setembro 23, 2020
janeiro 14, 2020
A Justiça Cativa
Antes da
Constituição de 1988, os concursos para juízes exigiam pelo menos
35 anos de idade do candidato. Era um tempo para o sujeito se formar
e passar uns 10 anos trabalhando em algum lugar antes de
encadeirar-se em sua sinecura. Não por coincidência, já diziam os
antigos – aquele povo qe vivia antes da Constituição de 1988 –
que você levava 10 anos pra se tornar bom naquilo que gostava de
fazer.
Nesse
ínterim, se você fosse trabalhar com Direito, você iria lidar com
clientes. Com juízes. Com funcionários. Interagir com gente, enfim.
Aprender como funciona o mundo. Porque um dos assuntos da moda entre
o povo pensador é como as redes sociais criam “bolhas”, isolando
o indivíduo do contato com pessoas que vivam ou pensem
diferentemente dele, mas na realidade estamos fazendo o mesmo há
décadas, desde que arquitetos e governantes decidiram que o modelo
ideal de cidade é a equivocada “cidade-jardim” de Le Corbusier –
uma ideia, aliás, que lá por fora já está se tornando obsoleta,
mas por aqui ainda é um ideal de vida (cf. Barra da Tijuca, que,
mesmo nos anos 70, o auge do pensamento urbanista modernista, era
conhecida como um “bairro sem esquinas e, portanto, sem bares de
esquina”).
Quem
aliás primeiro chamou a atenção pra isso foi a Jane Jacobs no seu
fundamental e altamente influente livro, “Vida e Morte das Grandes
Cidades”. Ela conta que, no começo do século XX, com o automóvel
barateando, Le Corbusier e sua turma sonharam com uma
“cidade-jardim”. As pessoas não precisariam morar perto do
trabalho, porque poderiam se deslocar até lá em seus próprios
veículos. Pra quem viveu nos já citados anos 70, respirando as
titânicas nuvens de carbono dos escapamentos dos ônibus e carros
mal regulados, a ideia pode soar ridícula, mas é porque, segundo a
Jane, nunca tivemos que chafurdar em bosta de cavalo acumulada por
ruas estreitas e fedorentas, sem ventilação ou árvores.
Além do
mais, no século XIX, um prefeito de Paris, o Haussman, botou meia
cidade abaixo pra criar bulevares arborizados, com casas devendo
obedecer regulamentos não só de construção como de estética, e
amplos, bem amplos (segundo muita gente, pra facilitar a movimentação
de tropas pra reprimir as constantes revoltas populares parisienses).
Que fica bonito é inegável, mas esse tipo de reforma acaba levando
primeiro ao afidalgamento do lugar (gentrificação de cu é rola)
pela valorização imobiliária e, subsequentemente, ainda que
paradoxalmente, à decadência da área (a turma endinheirada acaba
preferindo ir criar seus filhos em um lugar mais isolado, onde não
tenha tanto barulho e movimento, deixando tudo pro comércio e pra
serviços, o que torna o local deserto à noite, atraindo
prostituição, tráfico, violência etc. Etc. - cf. Avenida Central,
atual Rio Branco, aqui no Rio de Janeiro).
Mas,
voltando ao Le Corbusier. Influenciado por Haussman, ele foi ainda
mais radical. Livraria as massas da imundície e pestilência das
fezes equinas e as levaria ao paraíso: blocos residenciais cercados
de jardins e alamedas arborizadas, com enooormes ruas para o
deslocamento dos veículos que levariam o povo a seu trabalho e às
suas compras, em centros comerciais. Bem-vindos a Brasília e à
Barra da Tijuca. Ou aos famosos “suburbs” americanos (1).
A Jane
afirmava que esse tipo de urbanismo é típico de alguém que ODIAVA
cidades. Pois o bom da cidade é justamente a mistura. A convivência
com pessoas de outras camadas sociais, com outros objetivos na vida,
com outro tipo de pensamento. Pra vocês entenderem, aquela coisa do
jornaleiro que tomava conta pra você se o encanador ia chegar, o
coroa dono do bazar/papelaria/loja de material de
construção/armarinho/loja de brinquedos (sim, antigamente tinha
muitas e muitas dessas lojinhas) que trocava seu cheque e por aí
vai. É exatamente essa vivência que é o objetivo da cidade. O
pessoal ia pra ela pra arrumar trabalho, aprender um ofício, abrir
as ideias. Já que falamos de Paris, os pintores, escritores e afins
iam todos pra lá no começo do século XX justamente pra ter contato
com o pensamento de toda essa turma onde tudo estava acontecendo
agora.
Não
demorou muito pras pessoas descobrirem o que podia dar errado com
esse urbanismo: grandes engarrafamentos, dificuldade pra sair do
bairro pra fazer qualquer coisa e voltar (Barra, estou falando com
você), tédio e degradação. Já em 1965 essa mulher
(http://blog.modernmechanix.com/one-womans-confession-i-hate-suburbia/)
reclamava de tudo: acabavam não indo para o sonhado clube ou golfe
por falta de tempo, gasto nos congestionamentos; falta de
entretenimento; falta de vida social ou cultural, porque ninguém
tinha disposição pra ir até o centro: e, finalmente, voltando lá
pro assunto inicial, sua preocupação com a sua filha adolescente
atraída pelo filho do vizinho, que a mãe julgava superficial e
materialista – mas com quem mais ela iria se enrabichar, se não
conhecia ninguém, ou pelo menos ninguém diferente? (2)
A
Constituição de 1988 acabou com esses limites de idade por causa de
sua vocação antidiscriminatória. Ninguém deveria ser prejudicado
por problemas físicos, religião, ideologia, orientação sexual
ou... idade. Pra cima ou pra baixo. Afinal de contas, porque vedar
acesso à magistratura de gente que já com 20 anos poderia passar
num concurso pra juiz? Por falta de vivência, talvez.
