Acabei de ver A DAMA NA ÁGUA. Sim, sei que a mensagem, "todos somos especiais e temos um propósito" tem a profundidade de um pires (ou, como o garotinho dOS INCRÍVEIS fala, é a mesma coisa que dizer que ninguém é especial). Sim, sei que é uma elaborada fantasia nerd em que uma mulher gostosa e vulnerável fica sob os cuidados do citado nerd, que mostra toda sua superioridade espiritual ajudando-a e não tentando comê-la (inclusive com frases como "não consigo imaginar que possa vir a liderar; sou tão desajeitada, os outros riem de mim - se isso serve de consolo, também acho a mulher que fala isso desajeitada, só faz merda o tempo inteiro e sem nenhum carisma de liderança). Sim, eu sei que tem um crítico de cinema que é o pior personagem da história e o Shyamalan aparece como o sujeito que vai mudar o mundo - e recebe esse aviso quando está enquadrado no meio de um triângulo que remete inequivocamente à Santíssima Trindade (1).
Mas não é sobre todas essas coisas patéticas que quero falar. É sobre as regras. Devolver a mulher pro mundo dela envolve um monte de regras, lendas e interpretações de sinais. Essas regras não são instintivas e precisam ser explicadas detalhadamente por uma personagem do filme, sendo supostamente um conto de fadas oriental. Talvez seja mesmo, mas soa muito mais a regras de um videogame. Ou melhor, de um RPG. E é sobre isso que queria falar. Filmes, livros, quadrinhos fantásticos estão cada vez mais parecidos com RPGs.
The Matrix II já tinha essa irritante tendência. Os sujeitos que foram adolescentes nerds do final dos anos 80 pra cá estão fazendo filmes e escrevendo livros e roteiros. Adoraram sagas que construíam um mundo próprio como Star Wars e o Senhor dos Anéis (em livro, o pessoal que amou o filme ainda não alcançou a idade pra sua produção artística), já que nerds têm poucos amigos, são desajustados em sua puberdade e fantasiam com mundos onde os valores espirituais teriam maior importância. No meu tempo a gente assistia Jornada nas Estrelas e lia revistas em quadrinhos. Quando Guerra nas Estrelas saiu, eu curti o filme e tal, mas no Brasil não tive acesso à toda a mitologia envolvendo a saga (quadrinhos, livros, brinquedos, naves para montar) e, quando ela chegou ao fim aqui, em 1984, já tinha passado dessa fase (embora tenha gostado do último filme).
Tendo tão pouco material nerd, a gente acabava embarcando na literatura mesmo e meus outros amigos nerds também gostavam muito de ler. Mas hoje em dia a garotada tem acessoa mundos fechados e elaborados na forma dos RPGs, videogames, quadrinhos e seriados de tevê (2). Mas nem todo mundo que escreve essas coisas tem anos de estudo em mitologias que nem o Tolkien, ou se fez assessorar pelo maior mitólogo do século XX, Joseph Campbell, que auxiliou George Lucas em Guerra nas Estrelas. Muito menos a turma que faz videogames. Pouco joguei OS SIMPSONS pra Nintendo porque não tinha paciência de ficar tentando mover todos os objetos que apareciam em cena pra descobrir que se o Bart batesse com o skate numa bola e a jogasse no telhado, ela derrubaria uma lata de tinta roxa sobre um alienígena e o derrotaria. Perceberam a arbitrariedade de tudo isso? A tinta roxa simboliza o quê? Por que diabos eu deveria pensar nisso tudo? Outro detalhe desses, por exemplo, me vem à lembrança no jogo Zelda (o primeirão): um rinoceronte era morto se você acendesse uma vela embaixo dele e fizesse-o passar por cima várias vezes.
