maio 16, 2006

Capítulo VI - A Copa de 1954, o WW húngaro e Puskas

Os capítulos anteriores estão lá embaixo, em ordem decrescente. Vá descendo.

A EVOLUÇÃO TÁTICA - O WW HÚNGARO

Em 1952 um país com apenas 10 milhões de habitantes e pouca tradição no esporte surpreendeu todo o mundo ganhando 42 medalhas nas Olimpíadas de Helsinki. A Hungria chegou em terceiro, atrás apenas das superpotências EUA e URSS, ou em primeiro lugar entre países que não fossem conhecidos por suas iniciais.
A Hungria havia se tornado comunista ao ser "libertada" pelos soviéticos (atuais russos, ucranianos, bielarussos etc. etc.) na II Guerra Mundial. Compreendendo que conquistas esportivas seriam excelente propaganda para o socialismo, o governo instaurou o Comitê Nacional para a Educação Física e Esportes (lembra daquela história de que militarismo costuma estimular a prática esportiva?). Em 1949 os times de futebol foram nacionalizados, isto é, deixaram de ser clubes e passaram a fazer parte do Estado. Assim o mais popular deles, o Feréncvaros, passou a se chamar EDOSZ e a pertencer a uma associação de trabalhadores na indústria de alimentos. Seu principal rival foi para as mãos do Exército - seus jogadores ganhavam patentes de oficiais - e mudou seu nome para Honved.
Essa nacionalização foi perfeita para os planos do técnico da seleção húngara, Gusztav Sebes. Comunista ferrenho, atuante em toda a Europa desde os anos 30, ele acreditava firmemente no valor do esporte como propaganda. Estudando a Itália, que dominou o futebol nos anos 30, ele chegou à conclusão de que suas conquistas foram facilitadas porque quase todos seus jogadores vinham de apenas dois times - Juventus e Torino. Ele então concentrou seus melhores atletas no Honved para que pudessem treinar juntos até que formassem uma equipe coesa e perfeitamente entrosada, com movimentos perfeitamente coordenados e sincronizados.
Treinando juntos diariamente, os húngaros, aproveitando aquela geração de craques - Puskas, Hidegkuti, Kocsis - criaram um sistema de troca de passes curtos em triângulos, em que três jogadores iam avançando com a bola passando de pé em pé. Era uma tremenda novidade na época, em que todo mundo ainda jogava em WM, com cada atleta mantendo sua posição o tempo todo e marcando homem-a-homem o "seu" adversário. E era um reflexo das convicções socialistas de Sebes.

FIGURA 13

Acreditando cegamente nos conceitos de divisão igualitária de tarefas e de responsabilidade de todos, Sebes levou essas idéias aos gramados. Quando seu time atacava, o meio-campo e a defesa apoiavam avançando bem dentro do campo adversário, em trocas de passes curtos. É claro que isso deixava a retaguarda muito aberta. Arreganhada. Uma bola longa ou um sujeito rapidinho poderiam entrar sozinhos até a grande área. Mas a Hungria inovou também no gol. Seu goleiro, Grosics, foi o primeiro a jogar adiantado, para cortar os lançamentos ou fechar o caminho do jogador que passasse pela defesa. Funcionava quase como um líbero, como um último zagueiro. Como o Rogério Ceni faz no São Paulo.
Mas isso não era tudo. Sebes também inovou no plano tático, sendo o mais próximo ancestral do 4-2-4 brasileiro. O WM havia posto um sujeito paradão dentro da grande área com a única e exclusiva missão de parar o centroavante adversário, tanto que era conhecido com "stopper" (parador). Como consequência, os centroavantes ágeis, leves e ariscos desapareceram para dar lugar a atacantes mais pesadões e fortes, capazes de dividir bolas rasteiras e disputar cruzamentos com o beque. Sebes tinha um time de craques, mas não tinha esse "centroavante trombador".
Sebes então recuou seu centroavante para o meio-campo para ele armar jogadas para o ataque. O beque parado do adversário não sabia o que fazer. Deveria ir atrás do sujeito lá no meio ou ficar em seu lugar guardando a área e deixar aquele atacante desmarcado? E olha que era o Hidegkuti, outro que jogava muito.

