maio 06, 2024

Arte pela Arte

Quando eu fui visitar o meu compadre Zé no ano passado, tirei uma foto da praça central de Paraty bastante atraente. Melhor ainda ficou depois que acertei a perspectiva, com os lindos sobrados mostrando linhas paralelas. E mais ainda depois que, no editor do celular, cliquei num necessário, porém feio, latão laranja de lixo, e o apaguei, deixando a cena bucólica e simétrica. 





Fã de tecnologia que sou, mostrei o resultado final ao meu compadre e me preparei para uma nova captura da Procissão do Fogaréu com o fiel celular. Zé, então, com seu jeito contrariador dele, não resistiu a um comentário sobre a pretensa foto, “você sabe que isso não é real, não é?”. Ao que eu respondi, “cara, vou te contar um segredo. Fotos NUNCA foram reais”.


Também lá nos meus 22 anos, por causa de uma moça que estava querendo se tornar atriz, li um texto que ela me passou do curso que ela fazia com a Bia Lessa. Se não me engano, era Diderot, dizendo que o ator perfeito não participava da vida, apenas a observava nas outras pessoas para poder imitar como elas reagiam às emoções - uma ideia contraintuitiva face ao senso geral de que artistas devem viver intensamente para aprender sobre a natureza humana, conceito que o Stanislavsky codificou e fez a fortuna de muita gente, a começar pelo Lee Strasberg.


Eu me lembro de ter tentado explicar à Rita - esse era o nome da moça - que a vida não é um filme ou peça. Que um ator tinha que expressar em um único instante o que no dia a dia vemos espalhado por diversos momentos, entrecortados às vezes por diversas outras preocupações e alegrias rotineiras e mesquinhas. Ela concordou e me levou ao encontro com a Bia Lessa, mas quando ia vencer a timidez - eu nem sequer estava inscrito no curso, afinal -b ela mudou de assunto e começou a falar sobre o gato de Schrodinger, não me lembro por quê. Talvez porque física quântica estivesse em voga entre artistas na época, embora  não exatamente física quântica, só o conceito de que o observador altera o observado.





Eu podia ter explicado meu ponto de vista pra Rita - e até pra Bia Lessa - bem mais facilmente se me lembrasse das aulas do meu ótimo professor de português que, falando de arte moderna, mostrou aquele quadro do Magritte, A Traição das Imagens. É uma pintura de um cachimbo com a inscrição “Isto não é um cachimbo” (em francês, é claro). O Zé Paulo então, perguntou pros alunos por que aquilo não era um cachimbo e levou um bom tempo até alguém - não eu, snif - respondeu “porque é a pintura de um cachimbo”.


Porque arte não é real. Porque a realidade, apesar do que os reaças e fãs de Ayn Rand possam achar, é uma experiência subjetiva. Vivemos numa realidade virtual criada em nosso cérebro pelos nossos sentidos. Pessoas que nasceram cegas, ou perderam a visão muito cedo, quando voltam a enxergar têm que passar ainda muito tempo andando de bengala branca. Porque precisam aprender a entender o que estão vendo. Há casos inclusive de gente que recupera a visão, mas permanece na prática cega porque, como acontece com muita coisa que não aprendemos quando ainda jovens, eles não conseguem jamais conectar aquelas imagens que lhes chegam à mente com o mundo em que caminham.


Na semana passada, enquanto caminhava pelo Aterro, voltando a pé para casa como gosto de fazer, privilegiado (literalmente) que sou de morar na Zona Sul e trabalhar na Cidade, vi a lua nascendo, saquei o celular e tirei a foto abaixo. Há quase 40 anos tirei uma parecida, numa parada no interior da Bahia, numa viagem em ônibus de rua até Fortaleza. Pra isso tive que usar minha velha Exa IIA, que herdara do meu pai, bem como sua teleobjetiva de 200 mm (com mofo nas lentes). Dentro da câmera, um rolo de um dos primeiros filmes de grão tabular lançados pro consumidor final (embora na época eu nem soubesse o que era isso), um Kodak VR (não me lembro se 100 ou 200). Tive que improvisar suporte pra tele com uma pedra, apoiei a câmera num meio-fio e fiquei segurando o disparador, sem nem ao menos conseguir ver a cena, a não ser todo torto antes, por 10 segundos. 





