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A EVOLUÇÃO TÁTICA: O BRASIL CRIA O 4-2-4 E O FUTEBOL CONTEMPORÂNEO
O mundo estava mudando nos anos 50. Surgiram a bomba de hidrogênio, a foto de Einstein fazendo careta, o rock´n´roll, a Revolução Cubana, o foguete espacial, o cérebro eletrônico (que depois ficaria conhecido como computador) e a bossa nova. Com o fim da II Guerra Mundial todas as fábricas de armas começaram a fabricar outras coisas. Com metade do planeta precisando de reconstrução havia emprego para quase todos. Com um monte de técnicas arriscadas testadas para salvar vidas de soldados, a medicina avançou bastante. Os antibióticos ficaram disponíveis para o público. Apesar da Guerra Fria, o antagonismo entre os americanos e os soviéticos, a humanidade nunca fora tão próspera. E, com a prosperidade, as pessoas se alimentavam melhor e ficavam menos doentes.
Essas pessoas saudáveis davam também atletas bem melhores. O WM exigia que cada jogador treinasse à exaustão para se tornar bom especificamente em sua posição. Também requeria treinamento para a entediante tarefa de ficar o jogo inteiro perseguindo um único adversário, a "marcação homem-a-homem". Todo esse treino só foi possível com a profissionalização do futebol. Mas o profissionalismo aumentara desde então, aplicando os avanços da medicina na área esportiva. Os atletas dos anos 50 podiam correr bem mais do que os dos anos 20. E era necessário repensar o esporte para essa nova época.
E essa nova época surgiu no Brasil. As raízes estão no artigo que Flávio Costa escreveu para "O Cruzeiro", clamando por uma tática que não limitasse a improvisação. Ele aplicou suas idéias ao criar a "diagonal". Zezé Moreira começou a aplicar a marcação por zona. E Fleitas Solich começou a implantar o 4-2-4 no Flamengo tricampeão estadual. O húngaro Bella Guttman fez o mesmo no São Paulo e alguns analistas europeus insistem em dizer que ele trouxe o sistema de seu país, ignorando que desde 1949 já se forjava aqui esta idéia.
FIGURA 15
E o que tem o 4-2-4 de tão revolucionário? A princípio parece uma tática defensiva. Usa quatro zagueiros. Mas não é só o número que interessa. Compare com a ilustração do WM. Os defensores estão muito mais próximos entre si. A defesa inteira pode agir como uma unidade, de forma coordenada. Um beque pode ajudar ou cobrir outro com muito mais facilidade. Além disso, cada um fica responsável por um espaço muito menor. Eles não marcam mais "homem-a-homem", eles não seguem o atacante aonde ele vá. Eles guardam seu setor e dão combate a quem aparecer por ali. O truque húngaro de posicionar Puskas e Kocsis entre o lateral e o beque simplesmente não funcionaria contra esse sistema.
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Com o WM a defesa tinha três integrantes - o beque central (stopper) e os laterais. Com o 4-2-4, o zagueiro central ganhou um companheiro para ajudá-lo a guardar a área, que passou a ser conhecido como "quarto zagueiro". Até hoje esses jogadores são conhecidos assim, mesmo que uma linha de quatro não tenha um jogador central e o quarto defensor seja o lateral-esquerdo, se contado da direita para a esquerda.
Avancemos até o meio-campo. São apenas dois jogadores, contra o quadrado do WM. Mas esses dois são atletas modernos, que correm muito mais. Eles defendem e atacam. Assim a defesa não tem quatro integrantes - tem seis! Com tantos defensores o 4-2-4 abre mão da superioridade numérica no meio.
O meio-campo também arma as jogadas para a linha de frente, com quatro integrantes. Dois deles são centroavantes, o que levava à loucura o solitário beque central do WM. Os outros são pontas. Os atacantes, também com excelente preparo físico, quando perdem a bola têm a função de atrapalhar a saída de jogo adversária, para dar tempo aos meio-campistas de se recomporem, que também têm a missão de avançar, formando às vezes um ataque com seis jogadores!
E até a defesa precisa se recompor também. Observe a ilustração. O meio-campo. Com tão poucos integrantes pode haver dificuldade na armação das jogadas. Além disso, há visivelmente um espaço entre eles e a linha lateral, que os locutores da época chamavam de "zona morta". Ora, por esse espaço um defensor moderno, capaz de correr o campo todo, pode se infiltrar e ajudar na criação ofensiva. E foi o que Nílton Santos e Djalma Santos fizeram, criando o lateral atacante. Sempre que o lateral de seu time, ou Roberto Carlos na seleção, fizerem um gol ou cruzamento, você está assistindo ao princípio do 4-2-4 em ação.