FIGURA 14

Na linha de frente a modificação de Sebes criou o ataque contemporâneo, que se usa hoje. Puskas e Kocsis não eram pontas e nem centroavantes, mas podiam funcionar como ambos. Posicionados entre o beque central e o lateral, desarrumavam a marcação homem-a-homem. Habilidosos e inteligentes, podiam fazer uma jogada pela lateral, vir trocando passes com Hidegkuti, avançando desde o meio-campo, ou fechar para o meio para concluir. Exatamente como Bebeto e Romário faziam na Copa de 94. Ou Robinho e Adriano na Copa das Confederações de 2005.
Com todas essas modificações e o meio-campo tendo que providenciar também as jogadas pelas extremas, Sebes achou que sua defesa ficava muito exposta. Para tanto ele recuou o médio-esquerdo Joseph Zakarias para bem à frente da defesa, sem muitas funções ofensivas. Muita gente pedia para que ele fosse sacado do time, sem compreender que ele era o caminho que levaria ao 4-2-4 e ao futebol contemporâneo.
Com um monte de craques, muito treino e táticas inovadoras, os húngaros atropelaram a Europa nos anos 50. Os ingleses, que nunca haviam perdido em Wembley, tomaram em 1953 uma goleada de 6 x 3. Testemunhos da época garantem que o placar saiu barato para os britânicos. A revanche foi no ano seguinte em Budapeste. A Hungria fez 7 x 1. Era o começo do fim do WM e a confirmação do reinado dos "magiares mágicos", como aquele time ficou conhecido. Eles ficaram invictos por quase 6 anos e 31 jogos (27 vitórias), marca que só o Brasil conseguiu superar nos anos 90.

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Um milhão de pessoas tentou comprar ingressos para assistir a Hungria x Inglaterra em Budapeste. Muitos torcedores entraram no estádio levando um pombo-correio, na esperança de que o pássaro levasse o bilhete de entrada para um amigo esperando do lado de fora. A história não registra se alguém conseguiu entrar com esse subterfúgio. Ou sobreterfúgio, já que era pelo ar...