Certo,
certo, não vamos discordar que existem aqueles gênios superdotados
que aos 14 anos já estão na faculdade (o que, aliás, costuma levar
a gente que aos 30 anos não sabe o que quer na vida, conforme um
documentário que vi há alguns anos, mas cujo linque não consegui
achar). Mas Direito não é uma ciência exata. Leis não se aplicam
com manuais, apesar do que possam querer fazer os leigos acreditar. E
o Estado de Direito é muito mais complexo e exigente do que nós,
nos inexperientes 20 anos, poderíamos pensar.
Um juiz
tem que saber como a sociedade funciona e os limites de seus poderes
e entendimento. O que é um conhecimento que 10 anos de advocacia
ajudariam bastante a adquirir (ou piorar, mas aí são casos perdidos
mesmo). Aceitar garotada de 20 e poucos anos que nunca trabalhou de
verdade na vida e saiu da faculdade pra ficar em casa estudando prum
concurso é como querer botar na magistratura astros do rock que
gostam de demolir quartos de hotel enquanto cheiram todas ou
jogadores de futebol que acham que craque é só o sujeito que faz
muito gol ou dribla todo o mundo.
Descobrir
como sentenças afetam as vidas de seus clientes, ser reprimido ou
intimidado por juízes e funcionários, aprender a lidar com as
pessoas e seus sentimentos, isso é um capital que não se adquire
lendo livros ou aprendendo teorias. Até porque, na verdade, Direito
é como História. O historiador não é aquele sujeito que decora
todas as datas, até porque isso basta ver na enciclopédia. É na
verdade o cara que entende como as coisas se desenrolam, a vida e a
morte das civilizações, e pode até mesmo descobrir analogias que
nos permitam prever o futuro. Do mesmo modo, o bom advogado – ou
juiz - não é necessariamente aquele que sabe todos os artigos da
Lei, mas que entende o que é justo e é legal e usa a lógica para
aplicar esses conhecimentos a casos concretos. E só colecionando um
monte de experiências e interações é que se pode chegar a uma
verdadeira compreensão do que é justo e legal.
Também
não vale nem a pena levar em conta que garotada tem mais tempo e
concentração pra estudar. Passar num concurso tão jovem também
pode levar a criatura a perder o hábito de aprender – sim, porque
isso é um dos maiores problemas com nosso sistema educacional,
quando realmente começamos a entender e a apreciar o que é
aprender, somos jogados no mercado de trabalho, sem tempo pra isso.
Gente que estuda o tempo inteiro, às vezes anos (1 ou 2 anos parecem
uma eternidade quando se tem 20, lembram?), passa no que quer e
depois pronto, não quer mais ver aquilo. Cristaliza seu conhecimento
e não quer mais saber de nada.
As nossas
bolhas chegaram à Justiça e criaram gente que chegou ao pináculo
da profissão (3) ainda muito jovens. Não conhecem restrições, não
têm ideia das consequências dos seus atos e não conhecem as
pessoas. É assim que formamos gente que condena porque tem
convicção, mas não provas, que acha justo que ninguém sequer
investigue se algo assustou
um policial e ele matou o cara, e que acha que qualquer um que
queira, basta estudar e chega lá. Um amigo meu definiu bem, nós
inventamos os juízes criados em cativeiro.
- Não vou traduzir porque o que chamamos de subúrbio é outra coisa completamente diferente. O dos americanos é aquela coisa que vemos em filme, um monte de casinhas com quintal, longe do centro, longe de tudo.
- Pra dar um pouco de tempero ao texto, vou contar que justamente esse isolamento e falta de entretenimento teriam dado origem à cultura do “swing” - a popular troca de esposas. Juntando-se a isso o tédio das mulheres, ainda não inseridas no mercado de trabalho e passando as tardes sozinhas em casa, com suas tarefas reduzidas por causa dos eletrodomésticos e refeições industrializadas (restos de refeição envolvidos em gelatina instantânea viraram um fundamento da culinária dos anos 50!, e começou a era das infidelidades, dos divórcios, e das festas da chave. Essa modorra existencial levando a sexo casual foi o tema de vários filmes eróticos (não pornográficos, até porque nem rolava na época) de Joe Sarno, hoje em dia um cultuado diretor, considerado um autor cinematográfico. Confira a sua obra-prima, “Sin in the Suburbs”. Pode começar com esse trecho no VocêTubo, pra depois ver se tem coragem de me dizer que o Kubrick não assistiu a essa fita.
- Na verdade, um advogado realmente bem-sucedido ganha mais – e pode amealhar bem mais poder – do que um juiz. O que causa muitas rivalidades quando dois grandes egos se encontram, um de cada lado da tribuna.
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