- Você lembra que aqui costumava ficar bem mais cheio?
- Quando abriu. Já faz mais de três anos.
- O que será que aconteceu?
- O pessoal cansou de comida mexicana nesta área. Cansou desta área. Cansou dos preços. Achou lugar melhor.
- Eu nunca sei porque um restaurante abre, mantém a comida, mantém o ambiente e as pessoas vão sumindo.
- É uma coisa de zeitgeist, Zabe. A comida não tem só o gosto do lugar onde é produzida, da terra onde é produzida, da cozinha onde é produzida. Ela tem o gosto do tempo onde é produzida. E, quando passa o tempo dela, ela simplesmente se vai. Aqui tem gosto dos primeiros álbuns do Scott Pilgrim. De House. Da peça da Verônica. Dos shows do Van Esperança.
- Do Tadeu.
- Da Mônica.
Pausa.
Por instante só flutuam as baixas e poucas conversas do ambiente e
eventuais sons da cozinha.
Marcos recomeça.
- Você sabe que o House vai acabar, né?
- Sei.
- E Scott Pilgrim já virou até filme.
- Pois é.
- Tudo vira filme. Menos eu.
- Você ia ser um filme chato. Desses que a gente vê no Festival de Cinema.
- Eu tinha esperança de ser uma mostra do CCBB.
- O que você tem pra mostrar?
- Olha que eu mostro.
- Não me impressionou da primeira vez.
- Nossa, isso já faz quanto tempo?
- Nem tanto, a gente já tinha se formado.
- A gente se formou faz anos.
- É que tem aquele povinho que ainda tá acabando a faculdade...
- Eles entraram depois da gente. E são preguiçosos.
- Você é preguiçoso.
- Você acha que eu devia ter desempenhado com mais disposição daquela vez?
- Comigo não. Com a Mônica.
- A Mônica também é preguiçosa.
- Não parece.
- Não no que interessa.
- Na vertical ela é bem aplicada.
- É por isso que o Tadeu gosta dela?
- Tadeu não gosta de ninguém.
- Esconde bem, está sempre bem acompanhado...
- Quer indício melhor?
- Isso é psicologia de botequim.
- Mulheres são mais perceptivas pra essas coisas. A gente nota claramente quando o cara realmente gosta das pessoas. Gosta de alguém. Se sente melhor com alguém. É melhor ao lado de alguém. Não é o caso do Tadeu.
- Então por que você ficou com ele?
- Por que eu gostava dele.
- Vocês, mulheres, com esse seu egocentrismo...
O
bafo quente de veranico invernal de quarta-feira se espraia como uma
fina camada de suor por cima das pessoas a conversar, rir, sorrir ou
se refrescar no claro e aberto pátio da velha casa. E a pele
café-com-leite de Elizabeth, mais leitosa do que o usual pela falta
de sol, começa a ganhar um brilho sob as mortiças luzes ambientes e
a claridade da vela dissolvendo-se em correntes de estalactites no
centro da mesa.
- Você está suando.
- Você também.
- Eu sempre gostei de mulher que sua.
- Não é considerado elegante.
- Como não? Eu acho tão sensual. Não acredito em sensualidade seca. Eu acredito em fluidos. Nós viemos do oceano. Deus pra mim é um líquido.
- Deus é líquido?
- Certamente sólido ele não é.
- Ele está no meio de nós.
- No meio de nós está o ar.
- E o fogo – olhando pra vela.
- Se você jogar um pouco de terra sobre a mesa, vamos ter os quatro elementos aqui presentes.
- Eu estou longe da jardineira.
- Dá uma andadinha até lá.
- E como você sabe que Deus está aqui conosco?
- O chope. É líquido.
- Deus é como um Big Brother? Observando a gente através de câmeras líquidas ocultas e espalhadas?
- Eu sou como o Big Brother.
- É? Por quê?
- Porque não existo. Sou apenas uma contrafação de várias outras pessoas. Um retrato genérico.
- Ah, Marcos, não recomeça...
- Tarde demais.
Zabe
balançou a cabeça enquanto o amigo pegava a vela do meio da mesa e
puxava o fogo dela através das folhas de tabaco direto para seus
pulmões. Ela não suportava a fumaça do cigarro.
- Você sabe que eu não suporto fumaça de cigarro...
- Era isso que eu deveria fazer? Parar de fumar que nem o Tadeu?
- Tadeu não parou de fumar por minha causa. Ele nunca fez nada por minha causa.
- Nem namorar a Mônica?
- O que tem isso a ver, Marcos?
- Ela era a minha namorada, droga. Eu era apaixonado por ela. Eu e você éramos os melhores amigos. Ele morria de ciúme de mim. Você não consegue ligar os pontos?
- Ele não ligava pra essas coisas.
- Zabe, não lembra aquela festa na tua casa que os teus colegas lá da Tanta acharam que eu é que era o teu namorado?
- Ele não chegou a saber.
- Isso é o que você pensa. A Talita me disse que ele tava puto comigo.
- Mas você começou com a Mônica logo depois.
- É. Eu sei.
- Vocês estavam sempre juntos.
- Estávamos.
- E agora não estão mais.
- Não.
- E nem eu com o Tadeu.
- Pois é.
- E nem por isso estamos namorando.
- Seus amigos da Tanta tinham que estar aqui, agora.
- Eu nem falo mais com eles.
- Você falava com a Mônica.
- A Mônica também não trabalha mais lá.
- Ninguém mais trabalha lá(continua)
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