O Coringa
já está chegando a um bilhão de dólares pelo mundo. A quantidade
de gente que achou o filme de brilhante a genial é imensa e, o que é
pior, pruma boa parcela dessa galera a fita encarna o espírito de
rebelião de nossos tempos, a população se levantando contra a
opressão dos ricos capitalistas, as massas finalmente acordando de
sua letárgica passividade para se vingar do sistema que desequilibra
as probabilidades e as chances contra nós, o povo. Mas, na verdade,
tudo isso só serve mesmo é pra provar que o diretor se equivocou
feio na sua concepção, porque, se o Coringa é a resistência,
então, como já disse o John Lennon pra outro pessoal que queria
fazer uma revolução, “you can count me out”.
Antes que
me acusem de ter pronunciado irredimivelmente que Gozador é filme de
pobres predicados, deixo aqui, como fazem os produtos americanos, as
ressalvas contratuais: é uma obra (extremamente) competente
tecnicamente, desde o visual que recria perfeitamente (ao ponto do
plágio) os filmes do Scorsese do final dos anos 70/início dos 80,
até a tremendamente enaltecida intensa entrega do Joaquin Phoenix –
o que, inclusive, distraiu muita gente da qualidade da atuação como
um todo, de Frances Conroy a Zazie Beetz. Toda a parte técnica é
irretocável. A edição, por exemplo, como se poderia esperar num
produto americano com um orçamento desses, é perfeita e até mesmo
retrô. Porque a fita tem um ritmo consideravelmente mais lento do
que o típico espetáculo de super-herói. Esse, aliás,
provavelmente é um dos motivos que levou muita gente a ficar
impressionada com a fita.
Os
arrasa-quarteirão de super-heróis – e filmes de ação, em geral
– sofrem hoje em dia dos mesmos problemas que os maus musicais da
Hollywood clássica, que tanto irritavam o blogueiro na Sessão da
Tarde. A cada 15 minutos, justo quando o espectador está começando
a se interessar pela trama e pelos personagens, a história tem que
parar quase 10 minutos pruma cena que não avança o filme em nada
dramaticamente, apenas para exibição de virtuosismo nas cenas que o
povo pagou ingresso pra ver. Virtuosismo que, no caso dos musicais,
pelo menos, era a inacreditável perícia dos
atores/dançarinos/cantores/acrobatas e, nos filmes de super-heróis,
se resume à quantidade de horas e qualidade dos programas e
computadores contratados pra fazer a animação das porradarias dos
supercaras.
O valente
editor da Zé Pereira diz que o roteiro original do longa não
incluía o maior inimigo do Batman, só um palhaço maléfico (que,
aliás, parece ser um arquétipo e dos bons) e alguém viu e comentou
que, “ei, bota o Coringa aí”. Embora não tenha encontrado numa
pesquisa rápida de Google nada que corrobore a ideia, foi exatamente
o que ocorreu ao blogueiro durante a fita. O sujeito que comentou,
inclusive, é um gênio, já que dificilmente os pagantes de um
bilhão de dólares se sentiriam animados a assistir ao lento
enlouquecer de um indivíduo oprimido pelas metrópoles impessoais do
final do século XX. Prometida a aparição de um vilão de
quadrinhos, trazendo consigo assassinatos e crimes fabulosos, um
monte de gente correu aos cinemas pra ver uma obra que monta suas
peças pouco a pouco, devagar porém ininterruptamente. Vencida a
impaciência do público com o título “Coringa”, a galera que
não vai ver esse tipo de filme não só acaba curtindo, como ainda
fica impressionada, “uau, isso é diferente, isso tem classe, deve
ser uma obra-prima”.
E tão
impressionados ficam, aliás, que até esquecem que o Coringa foi
enfiado ali como um cubo no lugar da esfera a marretadas pelo Homer
Simpson num teste de inteligência. Pra origem do Coringa, ainda que
alternativa, nada faz sentido. A época está errada; o Thomas Wayne
é diferente daquilo que se conhece dele, e parece muito pouco uma
figura que tenha inspirado o filho a lutar contra o mal e a
injustiça; a não ser que Arthur Fleck tenha se submetido aos mesmos
experimentos que o Cérebro do Pinky & Cérebro, não tem como
aquele sujeito vir a tecer aquelas tramas mirabolantes que tanto
enredariam o Batman e tampouco é verossímil que aquela criatura
venha algum dia a desenvolver habilidades físicas ou marciais pra se
impor num eventual mano a mano com um supervigilante ou mesmo capanga
descontente.
