AH, ELE É FASCISTA, MAS PELO MENOS PULA NA BOLA!
Houve um tempo em que você não precisava fazer reservas com o mâitre pra ir ao Maracanã. Como todo o mundo jogava lá e nem todos os jogos são Vasco x Flamengo, na maioria das vezes era só chegar em cima da hora e comprar seu ingresso. Como também existia na mesma época a geral, que custava o equivalente a uns 5 a 10 reais hoje, era um programa bastante atraente pra garotos entediados querendo dar uma volta e ver gente.
Numa tarde de sábado dessas, num Vasco x América, lá por 1986, o meu cruzmaltino passou um sufoco no primeiro tempo e saiu perdendo de 1 a 0. Praticamente todo ataque do Diabo era perigoso porque naquele dia o normalmente ótimo goleiro Acácio estava hesitante e atrasado, tomando decisão ruim após decisão ruim, soltando bolas e completamente fora do tempo, a ponto de sair pro intervalo sob vaias da torcida. O que acabou levando o técnico a trocá-lo pra volta a campo por Paulo Sérgio.
Como nem todo o mundo aqui acompanhava futebol carioca, Paulo Sérgio, apesar de ter mesmo chegado a ser convocado algumas vezes pra Seleção Brasileira, era um goleirinho. Não, não estou falando de seus dotes entre os paus - ainda! - mas de sua altura, mesmo. Ele dizia ter 1 metro e 78, o que já não era altura de arqueiro mesmo naquela época, mas todo o mundo sabia que media menos e, para coroar tudo, ainda tinha pouca envergadura. Como sabemos todos, atletas maiores tendem a ser mais fortes e os menores a ser mais ágeis. Pois Paulo Sérgio, assim, famosamente atirava-se a cada chute de maneira acrobática e espalhafatosa, até porque era a única chance de alcançar a bola onde outros guarda-redes apenas esticariam o braço. A mesma pequenez reduzia-lhe também a percepção de colocação e aumentava sua insegurança e sob essas influências ele não conseguia resguardar-se de pular a cada finalização, mesmo em finalizações claramente descalibradas ou indefensáveis. Ver aquele sujeito saltitante e pululante, acrobaticamente atirando-se ao chão vez após vez dentro da pequena área não era particularmente eficiente em manter as redes intocadas, mas era um espetáculo visual inegavelmente impressionante. Tanto que na Copa de 1982 foi convocado como reserva, na frente de Raul, que, com 1 metro e 87 nunca deixava de andar em brinquedos de parque de diversões com limite de altura, mas que lendariamente não se preocupava em tentar defender bolas que ele sabia estarem fora de seu alcance, ou rumo à arquibancada.
E, assim, os ainda confiantes rubros roubaram uma bola, partiram para o ataque e finalizaram de fora da área claramente à direita da meta. Pois obviamente o pequeno grande Paulo Sérgio saltou como se fora uma esfera após um violento choque elástico (considere g=10 m/s²), seus curtos braços esticando todos os tendões, em busca do chute que não estaria lá. Imediatamente, ao nosso lado, um torcedor comentou satisfeito, “Ah, esse goleiro pelo menos vai na bola!” E foi assim que o goleiro menor Paulo Sérgio superou Acácio e ganhou a vaga de titular, mantendo a meta indevassada enquanto o Vasco virava o jogo.
A maioria de nós leva uma vida monótona e previsível e está constantemente insatisfeita. Como já dizia Clube da Luta, chegamos aos 30 anos e não nos tornamos os astros do rock que a tevê nos tinha prometido (influenciador de internet hoje em dia, provavelmente). Junte-se a isso as consequências de 40 anos de liberalismo e emprego virou privilégio e “educação superior” significa pelo menos umas 2 pós-graduações. Se antigamente arrumar um trabalho era basicamente entrar pro serviço público, pois você o mantinha por décadas, exceto por Justa Causa, hoje em dia camarão que dorme a onda leva e ficar mais de 2 temporadas com o mesmo empregador é sinal de inércia e preguiça. Assim, com essa cultura - e seu salário na linha - que tantos eleitores tenham se voltado praqueles que lhes ofereçam movimento. Luz, câmera e ação. Já dizia Hemingway, “não confunda movimento com ação”, mas os cidadãos preocupados não querem ver uma queda gradual de preços, uma retomada lenta e segura da produção, ou delicadas negociações se arrastando por anos para reposicionar a sociedade num papel geoestratégico que irá beneficiar o PIB a longo prazo. Eles querem ver alguém que faça alguma coisa já. Que pelo menos vá na bola!