A COPA DE 1954

A Suíça tinha ficado neutra na II Guerra Mundial. Um dos principais esconderijos de fortunas foram os bancos suíços, incluindo aquelas ganhas com o conflito. Assim, os suíços tinham dinheiro, não estavam reconstruindo nada e nem estavam traumatizados com as mortes de seus filhos. Quando se candidataram para sediar a Copa, todo mundo aceitou. Para os europeus, então, era só pegar um trem e em dez minutos eles estavam lá. E os torcedores poderiam ver os jogos não só nos minúsculos estádios como também em casa. O milagre da televisão levaria as partidas à sala de estar de vários países.
A Copa de 1954 foi a primeira realmente representativa, com 44 países se inscrevendo para as eliminatórias, que deixaram de ser um jogo eliminatório em que o vencedor ganhava vaga para se tornarem um torneio classificatório. O Brasil, pela primeira vez teve que disputá-las, eliminando Paraguai e Chile para manter sua ubiquidade no campeonato mundial. A Argentina não se interessou e o presidente da Federação justificou enigmaticamente dizendo "nosso futebol não deve nada ao de qualquer outro país deste planeta" (e nos outros?). Assim, os portenhos negaram à sua brilhantíssima geração dos anos 40 a chance de brilhar para o mundo, depois da pausa pela guerra e da ausência em 1950.
O sistema de disputa era complicadíssimo. Os 16 times foram divididos em 4 grupos. Estes grupos eram subdivididos em duas chaves. As duas seleções de cada chave jogavam com as duas da outra chave do mesmo grupo (hein?) e os dois que fizessem mais pontos no grupo, independente da chave, avançavam para as quartas-de-final. Ah, e em caso de empate haveria uma prorrogação. Se ainda assim não houvesse um vencedor aí sim era declarado empate. Ah, e mais uma coisa, se os dois países de cada chave terminassem empatados em pontos haveria uma partida-desempate. E=mc2. s=so+vot+at2/2.
Os favoritos eram os húngaros, invictos há 31 jogos, criadores do WW e da moderna linha de ataque. Os ingleses, com uma preparação muito melhor, também eram bem cotados. O campeão Uruguai e o Brasil, com a melhor campanha das eliminatórias (4 vitórias em 4 jogos), eram respeitados. E lá atrás vinha a Alemanha, que não participara da Copa de 1950 porque ainda estava de castigo por ter começado a II Guerra Mundial. No comando técnico, Sepp Herberger, desde 1936, quando substituiu o treinador anterior, que "desapareceu" durante o nazismo.
A derrota de 1950 teve consequências dramáticas no futebol brasileiro. Só a eliminação para a Itália em 1982 teria uma influência tão grande. Para começar, a seleção mudou seu elegante uniforme de camisa branca com gola e calções azuis. Fazia parte do passado, que deveria ser esquecido. Era preciso começar tudo do zero. Assim, o "professor" Flávio Costa perdeu o cargo de treinador que manteve incontestado durante anos. Do time que foi para a Suíça apenas um tinha sido titular quatro anos antes, Bauer. Até Zizinho ficou de fora. Seu talento não era necessário. O que era necessário era garra, raça e valentia. E amor à pátria.
Tornou-se uma obsessão para os brasileiros encontrar um "Obdulio", um líder. Foi a bofetada dele em Bigode (que não aconteceu) que deixou os brasileiros com medo de atacar. Foram seus gritos e berros que empurraram os uruguaios contra a amedrontada defesa brasileira. Não, Copa do Mundo não era para jogadores técnicos, elegantes e refinados que se assustavam frente a homens de verdade decididos a vencer. Era um prêmio para verdadeiros guerreiros, como os da Itália de Mussolini e do Uruguai de Obdulio Varela, os únicos países a vencerem o torneio até então.
O trauma de 1950 foi tão grande que a seleção não foi convocada durante dois anos. Reapareceu apenas em 1952, para disputar o Pan-Americano, sob o comando de Zezé Moreira, que criara sua própria variação do WM, mudando a marcação homem-a-homem para marcação por zona e atacando com apenas dois ou mesmo um jogador. Essa tática parecia mais uma covardia típica de quem nunca ganharia uma Copa do Mundo e o treinador só se manteve no cargo por ganhar o Pan-Americano, goleando o Uruguai por 4 x 2 na final. Mas o resultado não acabou com a obsessão. Era preciso encontrar um Obdulio e fazer os jogadores terem um irresistível amor à pátria para vencer. Getúlio Vargas, o presidente do Brasil, em seu discurso de despedida aos atletas que partiam para a Suíça, avisou, "se perderem, quem perderá será o Brasil".
Os outros times, que estavam lá para jogar bola, foram fazendo os resultados. A Áustria e o Uruguai eliminaram Escócia e Tcheco-Eslováquia, duas potências decadentes do esporte. A Inglaterra e a Suíça mandaram embora a Bélgica e a Itália, que ainda não se refizera da morte de mais de meio time no desastre aéreo de Superga em 1949. O único grupo que precisou de uma partida-desempate foi o da Alemanha e Hungria. Tudo parte do insidioso plano germânico para levar a taça para casa.
A Hungria atropelou os coreanos por 9 x 0. Os alemães fizeram 4 x 1 na Turquia. A segunda rodada (e última, com o regulamento maluco) seria Alemanha x Hungria e Turquia x Coréia. Sepp Herberger, o treinador alemão, não tinha sobrevivido ao fracasso de 1938, ao nazismo e à II Guerra Mundial sem prever bem seus movimentos. Ele calculou que a Turquia venceria a Coréia e que seu time tinha poucas chances contra os magiares mágicos. Assim, os germânicos e os turcos terminariam ambos com dois pontos, atrás da Hungria com quatro (até 1994 a vitória valia dois pontos).