Mas esse
não é o ponto que o blogueiro queria apontar. A fita tem um
problema sério de direção, apesar dela emular tão perfeitamente o
Scorsese daquela época a ponto de borrar as fronteiras entre
homenagem e plágio, ou de sentida referência e por pra trabalhar
ideias de outras pessoas. Afinal de contas, o Coringa e sua horda de
revoltados seguidores são vilões ou um exemplo a ser seguido? Um
amigo disse que antes mesmo da história começar, já sabemos que o
Coringa é a encarnação do mal. No entanto,Tropa de Elite também
deveria ser um filme sobre como a violência no Rio de Janeiro cria
um bando de fascistas onde deveria estar a polícia e vimos no que
deu, com um bando de gente achando que estava elegendo o grande
Capitão Nascimento.
O Coringa
se revolta contra o mundo, mas que revolta é essa? Contra os ricos?
Os ricos que vemos são caricaturas e, pior, caricaturas do que os
esquecidos do Trump enxergam como sendo a classe média liberal.
Gente com hábitos finos, que herdou sua fortuna e não produz nada.
Gente que não mete a mão na massa como o Véio da Havan, por
exemplo. Ódio aos ricos não é exclusividade da esquerda, até
mesmo os nazistas propalavam retórica contra eles. Ainda mais se
fossem judeus, que ainda se encaixavam perfeitamente no tipo, sendo
comerciantes e financistas (1). Os babacas em quem ele atira no metrô
são convenientemente investidores de Wall Street, justamente a
galera de quem Trump tanto falava mal. Eles não estão gerando
empregos ou produtos, são apenas parasitas do sistema. E são
protótipos do que um pouco mais tarde naqueles mesmos anos 80 seria
batizado de yuppie – a classe média alta com gostos “refinados”,
valores culturais mais hedonistas e, apesar de normalmente serem
ideologicamente mais afinados com a direita neoliberal, a encarnação
do que eleitores do Trump enxergam como a população urbana rica
liberal que vive em orgias bissexuais (2). Significativamente, Arthur
Fleck não atira neles quando estão incomodando a mulher, mas quando
se voltam contra ele.
O que
também é uma falha de direção. Eles assediando sexualmente a
mulher obviamente é usado para que simpatizemos com o Coringa. Mas
Travis Bickle
Arthur Fleck não se volta contra eles por isso. Na verdade, quando
atraído por uma mulher, ele a assedia do mesmo jeito, perseguindo-a
o dia inteiro, o que também
não é uma aula de como se tratar moças. Na
verdade, durante a constrangedora cena no metrô, o espectador pode
ficar na dúvida se Fleck despreza os caras pelo que estão fazendo
ou porque ser melhor do que aquilo justificaria o fato de que ele não
tem coragem pra se dirigir a quem deseja.
E,
como sempre, Fleck só vai atirar nos caras quando o atingido é ele.
Na verdade, o que parece um brutal ataque à individualidade do
sujeito conta pelo menos com sua ativa colaboração. Sua terapeuta
pode não ajudar muito, mas o futuro Coringa ajuda menos ainda.
Esconde seu diário que ela falou para ele manter, não conta o que o
aflige e só está preocupado em arrumar mais receitas (numa postagem
futura vou contar como o mundo dos remédios e da objetividade ajudou
a montar o mundo neoliberal e, hoje, o início de um movimento de
volta, está nos levando a outro momento de contestação e
rebeldia).
Fleck
quer ser um famoso comediante, mas, como diz sua mãe, ele não é
engraçado. Suas piadas são ruins, quando não copiadas diretamente
de apresentações de outros. Ele não tem talento, mas persevera,
porque, citando outro filme que o editor da Zé Pereira despreza,
“chegamos aos 30 anos e não nos tornamos os astros do rock que a
televisão nos prometeu. E agora?”. Ele cuida da mãe, mas talvez
viva do pensionamento dela. Seu grande sonho é ser reconhecido como
filho de uma personalidade da telinha. Ele não se relaciona com
ninguém e não se esforça pra isso, a não ser juntar-se ao
bullying de uma pessoa pequena numa cena no início.