Não é Bergman que arrasta multidões ao cinema, é o filme “de ação” - termo que nem existia quando começaram os anos 80. Antes eram chamados de “aventura”. Em nós ainda vive o código do guerreiro conquistador. Quando as sociedades começaram a viver de agricultura, almejando a estabilidade e uma tranquila - e bem alimentada - rotina, capaz de deixar viver mesmo aqueles sujeitos incapazes de derrubar um cervo com um único golpe, às custas de trabalho duro e tedioso, surgiu também algo inédito. Riqueza e subsequente propriedade privada. Ao contrário das sociedades caçadoras-coletoras, a proteção desses cada vez mais numerosos e luxuosos bens particulares não estava a cargo do vivente que os criou ou que deles se apossou, mas foi terceirizada… para o Estado (!!!!). O mais característico predicado da propriedade privada - o pertencimento a um indivíduo - era garantida pelo coletivo!
Para os caçadores-coletores, do lado de fora dos campos arados e das muralhas, esse tipo de pensamento certamente devia parecer covarde e preguiçoso. E as riquezas e a fartura dessas sociedades tornavam-nas uma presa irresistível. E é assim que, desde a Idade da Pedra Lascada, a incansável pressão dos forasteiros (em grego, “bárbaros”) acaba por irromper por entre as defesas dos agricultores (isso porque eles nunca pensaram em chamar 7 ronins pra ajudar). Com isso, os conquistadores - um bando de guerreiros - assume o comando e os lavradores conquistados assumem um papel subalterno. Por isso que até hoje, já na Terceira Revolução Industrial, rumo à Quarta, tanta gente ainda vê tanto encanto em viril masculinidade marcial, mesmo vivendo em tempos onde ser capaz de engendrar um algoritmo eficaz é muito mais útil e produtivo do que abater um cervo com um único golpe de lança.
É por isso que o fascismo e a programação nômade de ver novas paragens até hoje movimentam nossos cérebros que agora têm que lidar com seus milhares de amigos via virtual, quando eles foram construídos pra gerenciar até 150 relacionamentos. Nós queremos ser os guerreiros fodões que botam os nerds pra trabalhar, porque essa é a história do mundo. Não queremos ser os lavradores cantando no final dos 7 Samurais, queremos ser estes, mesmo que 4 - inclusive dois dos melhores - tenham ficado debaixo da terra.
É por isso que queremos movimento. É por isso que tanta gente quer Trump, tanta gente quer o golpista inominável. Não interessa que ele esteja fazendo nada de útil. Se você é de classe média urbana estabelecida ou acima, não parece que os governos estão fazendo nada. O que você viu nos 14 anos de PT foi a perda de seus privilégios. Querem igualá-lo aos lavradres e de resto não acontece nada. Não, não é nada disso que as pessoas querem. Elas querem ação, emoção, movimento. Os chineses tinham uma maldição, “Que você viva em tempos interessantes”. Porque esses são os tempos de reassentamentos e revoluções. Mas a maioria de nós, não. Quer movimento, mas não reassentamento e revolução. Querem tempos interessantes sem a maldição. O que não deixa de ser irônico, porque recentes estudos demonstram que as “crises” e “fins de ciclos grandiosos” das civilizações só pareceram assim para os nobres e as elites. Os textos egípcios lamentando o fim do Médio Império constantemente lamentam que as massas tenham chegado ao poder e não haja mais privilégios.
É apenas isso que os eleitores inomináveis querem. Não querem ação, querem apenas movimentação sem sair do lugar (não, não vou citar O Leopardo, do Visconti). Não fazem a menor questão que o goleiro seja bom. Apenas que ele vá na bola. Porque a pelota passando perto da trave incomoda o coração.