Então Herberger, como um bom germânico, traçou sua estratégia fria e calculista: mandou às favas o jogo contra a Hungria. Botou um bando de reservas encarar a turma do Puskas e do Kocsis e poupou os principais jogadores para a partida-desempate contra os turcos. Um gesto desses seria impensável para nós, ainda mais que os húngaros fizeram 8 x 3. O técnico brasileiro que tomasse uma atitude dessas era posto na rua na hora. Mas tudo funcionou às mil maravilhas para Herberger. Os magiares ficaram com a impressão de que a Alemanha tinha um time fraco, os alemães venceram os turcos por 7 x 2 e, de brinde, a forte marcação e as seguidas faltas de Liebrich tiraram Puskas do restante da Copa. Ele só voltaria, fora de condições, para a final.
Quanto ao Brasil, a camisa canarinho estreou bem: 5 x 0 sobre o México. Os problemas daquela confusa campanha começaram contra a Iugoslávia. O jogo terminou 1 x 1 e foi para a prorrogação, mantendo-se o empate. Sem entender direito o regulamento estapafúrdio, os brasileiros não sabiam que o resultado classificava as duas equipes e correram os 120 minutos. Era preciso ter raça! Os iugoslavos, assustados, gesticularam durante todo o tempo extra para que eles parassem, se poupassem, fizessem jogo de compadres. Não adiantou nada. Alguns jogadores saíram de campo chorando, achando que estavam eliminados. Zezé Moreira ficou lamentando a necessidade de uma partida-desempate. Só mais tarde apareceu alguém para dizer que estávamos classificados. Beleza! A única preocupação agora é não cair no sorteio a Hungria nas quartas-de-final.
Caiu.
Dezessete gols em dois jogos. Campeões olímpicos. A sensação do futebol mundial. E era justo quem o Brasil tinha que enfrentar depois de correr 120 minutos. Zezé Moreira chegou pálido na concentração para avisar o resultado do sorteio. Os jogadores já estavam tensos e nervosos desde o início do torneio. Para aumentar a pressão, além do discurso de Varags, todo dia era cantado o hino nacional e a bandeira do Brasil hasteada. Ela também era beijada por cada atleta no vestiário, antes dos jogos. E agora, ainda por cima, a Hungria. Os comunistas. E a propaganda política da Guerra Fria ensinara a todos como comunistas eram diferentes - ateus truculentos e maus que precisavam ser derrotados, o que aumentava ainda mais a responsabilidade.
E foi nesse clima que os jogadores entraram em campo para enfrentar a Hungria. O locutor Geraldo José de Almeida, num dos discursos que eles foram obrigados a ouvir durante quarenta minutos no vestiário, clamou-os a "vingar os mortos de Pistóia", em referência a uma cidade onde estão enterrados pracinhas que tombaram enfrentando... alemães!!!! A única boa notícia é que eles não tinham Puskas. Mas tinham Hidegkuti, o centroavante recuado, o "ponta-de-lança" que viria a se transformar no "número 1" ou "meia-atacante" de hoje em dia. E ele abriu o placar logo aos quatro minutos. Kocsis ampliou aos sete. Novamente em uma Copa o Brasil estava perdendo de 2 x 0 antes de saber o que estava acontecendo. Os nervos estavam em estado tal que, quando houve um pênalti a favor do Brasil aos 18 minutos, o lateral Djalma Santos teve que cobrá-lo porque nenhum atacante se ofereceu para fazê-lo.
O jogo foi ficando nervoso. Didi jogou o primeiro tempo com chuteiras de travas baixas, que o faziam escorregar toda hora no campo molhado. No intervalo ele trocou-as e começou a liderar a seleção no segundo tempo. O Brasil corria atrás do empate, mas não ameaçava muito. Julinho, um dos maiores dribladores do futebol brasileiro, começou a ser caçado em campo. Os brasileiros também começaram a baixar o sarrafo. Numa jogada dentro da área Pinheiro e Czibor se chocaram. O juiz, Arthur Ellis, deu pênalti. Lantos converteu e os ânimos ficaram mais acirrados ainda. Julinho diminuiu aos 20, mas logo depois Boszik e Nilton Santos se desentenderam e foram expulsos. O ímpeto brasileiro esfriou e aos 43 Kocsis marcou mais um. Fim de papo? Infelizmente não.
Depois de mais uma expulsão, Humberto, por chutar um magiar sem bola, o jogo acabou. Maurinho, o ponta-esquerdo, foi cumprimentar um húngaro e o gesto não foi retribuído. O médico da delegação pegou uma garrafa de água e atirou, mas ela pegou em Pinheiro, que se virou para ver quem a tinha jogado. Alguém gritou "foi o húngaro" e começou a confusão para valer. Felizmente ninguém se machucou de verdade, mas Zezé Moreira conseguiu acertar uma chuteira em Gusztav Sebes e Paulo Planet Buarque, assessor de alguma coisa, deu uma rasteira num gendarme. A foto saiu em todos os jornais do mundo. Quando o gendarme se levantou, procurando algo no bolso, Paulo achou que ele fosse puxar uma arma, mas ele tirou apenas um lenço para limpar o uniforme. O episódio ficou mundialmente conhecido como "A Batalha de Berna" (e consta do DVD da FIFA sobre Copas do Mundo).
Nos outros jogos das quartas-de-final a Alemanha eliminou a Iugoslávia por 2 x 0, a Áustria fez 7 x 5 na Suíça e os bicampeões Uruguais, em busca do terceiro título, que lhes daria a posse definitiva da taça, tirou a Inglaterra fazendo 4 x 2. Obdulio Varela fez o segundo. Que diferença para os capitães brasileiros!
Na primeira semifinal a Áustria julgava-se favorita. Tomou de 6 x 1 dos alemães. Na outra o Uruguai, sem Obdulio Varela, encarou os magiares mágicos sem Puskas. E encarou mesmo. A Hungria ganhava por 2 x 0 até os 30 minutos do segundo tempo, mas deixou os bicampeões, mesmo com um time envelhecido, empatarem faltando 4 minutos para o fim. Os platinos não aguentaram correr atrás dos velozes húngaros na prorrogação e perderam por 2 x 0 (4 x 2 no total). Foi a primeira vez que os uruguaios perderam um jogo de Copa, dando fim a uma invencibilidade de 11 jogos, marca que só seria superada por quem? Brasil, em 1962.