Assim o Brasil lançou uma tática com uma defesa sólida, com marcação por zona, um meio-campo que realmente atacava, criava e defendia e atacantes móveis que se infiltravam por entre os espaços deixados pelo obsoleto WM. O sistema aproveitava ao máximo a tendência natural dos brasileiros para o ataque, bem como sua capacidade de improvisação. Tradicionalmente em nosso futebol até os zagueiros têm um certo grau de habilidade, o que aumentava a eficiência do 4-2-4 e seu lateral atacante.
O ataque era entretanto o ponto fraco do 4-2-4. Os brasileiros usavam uma dupla de atacantes de área, assim como os húngaros, mas insistiram nos pontas. Com laterais e apoiadores disponíveis para fazerem as jogadas pelos lados do campo os ponteiros tornavam-se supérfluos. Eram jogadores especializados demais, como aqueles do WM. E isso já podia ser observado na seleção, pois Zagallo, extrema-esquerda e futuro técnico campeão, já tinha a tendência de voltar para ajudar o meio-campo a marcar (daí seu apelido, "Formiguinha"). No Fluminense Telê Santana fazia o mesmo pela direita. Mas eliminar os extremas era impensável no time do Brasil, porque nesse setor jogava um dos maiores monstros sagrados do esporte: Garrincha.
Mas encontrar um Garrincha não era uma tarefa fácil. Depois da acachapante vitória do Brasil em 1958 o mundo inteiro copiou esse sistema de jogo, sem os mesmos resultados. Já em 1962 o Brasil jogou em 4-3-3, recuando definitivamente Zagallo para o meio-campo. No resto do planeta futebolístico, sem Garrinchas, os pontas se extinguiram.
O desenvolvimento natural do 4-2-4 era o 4-4-2. São táticas tão parecidas que a seleção brasileira que venceu a Copa das Confederações em 2005 pode ser escalada em qualquer um dos sistemas (com dois no meio-campo, Emerson e Zé Roberto, e quatro no ataque, Robinho, Adriano, Kaká e Ronaldinho, ou quatro no meio-campo, Emerson, Zé Roberto, Kaká e Ronaldinho, e dois no ataque, Robinho e Adriano). Apenas no Brasil levou-se mais tempo para aceitar a morte dos pontas devido ao extraordinário talento de Garrincha.
A COPA DE 1958 - A TAÇA DO MUNDO É NOSSA, COM BRASILEIRO NÃO HÁ QUEM POSSA
A Suécia, como a Suíça, também ficou neutra na II Guerra Mundial (ou seja, o lugar mais seguro para ficar numa guerra é em países europeus cujos nomes começam com "su"). Assim, quando os escandinavos se candidataram para sediar a Copa, todo mundo aceitou.
Jules Rimet havia morrido e o novo presidente da FIFA, Arthur Drewry, criou o sistema clássico, que é usado até hoje (com exceção das Copas de 1974 a 1982): os times são dividos em chaves com quatro seleções cada, com todos jogando entre si. Os dois primeiros de cada grupo se classificam. A partir daí os jogos são eliminatórias. Duas equipes se enfrentam e o vencedor passa para a próxima fase, até só sobrar um, o campeão. Simples assim. A única diferença de 1958 para a Copa de 2006 é que atualmente há o dobro de participantes - 32 times -, o que exige um jogo eliminatório a mais.
O Brasil havia se classificado para a Copa com uma vitória sobre o Peru. João Havelange havia assumido a presidência da CBD. Uma de suas primeiras providências foi chamar para assessorá-lo Paulo Machado de Carvalho, empresário dono de emissoras de rádio e TV. Ele traçou um plano de trabalho que o levaria a ser conhecido como "Marechal da Vitória". Pela primeira vez a preparação da seleção seria confiada a uma verdadeira comissão técnica, incluindo psicólogo e dentista, ao contrário das Copas anteriores, quando Flávio Costa e Zezé Moreira eram quase onipotentes nas decisões.
A preparação foi longa. Levou mais de três meses. Naquela época todo mundo jogava aqui no Brasil mesmo e os campeonatos paravam para a seleção treinar para a Copa. Os jogadores foram submetidos a uma bateria de testes e exames. O dentista da comissão técnica examinou-os em buscas de cáries e infecções. Problemas dentários levam a pessoa a mastigar errado e ter problemas digestivos, incompatíveis com atletas bem preparados. Por conta desse detalhe, Garrincha, por exemplo, teve três dentes arrancados. Tais providências mostram o cuidado com que foi planejada a campanha.
No comando técnico estava Vicente Feola. Feola foi uma escolha perfeita para o trabalho em comitê. Quando escolhido ele não era treinador do São Paulo, mas supervisor. Quem treinava o bicampeão paulista (capitaneado por Zizinho, aquele mesmo) era o húngaro Bella Guttman, que não falava uma palavra em português. Então quem devia estar por trás daquele sucesso era aquele gordo pachorrento. E Feola foi para a seleção levando o revolucionário 4-2-4.
