Um quatro-olhos gordo cheio de junk food sentou do meu lado e passou a sessão inteira com o fone do seu iPhone enviado no ouvido direito. Algumas filas adiante, um mortal digitava incessantemente em seu smartphone. E na saída tropeçava-se nesse sujeito aí. Não havia dúvida nenhuma, estávamos em uma sessão de Thor.
Com Kenneth Brannagh encarregado de gritar “ação” prum bando de sujeitos com fantasias de guerreiros e reis declamando um inglês colorido (1) e um roteiro engendrado pelo mesmo vivente que escreve o gibi do deus do trovão, as expectativas eram boas. No entanto, o filme começa desnecessariamente bombado e tenta fazer de uma kombi metida a besta rodando no deserto uma jornada perigosa. Começar um longa já na adrenalina costuma transformar as cenas iniciais em um tédio por comparação. Como são estas que têm que explicar a história e criar a empatia com os personagens, é muito fácil se perder assim o interesse do público. Normalmente a hipercinese é um sintoma de fitas mal escritas usando o recurso para disfarçar a falta de ação dramática em sua estrutura. Mau sinal.
Quando o cenário muda para Asgard e após uma brevíssima introdução do protagonista e seus coadjuvantes imortais a tela exibe mais e mais overkill na ação, o blogueiro lembrou-se subitamente da adaptação que Brannagh fez nos anos 90 para “Frankenstein” e seu único pensamento foi “danou-se”. Felizmente foi um erro e logo a direção acalma e a muito bem amarrada historinha carrega a superprodução suavemente, com um clima melodramático e levemente bem humorado. Como os melhores exemplos do gênero (Super-Homem, X-Men 1, Homem-Aranha 1 e 2), ela remete às grandes tramas de Stan Lee e seu acordo tácito com o leitor de que aquilo tudo é quadrinhos e não é pra ser levado tão a sério assim literariamente.
A direção de Brannagh é sólida, mas impessoal. Ao contrário do gratuito Frankenstein, em que a abundância de cenas de ligação fez o inglês bombar tudo, com uma câmera que nunca parava quieta sequer em nenhum dos longos e mal escritos diálogos de exposição, a direção exagerada do fã do bardo funciona no universo stanleeano (2) que é uma beleza. Kenneth parece ter aprendido a lição e não abusa de travellings, pannings e – graças a Deus – muito menos do “cameraman-com-mal-de-Parkinson-béri-béri-impaludismo-e-tremedeira-tudo-ao-mesmo-tempo-agora”. Em compensação o longa é cheio de tomadas com o horizonte inclinado sem nenhum motivo em especial (Thor vivendo num mundo diferente?). Também pouco inspirado é o visual dos imortais. Os gigantes de gelo e seu líder parecem primos do Darth Maul e os trajes dos deuses nórdicos têm uma aparência muito mais plástica do que metalizada (fato do qual a produção estava ciente, já que rende a melhor piada do filme). A ponte do arco-íris, que o ator shakespeariano (2) disse ter sido um desenho altamente discutido por sua importância, parece exatamente a primeira coisa em que um diretor de arte mediano iniciante pensaria.
Natalie Portman vive uma Jane Foster que é claramente uma personagem spielberguiana (2), a cientista talentosa meio nerd e com óbvia criação de classe média. Chris Hemsworth conseguiu chamar a atenção numa minúscula ponta (ainda que numa das melhores cenas) de “Star Trek” e lida bem com o trajeto de Thor de fanfarrão a humanista – e olha que esse trajeto exige muita boa vontade dos espectadores, já que aparentemente ele leva um dia e meio. Magia do cinema, suspensão de incredulidade, seja lá qual for o nome, está em ação apenas uma antiquíssima máxima do cinema que muitos diretores de filmes-pipoca hoje em dia parecem ignorar em favor do design e da hipercinese – se a fita nos diverte e entretém, aceitamos um monte de incongruências. Se o blogueiro fosse o script doctor do projeto, incluiria alguma referência na seção em Asgard sobre Thor tendo desprezo pelos mortais, por não terem valor e precisar que os aliendeuses nórdicos lutassem por eles. Depois de sua convivência ele perceberia que em todos os tipos de viventes há sempre aqueles valorosos e aqueles escrotos e daí se tornaria o humanista (gigantedegelista?) da cena final. Mas, como funciona de qualquer maneira, fica por isso mesmo.
Ainda no quesito elenco, Anthony Hopkins usa sua belíssima dicção inconfundível pra compor seu Odin e receber um contracheque sem se esforçar muito. Renee Russo é a prova de que os deuses já conheciam o botox e Idris Elba tem o porte e a voz (ajudada digitalmente) do guardião de qualquer coisa. Tom Hiddleston faz o Loki, que, ao contrário dos quadrinhos, tem um arco completo de personagem, indo de irmão traquinas e invejoso a arquivilão acrescentando mais dimensão ao deus da trapaça nas telas do que ele tem nos quadrinhos. O ator desincumbe-se bem e chega mesmo a conquistar nossa simpatia e sua historinha desenrola-se no melhor clima Stan Lee, sem a menor sutileza. Hiddleston chega mesmo quase literalmente a gritar “DEEEEEEEEEEEEEUUUUUUUUSSSSSSS, POOOOOOOOOORRR QUÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ?”. Não, na verdade não chega a tanto, ele apenas grita um melodramático “POOOOOOOOOORRR QUÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ?” pro Odin, e levando-se em conta que Odin é o deus supremo da parada, a ilação é inevitável. James Dean teria feito diferente, mas Marvel Studios não é Actor's Studio e as nuances do Método nunca se deram muito bem com Shakespeare, o que dizer um pastiche do bardo...
Portanto, se você é um nerd, curte filmes de ação com um clima spielberguiano (2), está a fim de se divertir sem adquirir ao mesmo tempo vastos conhecimentos de linguagem cinematográfica (mas pelo menos um pouco no quesito eficiência narrativa) ou simplesmente não tem nada melhor a fazer do que ficar vendo longas 3D, Thor é garantia de duas horas bem gastas. A fita é da boa. Barra limpa é o nobre Thor.
P. S.: Nerds e fãs da Marvel em geral vão se arrepiar de emoção com a cena pós-crédito. A melhor dessas papagaiadas que o blogueiro já viu.
(1) O tradutor não se animou com os diálogos mais requintados dos asgardianos e verteu tudo para o português coloquial mesmo. Além disso, cometeu vários atentados ao bom-gosto em coisas como “apenas 1 de nós”. Ora, raios, a fita está em cartaz em versões dublada e legenndada, será que não dava pra pressupor que os analfabetos iriam ver os deuses entonando a última flor do Lácio e caprichar no vocabulário na versão legendada? Afinal de contas, o gibi é famoso justamente pelas falas pomposas de seus personagens, num intencional pastiche que Stan Lee fez de Shakespeare, seu autor favorito, porque DEUSES NÃO USARIAM O NOSSO LINGUAJAR URBANO DO DIA A DIA.
(2) Como já dizia o Arnaldo Branco, artistas bem-sucedidos acabam virando adjetivos na mão de críticos nem tanto.
maio 02, 2011
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