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Como vocês podem ver, tirar uma foto dessas em 1984 exigia um equipamento caro (ou velho e herdado), conhecimento prático e teórico de fotografia, sorte e dedicação. Ficou tão impressionante e diferente que fiz um poster dela e está pendurado até hoje na minha sala. Quando cheguei no trabalho da loja que ampliou, que era do lado, uma colega também achou tão destacada que pediu o negativo pra fazer uma cópia. Já a versão 2024 exigiu apenas um (também valioso) telefone. Mas mesmo assim, apesar de todo o auxílio tecnológico, esse não é o elemento decisivo. Basta ver as duas imagens pra se perceber que tem alguém aí que GOSTA dessa composição.


Um amigo meu em rede social, quando começamos a postar as fotos da lua, como sói acontecer sempre que ela nasce avermelhada e ilusoriamente grande no horizonte, ao ver as minhas, comentou apenas que meu celular era muito bom e riu quando eu falei - é verdade, um tanto ironicamente - que o fotógrafo era melhor. Mas em qualquer momento de criação, pensado como arte ou não, existe uma série de escolhas. No caso dessas fotos, por exemplo. Quando a lua começou a nascer, dirigi-me imediatamente à foz do Carioca, porque sei que que o rio entrando na direção da terra providencia um melhor caminho aquático para o rastro luminoso selenita. Também é cercado por arbustos, que providenciam o verde para dar algum contraste na foto. E ainda foi preciso fechar a íris para que o céu não ficasse claro demais, mas não tanto que tirasse os arbustos da imagem. E escolher a lente e o enquadramento.


Diz uma anedota que um famoso diretor de cinema, compromissado com a adaptação para as telas de uma bem-sucedida peça, foi assisti-la. O também famoso diretor teatral, ao encontrá-lo, teria comentado “vocês de cinema são muito complicados. Se eu fosse filmar essa peça, eu poria a câmera numa poltrona e deixaria a encenação correr”, ao que o seu correspondente da sétima arte teria retrucado, “ah, certo… mas EM QUAL POLTRONA você poria a câmera?”


Se os editores fotográficos hoje geram cenas bem diferentes das registradas nos sensores, eles estão traindo quem? Quando eu olhava para o casario de Paraty, eu só via a beleza das casas. Minha mente nem registrava aquele latão de lixo laranja. Se estivéssemos na época das câmeras que não tiravam fotos noturnas sem ajuda de tripés e outros subterfúgios, eu a teria guardado na memória sem aquele latão e ela teria sido a verdade para mim e assim que eu a tentaria transmitir se, digamos, tentasse evocá-la numa pintura anos depois. Se é verdade que editores de imagem generativos e inteligências artificial podem danificar o fotojornalismo, são apenas mais e mais democráticas ferramentas para produção artística. Segundo meu amigo cineasta Zé José, antes do terceiro milênio, menos de 200 pessoas tinham dirigido um filme no Brasil. E então passou a ser digital.


Enquanto houver uma escolha a ser feita e um assunto sobre o qual se queira discorrer, arte vai continuar sendo uma inverdade, uma mentira, um engodo que nos envolve e nos emociona, com a qual sofremos, amamos e aprendemos a viver. Como a própria realidade, que existe para nós apenas em nossa mente e só a criatividade consegue transmitir a outro ser humano. Porque, em arte, a inverdade é a única realidade.


abril 23, 2024

Por Que Homens Acham Que Sua Missão no Mundo é Comer o Máximo Possível de Mulheres

  (Spoiler: não é pelo prazer do sexo)


Meus amigos de Caralivro insistem em ler feiquenios e raciocínios simplórios e literais dessas páginas conservadoras viralizando o que naquelas plagas passa por inteligência e cultura (céus, tem saites e vocetubos de Cavaleiros Templários!). O modelo deles, é claro, é o Olavo de Carvalho, que normalmente é jogado no mesmo saco de seus seguidores (ou devo dizer acepipes, como o assecla que chegou a ministro da educação?) pelo povo que não se deixa impressionar por suas falácias. O que é um erro crasso, sobre o qual falo depois em outro textão. Este é pra falar da minha galera que não resiste a postar 1 comentário provocador no Caralivro de influenciadores fascistas com milhares de seguidores concordatários, o que leva o algoritmo do Feice a jogar a postagem na minha Linha do Tempo.