Todas as decisões que não incluíssem a parte tática eram tomadas em votação, inclusive a escalação da equipe. Votavam o chefe da delegação, Paulo Machado de Carvalho; o supervisor, Carlos Nascimento; o preparador físico, Paulo Amaral; o médico, Hilton Gosling e, é claro, Feola. A preparação foi extremamente bem cuidada, mas quase cometeu um erro fatal. Depois da derrota de 1950 e da confusão da "batalha de Berna", a comissão técnica queria apenas atletas emocionalmente equilibrados. Nada de expulsões tolas, pênaltis desnecessários e medo de partir para cima do adversário. Daí a presença de um psicólogo, o professor Carvalhais. Sobre sua utilidade, conta-se que ao subir no avião entrou em pânico e os jogadores tiveram que acalmá-lo. Mas foi ele quem aplicou os exames psicotécnicos nos convocados. Um dos testes era igual ao que se faz na prova para carteira de motorista: desenhar um boneco.
Quando chegou a vez de Garrincha, o ponta desenhou um boneco de pauzinhos (e nem lembrou de desenhar o chão, como todo mundo sabe que deve fazer no exame de motorista) com uma cabeça descomunal, mostrando-a para o psicólogo enquanto ria, "esse aqui é o Quarentinha, quá, quá, quá (Quarentinha era o centroavante do Botafogo). Foi necessária muita conversa de Nilton Santos e Didi, companheiros de time de Garrincha, para convencer Carvalhais que o atacante era indispensável para a campanha, aprovado ou não num psicotécnico.
Mas essa conversa não foi suficiente para Garrincha ser titular. Ele foi posto na reserva após um amistoso de preparação contra a Fiorentina, da Itália. Após driblar toda a defesa, o ponta parou a bola em cima da linha e ficou esperando o último beque. O zagueiro chegou, Garrincha fintou-o e só então fez o gol. Justificando seu ato, ele disse "mas é que eu tinha driblado todo mundo menos ele". Tamanha irresponsabilidade custou-lhe a vaga. Mas essa não era a única justificativa.
Em 1956 Flávio Costa voltara por um breve período a treinar a seleção. Foi dele a recomendação de que a seleção deveria excursionar mais pela Europa para conhecer outros times e outros sistemas de jogo e ter mais confiança em seus próprios recursos. Assim não se amedrontaria com a fama de favoritos como a Hungria em 1954. E assim a CBD fez.
Um dos amistosos foi contra a Inglaterra. O Brasil perdeu. Nilton Santos levou um baile de um atacante de 41 anos, o lendário Stanley Matthews. E Sabará desceu para o salão do hotel de toalha, chinelos e um gorrinho de marinheiro enrolado como turbante. Uma velhota inglesa gritou "shocking!" (chocante), causando uma comoção. Foi a gota d'água. Flávio Costa já culpava o negro Juvenal pela derrota em 1950. O Brasil preferia martirizar Barbosa, um negro numa posição de tanta responsabilidade, o gol, só poderia falhar. E Bigode, com medo de Obdulio. E Didi, escorregando contra a Hungria. E Pinheiro, fazendo pênalti em Czibor. Nunca veio à luz, mas conta-se que foi feito um relatório secreto à CBD depois da excursão recomendando que fossem usados mais brancos na seleção. O negro não teria a maturidade e o equilíbrio necessários à conquista de uma Copa. E assim o mulato Garrincha cedeu seu lugar ao branco Joel na ponta-direita.
Verdade ou não, o time que estreou na Copa contra a Áustria tinha dez jogadores brancos. O único negro era Didi, cujo reserva também era negro. Pelé estava se recuperando de contusão. Como para confirmar os temores, a até hoje prestigiada revista France Football fez um artigo sobre o Brasil dizendo que "seus jogadores são excessivamente temperamentais e imaturos, despreparados psicologicamente, enfim, para uma disputa de tal porte". Previa para a seleção um sexto lugar, atrás da Argentina, que finalmente voltava às Copas. O Uruguai ficou de fora. Também a Itália, mesmo tendo em sua equipe dois uruguaios naturalizados, Schiaffino e Gigghia. Não haveria um tricampeão em 1958.