Isso até pode funcionar num videogame, embora tenha colaborado para me afastar deles, mas quando se passa a formas de arte menos interativas, em que você não maneja nenhum boneco que move tudo que aparece na tela, é necessário um simbolismo maior. E os autores de hoje em dia não se tocam disso. À medida que foram crescendo, foram acreditando que mais inteligência nesses mundos fantásticos significa mais complexidade e vão estruturando suas fantasias algo aleatoriamente e muito, muito mesmo, apelando para símbolos pessoais e não universais. Seus mundos de regras precisam ser explicados e explicados de novo porque não têm ressonância dentro de nosso subconsciente. Não fazem parte de nosso inconsciente coletivo. Não são ritos de passagem rascunhados como em O SENHOR DOS ANÉIS. Apesar de suas nove horas de duração (não li o livro), a estrutura básica mitológica é extremamente simples. Levei uma amiga na pré-estréia do segundo filme e ela não tinha visto o primeiro. Pouco antes de começar, ela pediu preu explicar a história e o fiz em duas linhas: aquele anãozinho (eu sei que era um hobbitt e que anão era o John Rhys-Meyers) tinha que derreter o anel encantado no vulcão que o criou ou o deus do mal iria usá-lo para destruir o mundo. Agora explica assim tão simples a história de Matrix a partir do segundo filme. Ninguém nunca lembra aquela lei de que criatividade não é inventar o excesso, mas descobrir o óbvio. Guerra nas Estrelas é baseado no rito de passagem em que não se alcança a maturidade sem conseguir livrar-se da figura paterna e dos desejos incestuosos da vida familiar (é por isso que o Darth Vader tem que ser o pai do Luke Skywalker e como isso só aparece no segundo filme e eis aí a prova de que a saga não foi pensada como uma trilogia desde o início).
Outra coisa negativa é que essa profusão de mundos alternativos e fantásticos onde podemos na adolescência buscar refúgio da realidade má e cruel à qual não nos ajustamos está afastando os nerds de seu habitat natural, a literatura. As séries de tevê, por exemplo, descobriram nos anos 90 o mesmo segredo que Stan Lee descobriu na mitologia dos quadrinhos de super-heróis: a incorporação do tempo.
Antes de Stan Lee, como aponta Umberto Eco em Apocalípticos e Integrados, os heróis estavam libertos do tempo. Cada história era independente da outra e como resultado não havia uma mudança do personagem. O Super-Homem que o Otto Binder (acho que era esse o nome) e Mort Weisinger escreviam permaneceu o mesmo durante toda a era de prata. Sim, houve uma história em que apareceu Kandor, outra em que apareceu a Fortaleza da Solidão e outras coisas que foram anexadas à vida do protagonista, mas não havia uma sequência. Durante meses não havia menção a Kandor, ou a Kripto, ou a Brainiac, e depois eles reapareciam. Será que essas histórias sem menção não se passaram na verdade antes? Os supers daquele tempo eram deuses, que não podiam ser atingidos pelo tempo, vivendo em mitologias pouco sofisticadas, afeitas a crianças pequenas, que tinham pouco dinheiro para gastar e não compravam todo mês, nem tinham concentração pra ler muitas páginas. Podiam ser republicadas depois ou lidas anos depois por outras crianças.
Na década de 60, Stan Lee, entre outras coisas, introduziu o tempo. Os supers não eram mais deuses onipotentes, mas heróis trágicos (na devida proporção, é claro). Em quase todos eles sua hybris levou-os a uma punição dos céus (a morte de Bucky, no Capitão América; a morte do tio que o criou, em Homem-Aranha; a sina de ter que viver em parte como um mortal, em Thor). Mas, principalmente, eles envelheciam. Eles sofriam com as consequências de seus atos. E pareciam bem mais vivos. Peter Parker, se tirarmos algumas fases que tiveram muito pouco sucesso de público, é uma criação incrivelmente coerente, já que escrito por diversos autores durante quarenta anos. De nerd solitário que achava que jamais teria uma namorada a seus primeiros amigos, namoros, início de vida sexual e amadurecimento (como é incrivelmente bem bolada a amizade que ele acabou tendo com seu arqui-inimigo Flash Thompson; pena que John Byrne, já na decadência, tenha acabado com isso).
Os supers da Marvel também interagiam entre si com muito mais frequência do que na DC, onde os heróis, exceto nas revistas da Liga da Justiça e na dupla Batman-Super-Homem, pareciam habitar mundos estanques. A Marvel criou toda uma mitologia, não para cada herói separado, mas para todos. "Universo Marvel" era mais do que uma simples expressão. Havia a onipresente Shield; Tony Stark desenhava armas para o Capitão América (circuitos no escudo que depois ele tirou); em suma, era um mundo palpável onde o nerd podia se refugiar. A qualidade dos roteiros melhorou muito, uma vez que, não confinados a um certo número de páginas de um único número, podiam se desenvolver com mais ritmo, mais diálogos do que o necessário para exposição e tempo para desenvolvimento das personalidades e dos coadjuvantes. As crianças continuaram lendo esses gibis enquanto cresciam e logo adolescentes e jovens adultos estavam firmemente estabelecidos como público de quadrinhos. E quando eles atingiram a idade para trabalharem para as editoras, sabiam qual era o grande atrativo. E investiram fundo nisso.