A postagem do reaça era sobre como homens PRECISAM abandonar as mulheres que venham a traí-los. Não o contrário, porque mancebos podem ceder a uma tentação sem deixarem de amar sua parceira, sem maiores problemas. Mas já as mulheres, quando resolvem pular a cerca é porque querem demonstrar que o amante é melhor do que o seu macho em tudo, é porque não têm mais nenhum amor,  querem humilhar e expor ao escárnio seu companheiro. Uma amiga minha comentou que esse pensamento é um coletivo de estultícias, o que fez o algoritmo me expor o que, em verdade, é um assombroso assomo do raciocínio machista da extrema-direita. Porque os apavorantes piores pesadelos deles sempre incluem exatamente isso: fêmeas sexualmente independentes.


Elas os aterroriza por viverem eles num mundo onde todos os jogos são de soma zero. Toda relação humana é uma relação de poder, mas podem todos sair ganhando se  estiverem a fim de colaborar. Se você só raciocina em termos de ganhadores e perdedores, somando-os você obtém zero - daí o termo. A diferença é como fazer uma vaquinha pra comprar uma bola ou dar um jeito de conseguir sozinho a grana pra obrigar todo o mundo a ter que aturá-lo e escalá-lo como o dono do time. Até o dia que não aguentarem mais e fizerem uma vaquinha pra comprar uma bola e deixar você de  fora. Nem sei mais se essa metáfora faz sentido numa era em que lindas bolas de couro sintético feitas na China custam menos do que uma Dente de Leite na minha época, mas textão sobre a economia industrial na beira da era pós-escassez fica pra outro dia.


Não adianta tentar escapar dizendo o quanto você é zen: toda relação humana é de poder e tendemos a nos tornar amigos daqueles que nos admiram ou que admiramos e nos julgam iguais. A maneira como seu chefe, que inegavelmente tem mais poder do que você, o trata, vai dizer quase tudo sobre o clima no seu local de trabalho. As maiores demonstrações de poder costumam vir, pouco surpreendentemente, do pessoal mais inseguro. Ao mesmo tempo, essa mesma antipática criatura muitas vezes é a mesma que confunde vida profissional com vida pessoal, pois insegurança e falta de socialização costumam andar juntas. Muitos funcionários tornam-se cúmplices, ou por serem mesquinhos aproveitadores, ou por serem igualmente inseguros e valorizarem associações com superiores hierárquicos, ou simplesmente por síndrome de Estocolmo, que não precisa de terroristas literais. Basta um relacionamento pessoal ou profissional. Todo o mundo teve um chefe de esporros homéricos e que  não quer voltar pra casa e gosta muito de organizar comemorações - muitas vezes constrangedoras -  no local de trabalho.


E qual é a escala que mede o índice de sucesso de uma pessoa, que dá a ela uma aura impositiva de respeito, de poder? Na nossa sociedade, provavelmente, é a capacidade dos sujeito - pelo menos do sexo masculino - em conseguir sexo em quantidade com parceiras que preencham os padrões de qualidade gerais, ou pelo menos de sua comunidade. Mais do que fama e dinheiro - ambos são apenas instrumentos. Como o famosamente narcisista Donald Trump, profunda e confessadamente obcecado com status, já declarou em seus livros, o que importa numa transação não é ganhar a grana, mas mostrar ser capaz de amealhá-la. É ser o vencedor! 


Isso é porque, na verdade, RESPEITO é uma mercadoria mais preciosa do que dinheiro.  Você pode comprar dinheiro com respeito, mas não respeito com dinheiro. Ainda mais numa época em que uma migalha de respeito o capacita a ter seu próprio canal de vocetubo, instagram, declarar-se influenciador e ganhar a vida apenas explorando esse recurso tão valioso. Em compensação, lembre do quanto Eike Batista nunca se impôs, apesar de toda a fortuna que herdou e, durante um certo tempo, multiplicou. E pouco ajudou no seu caso ter se casado com uma bela mulher famosamente apaixonada por outro e que o largou para se amigar com um consideravelmente menos financeiramente dotado bombeiro. Que comecem as piadas sobre dotes e afins.


Todos nós temos de alguma forma inculcado esse julgamento de valor pelas habilidades heterossexuais dos homens. Sim, heterossexuais - daí mais um motivo para tanto desprezo por gays. É por isso que gostamos tanto de escancarar nossas pretensas façanhas amorosas. Mas, entre a direita, com muito menos imaginação e consequente consideração por assuntos mais metafísicos e alternativos, essa escala de respeito atinge níveis imanes de paranoia. 