Os argentinos haviam ganho o Sul-Americano de 1957 com uma humilhante vitória de 3 x 0 sobre o Brasil. Mas eles ficaram de fora da Copa tempo demais. Seu grande craque Labruña tinha já 40 anos. Nestor Rossi também envelhecia, bem como suas táticas de jogo. Ainda por cima, depois do campeonato sul-americano, clubes italianos levaram vários craques portenhos de ascendência italiana: Maschio, Angelillo e Sivori. E naquela época não era convocado quem jogasse no exterior. Como resultado eles foram eliminados ainda na primeira fase ficando em último no grupo. A Tcheco-Eslováquia mandou-os de volta para casa com um 6 x 1, maior goleada já sofreida pela seleção argentina.
A Alemanha chegou capitaneada por um Fritz Walter com 38 anos, como uma das favoritas. Derrotou a Argentina e empatou com Tcheco-Eslováquia e Irlanda do Norte, vencendo o grupo. Irlandeses e tchecos tiveram que fazer uma partida-desempate, ambos com 3 pontos. Ganharam os primeiros.
No grupo 2 a França fez 7 x 3 no Paraguai e 2 x 1 na Escócia. Os iugoslavos empataram com paraguaios e escoceses, mas ganharam dos franceses, que tinham um ataque memorável, com o artilheiro Fontaine e o craque Kopa armando para ele.
No grupo 3, a Suécia derrotou México (3 x 0) e os restos do grande time da Hungria, sem Puskas e Kocsis (2 x 1), mas não conseguiu vencer a retranca do País de Gales (0 x 0). As sobras húngaras também não (1 x 1). E nem o México (1 x 1). Os magiares dispararam uma goleada nos mexicanos e tiveram que desempatar contra os galeses. Deu 2 x 1 para os retranqueiros sobre os comunistas.
O Brasil estreou contra a Áustria. O jogo estava nervoso e equilibrado até que Mazzola aproveitou um cruzamento de Zagallo e fez o primeiro gol. Mesmo assim Gilmar, o goleiro brasileiro, trabalhava adoidado e era um dos melhores em campo. O ataque canarinho produzia pouco e a revolucionária linha de quatro zagueiros é que segurou o resultado. E fez mais ainda. O lateral-esquerdo Nilton Santos avançou, tabelou com Mazzola e fez o segundo gol. Mazzola ainda faria o terceiro, mas a seleção não jogou bem. Gilmar, o capitão e zagueiro Bellini e Nilton Santos foram os melhores do time. Na outra partida da chave, Inglaterra e União Soviética empataram em 2 x 2.
Mazzola, descendente de italianos, perdeu vários gols, mas fez dois e foi mantido na equipe. O branco Dida, o artilheiro do Flamengo, não teve tanta sorte. O mulato Vavá, o atacante do Vasco, foi escalado em seu lugar. Fora essa modificação, foi o mesmo time que enfrentou a Inglaterra, famosa por sua marcação forte e dura, quase violenta.
Foi o primeiro 0 x 0 da história das Copas. Os ingleses marcavam com seu tradicional empenho. Os brasileiros tinham sua defesa com quatro zagueiros. Mazzola mandou uma bola na trave e só. Foi um jogo duríssimo. A União Soviética fez 2 x 0 na Áustria. O resultado obrigava o Brasil a vencer para seguir adiante.
Os soviéticos eram comunistas como os húngaros. Ninguém tinha muito idéia do que era um comunista. Muita gente pensava que fossem sujeitos completamente diferentes, sem emoções, quase um tipo de robô. No ano anterior eles tinham posto em órbita o primeiro satélite artificial, o Sputnik. Nem os americanos ainda tinham conseguido mandar um foguete para o espaço. Campeões olímpicos em 1956, deles se dizia que sua preparação era feita por computador, o que assustava todo mundo, já que ninguém ainda conhecia o Windows e o Bill Gates. Bellini, Nilton Santos e Didi, os jogadores mais experientes da seleção, procuraram a comissão técnica. E pediram a escalação de Pelé e Garrincha.
Pelé já estava nos planos, mas estava contundido e Feola temia por seu físico de garoto de 17 anos contra as fortes defesas européias. Mas Mazzola vinha mal e era preciso vencer. E a conversa dos jogadores convenceu o técnico. Garrincha teria sua chance. Dino Sani também não vinha agradando e perdeu a vaga para Zito.
Os soviéticos, com sua "preparação científica", souberam dessas modificações, mas tinham informações suficientes sobre os jogadores. Pelé era apenas um adolescente e Garrincha tinha um drible irresistível, mas só o fazia para a direita. Então, para anulá-lo, bastava um zagueiro na cobertura. O ponta driblaria para a direita e levaria seu marcador, mas o homem na sobra ficaria com a bola. O jogo começou e a primeiro finta que Garrincha deu foi para a esquerda.
