A EVOLUÇÃO TÁTICA: O BRASIL CRIA O 4-2-4 E O FUTEBOL CONTEMPORÂNEO
O mundo estava mudando nos anos 50. Surgiram a bomba de hidrogênio, a foto de Einstein fazendo careta, o rock´n´roll, a Revolução Cubana, o foguete espacial, o cérebro eletrônico (que depois ficaria conhecido como computador) e a bossa nova. Com o fim da II Guerra Mundial todas as fábricas de armas começaram a fabricar outras coisas. Com metade do planeta precisando de reconstrução havia emprego para quase todos. Com um monte de técnicas arriscadas testadas para salvar vidas de soldados, a medicina avançou bastante. Os antibióticos ficaram disponíveis para o público. Apesar da Guerra Fria, o antagonismo entre os americanos e os soviéticos, a humanidade nunca fora tão próspera. E, com a prosperidade, as pessoas se alimentavam melhor e ficavam menos doentes.
Essas pessoas saudáveis davam também atletas bem melhores. O WM exigia que cada jogador treinasse à exaustão para se tornar bom especificamente em sua posição. Também requeria treinamento para a entediante tarefa de ficar o jogo inteiro perseguindo um único adversário, a "marcação homem-a-homem". Todo esse treino só foi possível com a profissionalização do futebol. Mas o profissionalismo aumentara desde então, aplicando os avanços da medicina na área esportiva. Os atletas dos anos 50 podiam correr bem mais do que os dos anos 20. E era necessário repensar o esporte para essa nova época.
E essa nova época surgiu no Brasil. As raízes estão no artigo que Flávio Costa escreveu para "O Cruzeiro", clamando por uma tática que não limitasse a improvisação. Ele aplicou suas idéias ao criar a "diagonal". Zezé Moreira começou a aplicar a marcação por zona. E Fleitas Solich começou a implantar o 4-2-4 no Flamengo tricampeão estadual. O húngaro Bella Guttman fez o mesmo no São Paulo e alguns analistas europeus insistem em dizer que ele trouxe o sistema de seu país, ignorando que desde 1949 já se forjava aqui esta idéia.
FIGURA 15
E o que tem o 4-2-4 de tão revolucionário? A princípio parece uma tática defensiva. Usa quatro zagueiros. Mas não é só o número que interessa. Compare com a ilustração do WM. Os defensores estão muito mais próximos entre si. A defesa inteira pode agir como uma unidade, de forma coordenada. Um beque pode ajudar ou cobrir outro com muito mais facilidade. Além disso, cada um fica responsável por um espaço muito menor. Eles não marcam mais "homem-a-homem", eles não seguem o atacante aonde ele vá. Eles guardam seu setor e dão combate a quem aparecer por ali. O truque húngaro de posicionar Puskas e Kocsis entre o lateral e o beque simplesmente não funcionaria contra esse sistema.
BOX
Com o WM a defesa tinha três integrantes - o beque central (stopper) e os laterais. Com o 4-2-4, o zagueiro central ganhou um companheiro para ajudá-lo a guardar a área, que passou a ser conhecido como "quarto zagueiro". Até hoje esses jogadores são conhecidos assim, mesmo que uma linha de quatro não tenha um jogador central e o quarto defensor seja o lateral-esquerdo, se contado da direita para a esquerda.
Avancemos até o meio-campo. São apenas dois jogadores, contra o quadrado do WM. Mas esses dois são atletas modernos, que correm muito mais. Eles defendem e atacam. Assim a defesa não tem quatro integrantes - tem seis! Com tantos defensores o 4-2-4 abre mão da superioridade numérica no meio.
O meio-campo também arma as jogadas para a linha de frente, com quatro integrantes. Dois deles são centroavantes, o que levava à loucura o solitário beque central do WM. Os outros são pontas. Os atacantes, também com excelente preparo físico, quando perdem a bola têm a função de atrapalhar a saída de jogo adversária, para dar tempo aos meio-campistas de se recomporem, que também têm a missão de avançar, formando às vezes um ataque com seis jogadores!
E até a defesa precisa se recompor também. Observe a ilustração. O meio-campo. Com tão poucos integrantes pode haver dificuldade na armação das jogadas. Além disso, há visivelmente um espaço entre eles e a linha lateral, que os locutores da época chamavam de "zona morta". Ora, por esse espaço um defensor moderno, capaz de correr o campo todo, pode se infiltrar e ajudar na criação ofensiva. E foi o que Nílton Santos e Djalma Santos fizeram, criando o lateral atacante. Sempre que o lateral de seu time, ou Roberto Carlos na seleção, fizerem um gol ou cruzamento, você está assistindo ao princípio do 4-2-4 em ação.
Assim o Brasil lançou uma tática com uma defesa sólida, com marcação por zona, um meio-campo que realmente atacava, criava e defendia e atacantes móveis que se infiltravam por entre os espaços deixados pelo obsoleto WM. O sistema aproveitava ao máximo a tendência natural dos brasileiros para o ataque, bem como sua capacidade de improvisação. Tradicionalmente em nosso futebol até os zagueiros têm um certo grau de habilidade, o que aumentava a eficiência do 4-2-4 e seu lateral atacante.
O ataque era entretanto o ponto fraco do 4-2-4. Os brasileiros usavam uma dupla de atacantes de área, assim como os húngaros, mas insistiram nos pontas. Com laterais e apoiadores disponíveis para fazerem as jogadas pelos lados do campo os ponteiros tornavam-se supérfluos. Eram jogadores especializados demais, como aqueles do WM. E isso já podia ser observado na seleção, pois Zagallo, extrema-esquerda e futuro técnico campeão, já tinha a tendência de voltar para ajudar o meio-campo a marcar (daí seu apelido, "Formiguinha"). No Fluminense Telê Santana fazia o mesmo pela direita. Mas eliminar os extremas era impensável no time do Brasil, porque nesse setor jogava um dos maiores monstros sagrados do esporte: Garrincha.
Mas encontrar um Garrincha não era uma tarefa fácil. Depois da acachapante vitória do Brasil em 1958 o mundo inteiro copiou esse sistema de jogo, sem os mesmos resultados. Já em 1962 o Brasil jogou em 4-3-3, recuando definitivamente Zagallo para o meio-campo. No resto do planeta futebolístico, sem Garrinchas, os pontas se extinguiram.
O desenvolvimento natural do 4-2-4 era o 4-4-2. São táticas tão parecidas que a seleção brasileira que venceu a Copa das Confederações em 2005 pode ser escalada em qualquer um dos sistemas (com dois no meio-campo, Emerson e Zé Roberto, e quatro no ataque, Robinho, Adriano, Kaká e Ronaldinho, ou quatro no meio-campo, Emerson, Zé Roberto, Kaká e Ronaldinho, e dois no ataque, Robinho e Adriano). Apenas no Brasil levou-se mais tempo para aceitar a morte dos pontas devido ao extraordinário talento de Garrincha.
abril 23, 2006
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