A partir de "Guerras Secretas", no começo dos anos 80, começaram as mega-sagas, em que uma única história se desenrolava em TODAS as revistas de uma editora. O sonho de todo nerd. As vendas dispararam. Mas como nas tragédias gregas, havia um preço a pagar. Os universos foram ficando cada vez mais complicados. Drásticas mudanças eram feitas quase todo mês nas vidas dos personagens puramente pelo efeito chocante, para aumentar as vendas, apenas para serem desfeitas três meses depois; foi a época da morte do Super-Homem, do aleijamento do Batman, da morte de um X-Man em quase toda revista. O público foi se tornando insensível. Além disso, as histórias haviam se tornado tão complicadas que era difícil arrebanhar novos leitores. Quem comprasse ocasionalmente um número da revista simplesmente não entendia nada do que estava acontecendo.
Os seriados de tevê descobriram isso mais ou menos nos anos 90. O primeiro que eu me lembro a introduzir o tempo foi A GATA E O RATO, em que a tensão sexual entre protagonistas de sexo diferente, pela primeira vez que eu me lembre, chegou ao fim. E virou gancho de praticamente todo programa, de FRIENDS a BATTLESTAR GALACTICA. E é claro que as histórias de ficção científica pularam nisso açodadamente. Compare a estrutura "um episódio, uma história completa" de A NOVA GERAÇÃO com a complicadíssima trama de DEEP SPACE NINE ou mesmo VOYAGER. Eu mesmo nunca tive saco para acompanhar ou tentar entender aquela confusão toda. Seguiram-se 4400, LOST e outras.
Isso, é claro, afasta o público nerd dos livros. Eles têm RPGs, videogames e seriados de tevê onde afogar suas mágoas. Muitos desses mundos são criações artificiais e sem ressonância cultural ou mitológica, mas funciona com eles porque eles estão viciados em universos fantásticos com suas regras próprias. E dispensam literatura. Num ótimo site sobre quadrinhos feito por grandes nerds, sou obrigado a ouvir que Superman - O Retorno é talvez o melhor filme do ano, ou que Constantine (que é um barato) é uma porcaria porque não tem a cínica poesia do original de Garth Ennis. Por favor, meus amigos, vão ler Céline antes de exaltar o cinismo de uma história em quadrinhos. Até mesmo um sujeito culto como o crítico Rodrigo Fonseca não consegue trair suas raízes nerd e diz que A DAMA NA ÁGUA é a melhor fita do ano.
Menos, nerds, menos. Aproveitem que estão por cima e façam as pazes com o mundo. Cresçam como o Peter Parker. Não ajustem suas contas mesquinhamente como o Shyamalan faz com o crítico de cinema em seu filme. Vocês sabem que se continuarem dando esse mole todo, os malhadores vão aparecer e dar porrada em vocês.
(1) Os outros diretores que apareceram em seus filmes como salvadores do mundo não tiveram bom fim. Abel Gance - o da indiscutível obra-prima NAPOLEON - faz um messias que acaba crucificado (!!!) em La Fin du Monde e esse filme praticamente acabou com sua carreira (eu não vi, mas tem uma orgia que foi dirigida assim - ele convidou o pessoal boêmio e que fazia teatro da época, falou pra todo mundo tirar a roupa e conversar e, quando o inevitável aconteceu, saiu filmando. Diz que é a melhor coisa do filme). Pasolini põe sua própria mãe como Maria mãe de Jesus em O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS e morreu assassinado por um garoto de programa a marretadas. Mas eles, pelo menos, ao contrário do Shyamalan, já tinham brindado o mundo com os geniais já citados NAPOLEON e EVANGELHO SEGUNDO MATEUS.
(2) As séries de tevê, na verdade, estão se tornando cada vez mais indistinguíveis do cinema. São dirigidos iguais e têm os mesmos atores. Nos anos 70 isso já acontecia, mas o fato dos filmes serem destinados a público mais adulto, além da maior censura na tevê, garantia que na tela grande você encontraria uma temática mais madura, veria mulher pelada - puxa, a gente via peitinho em quase qualquer filme que não fosse para toda família - e afins. Hoje em dia o filme para adultos é quase inexistente em Hollywood. TAXI DRIVER e O PODEROSO CHEFÃO dificilmente seriam financiados por estúdios.
Pra ilustrar como era a censura na tevê nos anos 70/80: a série original Battlestar Galactica deveria ter, como inimigos dos humanos, répteis abjetos, mas eles foram mudados para robôs abjetos, os cylons, porque a rede de tevê determinava que só podia haver certo número de mortes por hora e, tecnicamente, robôs sendo destruídos por lasers não eram mortes.
setembro 21, 2006
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