Foi um dos jogos mais memoráveis das Copas do Mundo. Nascia uma lenda. Nos três primeiros minutos o Brasil fez um gol e mandou duas bolas na trave. A primeira foi logo depois da saída. Didi para Garrincha, Garrincha passa pelo marcador e manda uma bomba no poste. A bola é recuperada, nova jogada do ponta e novo tiro na moldura. Outra bola para o atacante e um chute na direção da área encontra o pé do ágil e esperto Vavá. Um a zero.
Os soviéticos não se recuperaram mais. A única vez em que levaram perigo foi numa cobrança de falta. No segundo tempo foram deslocados dois defensores para marcar Garrincha e mais um na sobra. Não adiantou, Vavá fez 2 x 0 aos 21 minutos. Brasil classificado. A URSS também avançaria, após eliminar a Inglaterra num jogo desempate.
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As iniciais da União Soviética, em russo, eram CCCP, e vinham estampadas nos uniformes de seus atletas. Depois da derrota para o Brasil espalhou-se a história de que na verdade as letras significavam "Cuidado Com o Camarada Pelé".
Nas quartas-de-final os brasileiros enfrentaram a retranca do País de Gales. Foi um sufoco. Os galeses começaram jogando de igual para igual, mas logo o Brasil começou a mandar na partida. Gilmar só assistia. Kelsei, o goleiro galês passou a ser a grande figura. O grande zagueiro Mel Charles marcava Pelé com brilhantismo. Vavá não jogou e Mazzola voltou. Garrincha, depois de sua exibição contra a URSS, exagerava nos dribles e levou uma bronca de Didi. O time estava se enervando. Mas outra lenda começaria a nascer nesta partida.
Aos 26 minutos Didi driblou dois adversários, tocou para Pelé dentro da área e correu para a frente para receber. Pelé virou todo o corpo e se preparou para devolver. O zagueiro galês se virou para interceptar a devolução. E então Pelé, sem perder o equilíbrio, em vez de tocar para Didi, puxa a bola com o bico do pé para o outro lado, dando um chapéu no beque, que é pego completamente desprevenido.
Pelé tem o gol à sua frente, mas um zagueiro vem correndo na cobertura e levanta o pé para bloquear o chute forte do atacante. Pelé espera a bola cair na grama enquanto o beque passa batido e dá um biquinho quase sem força. Gol do Brasil. O lance está em todas as antologias da Copa e no filme "Pelé Eterno". Tente assistir. Vale a pena. Aqueles galeses não seriam os últimos a perceber que não era seguro tentar antecipar as jogadas do Rei.
Nas outras partidas, os científicos soviéticos não resistiram aos bem treinados anfitriães, os alemães eliminaram os iugoslavos e os franceses fizeram 4 x 0 nos irlandeses. E seriam os próximos adversários do Brasil, nas semifinais.
Era o jogo da melhor defesa contra o melhor ataque. E, surpreendentemente, o Brasil é que era a melhor defesa!! Os franceses haviam marcado 15 gols em seus quatro jogos; o Brasil não sofrera nenhum. Mérito indiscutível da inovadora linha de quatro zagueiros.
E essa não era a única conquista do 4-2-4. Assistir os jogos do Brasil naquela Copa é uma alegria. A bola é rodada de pé em pé no meio-campo, com os jogadores trocando de posição todo o tempo. O ritmo é muito mais lento e os zagueiros marcam os atacantes a uma distância respeitável, mas é um jogo reconhecivelmente moderno. Se parece haver muito espaço para o ataque brasileiro é porque eles enfrentavam o antiquado WM, com sua marcação homem-a-homem.
Vavá voltou para o jogo contra a França e marcou um golaço logo aos 2 minutos. Parecia que iria se repetir a partida contra a URSS. Mas Fontaine empatou aos 9 e complicou a história.
A partida estava equilibrada. Qualquer um poderia desempatar. Mas aos 39 minutos Didi acertou um chute de efeito, sua famosa "folha-seca", e pôs o Brasil em vantagem. Logo depois o zagueiro Jounquet teria sua perna quebrada numa dividida com Vavá. Com 10 em campo os franceses não foram páreo para Pelé, que marcou três vezes no segundo tempo. Piantoni diminuiu para o placar final de 5 x 2.
A outra semifinal viu os campeões do mundo contra os anfitriães. Os astros da Alemanha, Fritz Walter e Rahn, tinham respectivamente 38 e 39 anos e estavam no fim das forças. Os alemães seguraram o empate em 1 x 1, mesmo com a expulsão de um zagueiro, até os 36 do segundo tempo, quando os suecos fizeram dois gols. Os germânicos perderiam de 6 x 3 a decisão do terceiro lugar para a França. Fontaine fez 4 gols e foi o artilheiro, com inacreditáveis 13 gols em 6 jogos, tornando-se o maior goleador de todas as Copas. Gerd Muller foi o único a ultrapassá-lo, conseguindo 10 gols em 1970 e 4 em 1974.