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As maiores sequências de jogos sem derrota em Copas do Mundo foram:

13 jogos
Brasil (1958/1962/1966 - 11 vitórias e 2 empates)

11 jogos
Uruguai (1930/1950/1954 - 10 vitórias e 1 empate)
Brasil (1970/1974 - 9 vitórias e 2 empates)
Brasil (1978/1982 - 8 vitórias e 3 empates)
Alemanha (1990/1994 - 8 vitórias e 3 empates, um deles vencido na cobrança de pênaltis)

O Uruguai perdeu da Áustria também e acabou em quarto. Talvez com Obdulio a história da Hungria tivesse acabado antes. Mas ela prosseguiu até a final. Que seria contra a Alemanha, que eles tinham vencido por 8 x 3 na primeira fase. Parecia fácil, muito fácil. Mas a Copa do Mundo, como visto em 1950, adorava desprezar times técnicos, ofensivos e favoritos.
O capitão germânico, Fritz Walter havia sobrevivido à guerra na frente oriental para comandar o ataque de sua seleção. No dia da decisão ele acordou e sorriu ao olhar pela janela. O técnico Herberger lhe disse, "tempo bom para você, Walter". Chovia muito. O campo ficaria enlameado, prendendo a bola, o que atrapalharia os magiares, especialistas em trocar passes curtos e rasteiros. Para Walter, que enfrentara a estação russa do degelo, quando a neve de seu inclemente inverno derrete e transforma todos os caminhos em lama, paralisando exércitos e máquinas, ainda com bombas caindo e tudo, uma graminha molhada não era nada.
Na concentração húngara sua grande estrela não vivia tão bons momentos. Puskas ainda não tinha condições ideais de jogo. O time vinha se saindo bem sem ele, mas o craque não queria ficar de fora da final. Ainda mais contra os caras que perderam de oito na primeira fase. E tinham tirado ele da Copa. Ele forçou sua escalação. Ninguém teve coragem de negar.
E, a princípio, pareceu ser a coisa certa. O próprio Puskas fez o primeiro gol logo com cinco minutos. Czibor aumentou aos oito. Parecia que seria outra festa, igual à da primeira fase. Mas os húngaros vinham de dois jogos disputadíssimos. Em ambos abrira logo no começo uma vantagem de dois gols e deixaram o adversário chegar junto. Sinal de que seus oponentes estavam entrando nervosos, mas à medida em que o tempo passava começavam a se acostumar com o tipo de jogo dos magiares. Sinal também de que o time estava se desconcentrando, achando que as partidas já estavam ganhas, parando de se empenhar em campo. Os germânicos se aproveitaram do espaço que os húngaros deram e empataram também em oito minutos, aos dez e aos dezoito.
A decisão ficou nervosíssima. Ambos os times perderam chances de gol. Puskas sentiu a contusão e a partir dos dez minutos do segundo tempo ficou mancando em campo, praticamente inútil, deixando sua equipe virtualmente com dez. Ainda não havia substituições. Aos trinta e nove Rahn desempatou. Concretizava-se o que ficou conhecido como "Milagre de Berna". Puskas ainda empatou no finalzinho, mas o juiz anulou o gol. Os húngaros, como era de se esperar, juram que ele estava errado. Certo estava Sepp Herberger. Sua estratégia funcionou às mil maravilhas. Um plano a longo prazo que incluiu uma derrota humilhante levou a Alemanha à primeira vitória em Copas do Mundo, começando sua história como um dos grandes do torneio, ao lado de Brasil e Itália.
A Copa de 1954 teve a mais alta média de gols da história. O WM visivelmente não funcionava mais numa era de jogadores bem mais rápidos do que nos anos 20. Era preciso atualizar o futebol. Quem o faria?
O Brasil.