É assim que, em seus olhos, uma mulher não trai seu companheiro por aventura, carência, química, atração, curiosidade, ou mesmo por amor. Não, o que ela está fazendo é mostrar ao seu homem - e, caso venha a saber, seus conhecidos - é um pobre coitado, betaboy, incapaz de satisfazer sua medalha de honra ao mérito. Um Eike Batista sem nem ao menos uma Ferrari. O problema não é terminar um relacionamento amoroso (que, segundo alguns neurocientistas, é a mesma química de largar cigarro ou heroína), mas espezinhar o respeito que o sujeito comanda, expô-lo ao ridículo, minar sua hombridade, obliterar seu status.


A postagem acredita que não é esse o caso dos homens quando traem suas mulheres. Afinal de contas, a medida do sucesso feminino não é pela quantidade de sexo que consegue, mas de matrimônios. Afinal de contas, ELA é o prêmio. Se ela quiser sexo, basta se aproximar de algum macho. Nenhum recusa um troféu de “empregado do mês”, imagina uma conquista. É por isso que na comunidade incel - os caras que não conseguem ter atvidades sexuais que envolvam  outras pessoas - elas são conhecidas como as “guardiãs dos portões”. É a elas que cabe decidir a quem se abrirão, abrindo  também  as portas do sucesso e do respeito.


Portanto, as mulheres não podem ser julgadas pela quantidade e qualidade de sexo que consigam, uma vez que elas são o objetivo desse jogo. Sim, porque é um jogo. Sexo deixa de ser intimidade, diversão, afeto, aventura e torna-se uma obrigação, um dever de casa. É por isso que os incels se tornam tão misóginos e têm tanta  dificuldade em terem um relacionamento. Não é isso  que eles querem, é uma busca por afirmação, é um símbolo de status. E, para as mulheres, este é medido pelo homem que consegue como marido. Que vai sustentá-la, ideia que persiste subconscientemente mesmo nesta época em  que existe uma boa chance de que suas companheiras ganhem mais do que eles.


Assim, se ela for traída, desde que ele não a largue, não importa. Pelo contrário, se ele  tem amantes atraentes, só aumenta a medida dele, o que, por consequência, também a valoriza. Afinal, tendo tantas à disposição, foi com ela que ele decidiu montar um lar. Melhor do que ser vista como a esposa daquele cara que está com ela porque é a única que ele jamais conseguiu.


Mas não terminam aí  as revelações da  postagem. É interessante notar,  como já disse acima, que o sujeito não vê possível  uma mulher trair alguém  por atração, aventura, carẽncia, ou mesmo por se apaixonar. Porque, no fundo, eles as enxergam como seres  sem  iniciativa. Uma moça compromissada permanecerá assim por ter conseguido seu objetivo principal e deste estado só sairá por ódio. Não existe amor nesses relacionamentos, apenas comodidade, busca por respeito e ódio. 


Se a mulher é um objeto, um prêmio, ela não tem agenda própria. Seu único universo  é seu homem e uma eventual traição é para atingi-lo, não por algum motivo dela. E, confirmando a visão narcisista de mundo do postador, também não existe o outro. Não existe a sedução do outro, não existe a atração que o outro  exerce, não  existe o  amor  que o outro desperta ou sente. Não há um outro, tudo que existe é ele e o respeito que ele impõe.  Os outros são apenas extensões dele e de sua posição no mundo, de sua autoestima. Não lhe passa pela cabeça que, digamos, o Brad Pitt  ligando  todo o dia para a sua mulher declarando seu amor e lhe  mandando presentes possa talvez,  apenas talvez,  levá-la a considerar  uma  inconsequente noite de aventura.


É essa a base do neoliberalismo, do objetivismo, do fascismo. Não existem outros. Existem  apenas eu e  meu status. Não existe empatia.  Não existe coletividade. A sociedade existe para me servir. O mundo é apenas uma extensão de meus desejos. Uma visão imatura de mundo, sexualidade e sociedade. Uma visão  tchutchuca,  uma  visão sem humor, sem afeto. Uma visão sem imaginação de como as coisas possam ser diferentes. É por isso que é tão importante mudar a cultura quanto a femininismo,  homofobia e alteridade. É  por isso que esses assuntos não são mimimi ou vitimismo.  Porque o grande objetivo desses movimentos inclusivos é fazer os indivíduos enxergarem o outro. Religar, como  na verdadeira concepção de religião e não a  simplificação de um super-herói que mora no  céu pra manter o ego vivo mesmo após a morte do corpo. Mudar essa concepção é tão importante porque depois que o sujeito perceber o outro, o resto, como uma fila de dominós, vem todo junto.




