Brasil e Suécia usavam camisas amarelas. Foi feito um sorteio para ver quem jogaria com o uniforme principal. O Brasil perdeu e não tinha uma segunda camisa. A comissão técnica saiu na rua, comprou camisas azuis e mandou costurar escudos da CBD nelas. Para não provocar a superstição dos jogadores, Paulo Machado de Carvalho chegou na concentração dizendo que os brasileiros iriam usar a camisa da cor do manto de Nossa Senhora de Aparecida, padroeira do Brasil. Não seria ainda daquela vez que a camisa canarinho se consagraria.
Choveu em toda a manhã do jogo. Mas não houve prejuízo para o time de toque de bola, o Brasil. Os suecos, numa atitude elegante, haviam mandado cobrir o campo para que ele não fosse prejudicado. O branco De Sordi, o lateral-direito, não conseguira dormir na véspera. A comissão técnica resolveu escalar em seu lugar o negro Djalma Santos, remanescente da campanha de 1954. Estava completo o time que se tornaria lendário e que a imprensa brasileira escolheu como o melhor de todos os tempos (o resto da mídia mundial acha que foi a seleção de 1970. De todo jeito estamos bem na fita).
Logo aos 3 minutos Liedholm dá um corte seco na zaga e faz 1 x 0. A derrota de 1950 veio à mente de todos os jogadores. Mas Didi, o cérebro do time, caminha até o gol, pega a bola tranquilamente e volta com ela lenta e calmamente até o meio de campo. Durante o trajeto ele avisa a todos, "olha, eu joguei com o Botafogo contra esses gringos numa excursão. Nós somos muito melhores. Vamos jogar que a gente ganha". Seis minutos depois Garrincha dá uma arrancada e um chute na direção da área. Vavá antecipa a jogada e sai de trás de dois zagueiros para só meter o pezinho. A partida está empatada. E o resto é história.
Pareceu replay, mas na verdade foi outra arrancada de Garrincha para o pezinho esperto de Vavá aos 39 que fez 2 x 1 para os brasileiros. Aos 10 do segundo tempo Pelé faz outra obra-prima. Recebe na área, mata a bola no peito, dá um lençol no zagueiro central e fuzila. Foi escolhido um dos 10 gols mais bonitos da história das Copas. Zagallo aumenta para 4 x 1 numa rebatida da defesa. Simonsson diminui aos 43, mas Pelé torna-se o artilheiro isolado da seleção ao acertar uma cabeçada aos 45. E chora convulsivamente enquanto todos comemoram. Diz a lenda que Garrincha não entende tanta festa e Nilton Santos grita para ele "somos campeões, Mané! Campeões!", ao que o atacante teria respondido "mas que campeonatinho curto, sô. Não tem nem segundo turno!" O excelente ponta-esquerda escandinavo Skoglund sorri de sua sorte. Ele era o único remanescente da Suécia que perdeu de 7 x 1 para os brasileiros em 1950. Em dois jogos contra os sujeitos daquele país distante e pobre seu time levou 12 gols e deu adeus às suas chances de vitória.
Dois negros, Didi e Pelé, e dois mulatos, Pelé e Vavá, são os artífices do título. Os brancos Nilton Santos e Bellini comandaram a sólida defesa. O Brasil é um time integrado, o que continuaria raro até os anos 90. O rei da Suécia vem entregar o troféu. Integrantes da delegação pedem para "mr. King" (sr. Rei) tirar fotos com eles. "Mr. King" aceita. Caem por terra o protocolo e as teorias de Flávio Costa sobre a necessidade de boa educação e bom comportamento dos jogadores.
O capitão Bellini recebe a taça, ainda atordoado. Fotógrafos lá de baixo gritam para ele que não estão conseguindo ver a Jules Rimet. Para ajudá-los, o grande líder e zagueiro do Vasco levanta a taça. Está criado um gesto universal e tão instintivo que é difícil de acreditar que ninguém o tivesse feito antes. A partir de então todos os vencedores de campeonatos, em todos os esportes, ergueriam os troféus que recebessem, para celebrar sua vitória e compor a mais manjada foto possível de um campeão.
O 4-2-4 é imediatamente copiado por todo o mundo. É o fim do WM. A lenda brasileira toma o planeta. E o Brasil é tomado pela lenda de Pelé. Embora a Copa já fosse televisionada para a Europa, ainda não havia transmissão por satélite. Os jogos eram filmados, os filmes revelados, copiados, embarcados num avião e exibidos nos cinemas nos dias seguintes. Começava a era da imagem gravada. A nação inteira pôde ver os feitos de Pelé e Garrincha e pela primeira vez os fãs podiam realmente saber como jogavam seus ídolos. Ainda hoje existem as gravações dos jogos de 1958. Ainda hoje pode ser conferido o brilhantismo daquele time, muito acima dos outros técnica, física e taticamente. Foi uma vitória total, completa e arrasadora.