FRITZ WALTER

Pouquíssimos alemães sobreviveram aos campos de prisioneiros russos na II Guerra Mundial. Fritz Walter foi um deles. Nascido em 1920, Friedrich Walter aos 17 anos já era jogador profissional e aos 19 estava na seleção, marcando três vezes num 9 x 3 sobre a Romênia. Mas a guerra contra a União Soviética foi ficando cada vez mais complicada e os nazistas começaram a convocar até figuras públicas para a luta. E lá se foi Fritz Walter. Capturado, ele foi libertado em 1945 e voltou para casa e para o esporte.
A seleção alemã só voltou a jogar em 1950. Walter voltou ao time em 1951. Parecia que ele não teria chance de brilhar internacionalmente, mas sua impressionante visão de jogo e sua habilidade com a bola o mantiveram como capitão da equipe até a Copa de 1954. Como capitão ele não só era um líder dentro de campo, mas o representante do técnico Sepp Herberger, a quem o jogador sempre chamou de "chefe".
A vitória sobre a Hungria foi um dos primeiros passos para os alemães reconquistarem sua auto-estima depois de ficarem conhecidos como "nazistas miseráveis". Não à toa um garoto de escola, perguntado sobre quem fundara Kaiserslautern, cidade natal de Walter, respondeu "Fritz Walter". Foi o capitão que começou a mudar a imagem germânica aos olhos do mundo, que acompanharam o torneio pela televisão.
Walter ainda lideraria a Alemanha na Copa de 1958 até a semifinal, na qual saiu contundido. Mesmo jogando no meio-campo, marcou 33 gols em 61 partidas pela seleção. Recebeu diversas honrarias, incluindo a Grã-Cruz da Ordem do Mérito, a maior condecoração alemã. O estádio do Kaiserslautern foi batizado com seu nome em 1985.
Fritz Walter faleceu em 2002.

FERENC PUSKAS

Puskas não deu muita sorte na Copa do Mundo. Em 1954 contundiu-se no segundo jogo e só voltou na final, sem condições, apenas para presenciar o "Milagre de Berna". Em 1956 seu time, o Honved, excursionava pelo mundo quando houve um golpe em seu país, instaurando um governo comunista ainda mais linha-dura. Puskas abandonou seu clube e foi suspenso um ano e meio pela FIFA. Após esse período juntou-se ao Real Madrid e naturalizou-se espanhol, disputando a Copa de 1962 já com 35 anos pela Espanha e acabou em último lugar. Baixinho, gordinho e incapaz de cabecear ou usar o pé direito para jogar, ele parecia um atacante pouco viável. E foi um dos maiores da história.
Puskas nasceu em 1927 em Budapeste e aos 16 anos já jogava na equipe principal do Kispet Budapest e aos 18 já estava na seleção, enfrentando a Áustria. Com a reorganização esportiva promovida pelo governo comunista, seu clube passou a chamar-se Honved, virou o time do exército e ele ganhou a patente de major, daí seu apelido de "Major Galopante". Sua técnica e habilidade, bem como seu chute forte e preciso, encaixaram-se perfeitamente nos planos de Gusztav Sebes para a seleção húngara.
Com o WW de Sebes, Puskas tornou-se o primeiro atacante da forma como entendemos hoje. Em seu tempo existiam os pontas, que corriam pela lateral para tentar cruzar para a área e o centroavante, que disputava a bola com o beque central, que o perseguia de perto o tempo todo. No Honved, Puskas passou a se movimentar por todo o setor esquerdo do ataque - na direita Kocsis fazia o mesmo. Os defensores não sabiam se guardavam posição ou corriam atrás deles, abrindo caminho para quem vinha do meio-campo. Foi a primeira vez que se percebeu que bastariam dois atacantes se eles não ficassem restritos à grande área, caíssem pelas laterais e construíssem jogadas um para o outro. O ataque pelas pontas poderia ser providenciado por meio-campistas que viessem de trás, sem marcação, porque os zagueiros estavam correndo atrás de Puskas e Kocsis.
Depois que se juntou ao Real Madrid, Puskas formou com Di Stefano um ataque que levaria o clube a vencer duas vezes a Liga dos Campeões da época, criando sua fama mundial. Ele deixou o time e pendurou as chuteiras em 1966, aos 39 anos. Como técnico, seu maior feito foi levar o modesto Panathinaikos, da Grécia, à final da Copa Européia. Em 1993, aos 66 anos, ele finalmente voltou à sua terra natal, a Hungria, onde vive até hoje.