquito de viventes impressionados com a eloquência e fartura de respostas diretas e simples.

(3) Meus amigos mais próximos não aguentam mais, mas vou contar mais uma vez uma historinha passada comigo na 5a. Série do São Bento – que todo ano é o melhor ou um dos melhores colégios do Brasil no Enem. Eu tinha acabado de entrar praquela escola, vinha de uma pequena e familiar, estava assustado com aquele negócio enorme, aquele esquema de aulas seguidas de uma hora com professores diferentes, enfim, todo melindrado. Durante a aula de história, sobre a formação da Terra e surgimento da vida, perguntei ao professor se a vida não poderia ter começado com pedaços vindo de outros lugares do sistema solar. “Claro, Luiz”, resondeu o professor que, não satisfeito em nem se dar ao trabalho de dar uma resposta elaborada, ainda resolveu fazer bullying com um garoto de 10 anos, “os dinossauros vieram em um meteoro. Ele parou aqui e eles saltaram”, pra turma toda rir. Quem gosta de ler essas coisas de Superinteressante obviamente já tá ligado que hoje em dia uma das principais teorias do surgimento da vida na Terra é de que moléculas orgânicas ou bactérias tenham chegado aqui em meteoros de outros corpos celestes, porque tem uma turma que acha que decorreu muito pouco tempo entre o esfriamento do nosso planeta e o surgimento de um monte de organismos