Até então o Brasil era respeitado, mas depois de 1958 virou uma lenda no futebol, o país do "beautiful game" (jogo bonito). Nunca mais a seleção deixaria de ser favorita para uma Copa do Mundo. Somente em 2002 algumas vozes, como a do atacante Henry, da França, diriam que os brasileiros estavam decadentes.
He, he, he.
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O time de 1958: Gilmar; Djalma Santos (De Sordi), Bellini, Orlando e Nilton Santos; Zito (Dino Sani) e Didi; Garrincha (Joel), Vavá (Dida), Pelé (Mazzola) e Zagallo.
PELÉ
Estudos linguísticos contam que na língua urdegue arcaica, falada nas montanhas do distante Turcomenistão Oriental, existem dois adjetivos que ainda não foram usados para descrever Pelé. Seus muitos admiradores usaram todos os elogios; as ofensas eram usadas por seus marcadores (Desgraçado! De novo não! Filho da..!).
Pelé, o atleta do século, o maior jogador do século XX, tricampeão mundial, único jogador a marcar gols em quatro Copas, a esta altura sobrou muito pouco para falar dele. De seus dribles desconcertantes, seu equilíbrio perfeito na hora do corte, sua visão de jogo, sua capacidade de enxergar com o canto do olho a vinda de um zagueiro ou o deslocamento de um companheiro, a velocidade de corredor olímpico, suas esplêndidas cabeçadas, de tudo que o fazia um jogador completo em todos os fundamentos. Depois de assistir ao DVD "Pelé Eterno" o cronista Arnaldo Bloch não resistiu: "Pelé tinha superpoderes". Tantas eram as opções de que dispunha para passar pelo adversário que chegava a se dar ao luxo de tabelar com seu marcador: jogava a bola nas pernas dele e, antes que houvesse tempo para qualquer reação, Pelé já a tinha pego na frente. E às vezes fazia isso por baixo das pernas do pobre defensor.
Ao lado de craques como Zito e Coutinho, Pelé foi campeão de todos os títulos possíveis com o Santos, incluindo oito vezes campeão paulista em dez anos. Faltam superlativos para descrever suas glórias. Nascido em Três Corações em 1940, Pelé foi descoberto em Bauru por Waldemar de Brito, atacante da Copa de 1934. O que mais impressionou Waldemar naquele garoto que sabia tudo de bola era a maturidade. Mesmo capaz de dar drible em cima de drible, um lençol atrás do outro ou tocar a bola de de calcanhar, só o fazia se achasse que era a maneira mais curta de chegar ao gol. Aos 13 anos o futebol de Édson Arantes do Nascimento já tinha a simplicidade suprema que os jogadores só costumam atingir perto dos 30. Observando os jogos do Santos e da seleção não se vê nenhuma firula desnecessária do camisa 10. Ele não pára a bola e fica chamando o adversário ou atrasa uma jogada com um toque de letra como Garrincha fazia. O garoto aprendeu em casa com seu pai, Dondinho, jogador de talento que nunca foi adiante por problemas no joelho. Pelé sempre disse que seu pai na verdade jogava mais do que ele.
E ele lhe ensinou não só no futebol como na vida. Pelé nunca fumou ou bebeu devido ao que Dondinho dizia: "se quiser ser jogador de futebol mesmo, não fume e nem beba". De origem humilde, Pelé sempre foi grato ao esporte e aos fãs por tudo que lhe proporcionaram. Simpático e acessível, não andava cercado de seguranças e nem evitava os admiradores. No auge da fama, concentrado num hotel, um senhor de meia-idade perguntou ao atleta se ele poderia tirar uma foto ao lado da sua família. Pelé posou para a foto, mas antes que o contente grupo saísse do lugar, pediu para tirar outra, justificando: "acho que essa não vai ficar boa".
Depois dos três títulos mundiais com o Brasil, dois sul-americanos e mundiais com o Santos e dezenas de títulos regionais e torneios internacionais, Pelé despediu-se da seleção em 1972 (enquanto o Maracanã inteiro gritava "fica! Fica!") e da carreira em 1974. Em 1975, entretanto, os americanos tentavam mais uma vez interessar o país no futebol e o contrataram para jogar no Cosmos, onde ele permaneceu até 1977, conquistando mais um campeonato nacional e marcando mais 65 gols. O esporte começou a ser praticado por garotos e hoje os Estados Unidos têm uma equipe respeitável.