E,
como diz o valente editor da Zé Pereira, americanos não entendem
nada de política. Depois de afirmar e reafirmar que é apolítico e
não apolítico, no programa de tevê final, Arthur Fleck faz um
longo discurso justificando politicamente as suas ações. Na
concepção ianque, e de uma certa parcela aparentemente majoritária
no Brasil (cf. As últimas eleições), política só é política se
algum sujeito eleito e um partido, com uma longa história de
ativismo e participação, estiverem envolvidos. Todo o resto são
apenas negócios, e negócios são bons, como pregam os neoliberais.
A revolta de Fleck é na verdade ressentimento, ressentimento
infantil contra pessoas mais bem-sucedidas. Em nenhum momento ele
demonstra empatia com pessoas na mesma situação – ou pior – que
ele. Na verdade, em nenhum momento ele demonstra empatia com
absolutamente ninguém. Sua relação com a mãe parece apenas mais
uma tarefa e, depois que ela o trai não o tendo concebido com um
milionário (e automaticante pondo-o numa casta superior), ele
simplesmente a mata.
E
aí temos os problemas de concepção do filme. Fleck no final não
tem mais que se preocupar com problemas financeiros, é famoso, tem
uma horda de seguidores e está dançando feliz sem ninguém pra
dizer que ele é esquisito. A fita, como Tropa de Elite, é toda
contada do ponto de vista dele. Embora a produção americana
esclareça que está usando o recurso do “narrador inconfiável”
negando em cenas posteriores o que tinha sido visto antes, ambas
cometem o mesmo erro fundamental: o único personagem desenvolvido é
o central (ou, no caso brasileiro, o protagonista e seus amiguinhos).
Todos os que o cercam não passam de caricaturas estereotipadas. No
caso ianque, tudo ainda é mais acentuado porque a maioria das
criaturas com quem o futuro arquivilão interage são negros ou
latinos. Ele é um peixe fora d´água que está sendo expulso do
ambiente que deveria ser dele.
Sintomática
é a primeira coisa que o Coringa (imagina que) faz após seus
primeiros assassinatos. Ele simplesmente toca na vizinha e já a
agarra. Porque essa é a recompensa de quem é macho de verdade. O
sucesso de um homem, como já expliquei numa postagem anterior, se
mede pelas mulheres que ele come. Dinheiro, fama e poder são apenas
instrumentos pra isso, não um objetivo em si, cf. “A mulher do
Macron é feia”. O blogueiro (contando vantagem pra mostrar como é
um macho superior) na hora imaginou que a cena só faria sentido se
fosse imaginária, mas diversas pessoas que viram a fita acreditaram
que estaria acontecendo. Esse é o tipo de gente que acaba o filme
achando que deve se revoltar como o Coringa, atrair um culto de
seguidores e libertar todo o seu ressentimento egocêntrico, pra
acabar feliz, dançando e famoso. “Coringa” é um filme
surpreendente pra quem vive numa dieta de super-heróis e zumbis,
fora do padrão de mau musical de antigamente. Mas é um equívoco
que pode muito levar seu público a acreditar que violência cega é
a resposta para lhe estar sendo negada a mulher gostosa que toda a
cultura pop prometeu a eles. Que lhe estão sendo negados o poder e a
masculindade de ser um americano (como tem gente no governo que acha
que é) branco cristão ocidental. Finanças e estudos são para os
fracos, dê-me um 38 e eu serei o Coringa. Ou, na pior das hipóteses,
o Véio da Havan.
- Na Idade Média, era considerado desonroso a nobres se dedicarem ao comércio, já que eles deveriam ser valentes guerreiros capazes de defender suas terras e, se possível, acrescentar mais umas. Também era considerado pecado e pessimamente visto pela Igreja que cristãos emprestassem a juros a outros cristãos. Percebendo esta lacuna (para usar jargão neoliberal), os judeus, que até mesmo por motivos de crença (estudo de Torah, estudo de Cabala, em um mundo sem clero hierarquizado) tinham uma população mais intelectualizada (i.e., para a época, ou seja, gente alfabetizada e capaz de fazer conta que não era um monge ou ministro de Estado), preencheram-na e se tornaram os banqueiros da Europa desde então. E comerciantes.
- Não por acaso eles usam pra ofender esse pessoal o epíteto de “cuck”, que seria mais ou menos corno, porque seriam praticantes de swing, ou poliamor, e gostariam de ver sua mulher trepando com outro – o tipo de valor que desafia toda a concepção deles, de família e sexo somente pra reprodução ou pra mostrar pros outros como você é capaz de ser dono de mulheres.
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