Warrior - A Série

 A Netflix adquiriu “Warrior” do Cinemax e imediatamente começou a tentar me empurrar de qualquer forma, avisando que estava entre as séries mais vistas e pondo uma cena inteira passando insistentemente na tela inicial. Sim, eu sei, gosto de tirar onda que uso a Netflix pra ver Viagem ao Infinito e filmes asiáticos premiados, mas o algoritmo sabe direitinho que eu adoro produções com cara e impressionante direção de arte, porradaria em som surround e deslumbrante fotografia. Na verdade, é só para curtir a qualidade da minha imensa tevê QLED e minha avançada soundbar surround Atmos, ok?


Mas eu só comecei a ver Warrior depois que julguei familiar o rosto do chinês abusado que protagonizava a cena teaser. Era o Andrew Koji, que embolsou o “Sêneca - Da Criação de Terremotos”, que vi no FestRio do ano passado. A Gricel e o Sílvio me contaram que já conheciam o vivente de outros estrímens, mas para mim era um completo estranho. Seu centurião irascível, porém completamente dedicado ao cumprimento de sua missão, passou de mecanismo da trama a personagem graças ao seu olhar implacável e, por que não dizer, sua sobreatuação, com frases entredentes, rosnadas e saindo aparentemente de dentes rangendo. Contrastando com a hipocrisia do filósofo rico e título de filma, e do resto da galera que povoa o longa, sua coerência interna em busca de um objetivo é louvável em sua abjeção. Ele é o único na história que parece saber o que quer, ainda que contribuindo para a disseminação do mal que aparentemente deixou os outros habitantes da fita sem saber o que fazer, discutindo e produzindo (má) arte enquanto Nero (aparentemente uma metáfora para o Trump) taca (literalmente, mas em outra época) fogo em tudo.


A série já tem alguns anos e o Koji parece bem menos impressionante. Ainda que o protagonista de Warrior seja um construto para agradar espectadores, aquele cara fodão que fala “fucking” a cada 3 palavras, distribuindo respostas cínicas de efeito com mais velocidade do que seus fulminantes golpes, mas que, no fundo, tem bom coração e bons valores. O resto do elenco também não vai levar nenhum memorável prêmio de atuação, até porque nós já os vimos antes - e muitas vezes. Convencionais como a trama, começar a ver Warrior é como já pegar uma série a partir do meio. A familiaridade e previsibilidade do pessoal são ótimos companheiros para noites para refrescar a cuca. Termo anacrônico que utilizei porque a reconstrução de época obedece às leis da simplificação para o supostamente idiota público. Um ou outro detalhe de época para capturar a atenção e todo o mundo se comportando de uma maneira moderna (ou caricatural). A modernidade de uma moça, casada por interesse, mas incoerentemente sexualmente ousada e pintora de uma modernidade singular para a época é mais uma daquelas convenções de que não fazer as coisas parecerem como se passadas hoje em dia vai soar alienígena demais para atrair as plateias atuais. É assim que vemos batalhas em que bestas são usadas como metralhadoras e João sem Terra tem barcaças de desembarque.


Bem, mas chega de falar mal, afinal já cheguei ao episódio 4, muito mais do que a maioria das coisas que começo a assistir. Koji não rosna entredentes aqui - mesmo quando deveria - mas está ótimo nas coreografias de luta e não compromete, apesar de parecer mais um integrante de gangue de filme do Tarantino do que da Chinatown de 1880. A produção é bela e refinada. Como em todas as ficções dessa estirpe, há um puteiro barato em que as meninas mais feias no mundo real estariam casadas com algum político 40 anos mais velho (ei, aconteceu isso com a pintora!), mas que beleza de puteiro barato. Os cenários são lindos e parecem caros. Não veja isso na tela do seu computador ou telefone.


Enfim, o mundo não mudou, mas se você estiver sem espírito de embarcar em alguma aventura desconhecida, mas dá preferência praquelas conhecidas, ainda que disfarçada de peça de época, Warrior é uma boa pedida. Já disse que as cenas de luta são  ótimas?