São incontáveis as histórias em torno de Pelé. Burgnich, seu marcador na final da Copa de 1970, conta que "na véspera fiquei tentando me convencer que ele era feito de carne e osso, que nem todos nós. Eu estava errado". O lendário jornal Sunday Times estampou no dia seguinte a manchete: "Como se soletra Pelé? D-E-U-S". Em 1969 duas facções em guerra civil no Zaire fizeram um acordo de cessar-fogo para vê-lo jogar.
Já os brasileiros tiveram a sorte de poder vê-lo em ação durante quase vinte anos, com a camisa do Santos e da seleção, levando-a ao primeiro tricampeonato mundial da história, que lhe garantiu a posse da taça Jules Rimet. Até hoje Pelé é conhecido e respeitado no mundo todo. Foi por namorá-lo no começo dos anos 80 que Xuxa começou a tornar-se uma estrela. Foi Pelé quem Maradona chamou para ser entrevistado na estréia de seu programa de tevê. Em esplêndida forma para seus mais de 60 anos, sua imagem ainda é disputada a tapa e vultosas quantias pelo mercado publicitário.
Pelé foi Ministro dos Esportes entre 1995 e 1998. Durante sua gestão foi extinta a lei do passe, que restringia a transferência de jogadores.
DIDI
Valdir Pereira do Nascimento nasceu em 1929 e em 1946 veio tentar a sorte no Madureira, que à época dispunha dos "Três Patetas", Isaías, Lelé e Jair, que fariam a fama do Vasco da Gama. Mas o destino de Didi foi o Fluminense. Jogando pela Seleção de Novos no Rio em 1950, Didi marcou o primeiro gol no Maracanã e em 1952 estava na seleção brasileira que foi campeã pan-americana, goleando o Uruguai na final e recuperando parte da auto-estima perdida com a derrota na Copa.
Didi jogou a Copa de 1954 sem brilho, como quase todo o time. Em 1957 disputava posição no time com o novato Moacir, do Flamengo, mas nas eliminatórias, contra o Peru, Didi marcaria um gol de falta de "folha-seca" e garantiria a vaga do Brasil. E a dele, apesar de seu rival sempre se destacar nos treinos da seleção. "Treino é treino, jogo é jogo", explicou o vencedor da disputa, com uma frase que entraria para a história.
Se a seleção brasileira pôde encantar o mundo em 1958 com o 4-2-4 foi porque dispunha de Didi para armar o jogo. Com ele comandando o time, não eram precisos mais do que dois atletas para o meio-campo. Didi era capaz de dribles precisos e exatos e bastava esticar o longo pescoço para num relance encontrar um companheiro. Seus lançamentos longos faziam uma curva para fugir dos beques e outra para caírem mansos nos pés dos atacantes. Os passes para Garrincha e Vavá no jogo contra a URSS e a jogada para Pelé marcar contra o País de Gales mostram seu talento com a bola. Já sua liderança fica patente quando acalma o time caminhando lentamente com a bola para o meio-campo, depois que a Suécia saiu na frente na final.
A "folha-seca" com que ele classificou o Brasil para a Copa de 1958 foi uma criação sua. Um chute que saía forte e subitamente descaía, como uma folha morta no outono, daí o nome. Para conseguir esse efeito e seus perfeitos lançamentos de trivela, Didi calçava as chuteiras usadas de Zagallo no pé direito. Zagallo usava um número menor do que o de Didi e era canhoto; assim, o calçado estava macio sem estar gasto e ajustava-se como uma luva no pé do meio-campista. Ele podia sentir a bola quase como se estivesse descalço e fazê-la descrever curvas apenas milímetros acima do gramado.
Apesar da comoção com Pelé e Garrincha, os europeus escolheram Didi como o melhor daquela seleção e o apelidaram "Mr. Football". O Real Madrid, mais poderoso time do planeta na época, contratou-o para jogar ao lado de Di Stefano e Puskas, mas uma briga com o primeiro pelo lugar de principal estrela da companhia acabou levando o brasileiro para a reserva. O Botafogo foi buscá-lo de volta para mais anos de glória ao lado do grande time que contava com Zagallo, Garrincha, Amarildo e Nilton Santos.
Em 1962 ele novamente foi o maestro da seleção. Para quem dizia que o time estava muito velho para ganhar uma Copa, ele respondia com outra frase famosa, "quem tem que correr é a bola e não o jogador". Como treinador, carreira que iniciou em 1964, aplicou sempre esse princípio. Comandou a grande seleção peruana de 1970 e a "Máquina" do Fluminense de 1975.
Didi faleceu em 2001, realizado emocional e financeiramente. Sua única mágoa foi nunca ter dirigido a seleção brasileira. Confidencialmente, ele dizia que foi pelo mesmo motivo pelo qual Gentil Cardoso nunca treinou a canarinho: o Brasil ainda não estava pronto para ter um técnico negro.
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