 

Uma Viagem ao Infinito

  Fale com algum nerd que já fosse senciente lá pelo começo dos anos 80 sobre a primeira série Cosmos, e eles imediatamente se atirarão ao chão, cobrindo-se de cinzas e lamuriando-se que não são dignos. Naquela época ninguém sabia muito sobre astrofísica e os escritores de ficção científica que gostavam de explicar do que estavam falando estavam mais interessados em tecnologia do que nas coisas básicas do espaço. Pouquíssimos garotos esquisitos, provavelmente alvos de valentões, tinham realmente boas informações sobre buracos negros ou as visões cosmoteológicas de Kepler (só aprendíamos na escola as leis, impessoalmente, aquelas sobre os planetas transladarem ao redor do Sol em elipses, com a velocidade em cada trecho proporcional ao arco da curva). 


O mais fascinante de tudo era que as leis que regiam o Universo eram as mesmas de todos os lugares, com as quais estávamos completamente familiarizados, mas levadas ao extremo pela escala das massas e distâncias pantagruélicas. A ideia, por exemplo, de que a força que fez a maçã cair (ou não) aos pés de Newton, numa estrela, tornava-se tão descomunal que apertava os átomos a ponto de disparar uma fusão nuclear era intrigante e provocadora. Era o tipo de condução de pensamento que beirava a filosofia e esse foi um dos pontos que tornou o Cosmos de Neil Degrasse Tyson tão decepcionante. Não só perdeu o lustro de novidade, como teve que voltar seus esforços para fazer propaganda da ciência contra religião e as virtudes de uma sociedade cooperativa, problemas que já existiam na era do Carl Sagan, mas que pareciam definitivamente encaminhados para a extinção. Na verdade, apesar do orçamento não permitir tantos efeitos especiais - ou sequer uma peruca que não seja de fantasia de carnaval para o Alexei Filippenko - e ninguém ter o carisma e os dons pedagógicos do Sagan, a série O Universo (e seus derivados) é muito mais o herdeiro espiritual do que o esforço do astrônomo-lutador (sim, o Tyson foi atleta de luta grecorromana na faculdade!). Pelo menos as abstrações filosóficas estão lá, e sempre que o Lee Smolin for falar das consequências da física, estou disposto a escutar. Mas a Netflix tem em sua programação um especial com ainda mais DNA do Carl no sangue. A singular “Viagem ao Infinito”.


O singular acima, é claro, é pra remeter ao termo singularidade. Mas também porque é embatucante porque a Netflix achou que um especial sobre matemática abstrata iria atrair espectadores suficientes para justificar seu financiamento. Sim, porque esses espaçoespeciais sempre podem apelar para “as chances de um asteroide atingir a Terra” ou “em 2030 poderemos estar mandando uma missão a Marte” para atrair espectadores menos dados a conceitos puramente teóricos, mas Viagem ao Infinito deve soar para a maioria dos espectadores como matéria escolar, da qual eles já tiveram bastante, muito obrigado. Mas eles vão acabar perdendo uma hora e meia de uma fascinante jornada não apenas sobre o que é o infinito, mas o que SIGNIFICA não ter começo e nem fim.


Pouca coisa se parece tanto com filosofia quanto matemática abstrata, e mesmo os conceitos mais simples e fáceis de compreender ali destilados são provocantes. A equação “infinito + infinito = infinito”, ao se subtrair o infinito de cada lado do sinal de igual, leva à conclusão matemática de que “infinito = 0”. O que o programa já havia insinuado ao demonstrar - com ótimas animações imitando o estilo dos anos 30 - que o dobro de infinito é igual a infinito, e nova dobra leva ao mesmo. Ser tudo é o mesmo que ser nada, como já dizia aquele ditado sobre magia: é o espaço vazio em torno de nós que nos dá forma. Só é possível SER alguma coisa se formos finitos.


Viagem ao Infinito é uma produção barata, mas não tanto quanto O Universo. Afinal, tem até bem cuidadas animações simulando as analógicas da era do art-decó, mas também se escora principalmente em cientistas falando, de forma bem pedagógica e editada. Afinal, quem pode resistir a uma série sobre matemática avançada e filosofia em que um astrofísico conta “quando eu tinha 10 anos, eu tive consciência da vastidão do espaço. De como tudo era numa escala incompreensível e indiferente. Com esse conhecimento, por que nos preocupamos em levantar da cama, ir ao dentista, manter a casa arrumada, trabalhar… qual o sentido disso tudo? Aí eu me apaixonei”.