fevereiro 24, 2008

Crônica para a revista Movimento sobre ônibus

Por falar em ônibus e crônica, O RAPTO DO 464 saiu na Zé Pereira número 4! Já nas bancas!


Ônibus hoje nem capô tem, quanto mais o aviso de que é proibido botar os pés em cima do capô. Ou capot. Ou kapô. Ou kaput. Ou até mesmo capeaux, sendo esta última grafia a mais misteriosa, ocultando uma francofilia tão arraigada que preferia a licença poética à correção na língua pátria. É um clichê da nostalgia, é verdade, mas eram tempos mais românticos, com as letras toscas, porém muitas vezes caprichosamente rebuscadas, sugerindo um sujeito dedicado à sua tarefa, mesmo que uma infância difícil lhe tivesse privado de educação suficiente para escrever "capô" corretamente, ao contrário dos cartazes metálicos impressos por computadores com corretores ortográficos usando todos as mesmas fontes do Windows e, embora a maioria dos computadores que eu conheço tenham uma vida difícil maltratados abertamente pelos seus donos, não é a mesma coisa.

Mas se começo tão nostálgico é porque pretendo falar de um assunto indissoluvelmente ligado a lembranças, descobertas e ritos de passagem: a época em que se começa a andar de ônibus sozinho. Porque é quando o seu universo e seus horizontes se ampliam, deixando de englobar apenas aqueles parcos quarteirões que contêm as casas de seus amigos, o seu jornaleiro, o seu supermercado, a sua papelaria e passa a parecer vasto e selvagem, com tanto a explorar e descobrir. Curiosamente é um período muito pouco relembrado e celebrado por poetas e cantadores, em detrimento da iniciação sexual, que normalmente vem um pouquinho mais tarde e, de certa forma, é muito menos libertadora, já que subitamente seus interesses na vida se limitam, com o sexo oposto - ou o mesmo sexo, ou ambos, depende da sua orientação - no topo da lista e todos aqueles videogames, álbuns de figurinhas, miniaturas de carros e aviões e afins desaparecendo de suas prioridades.

E olha que era um aprendizado complexo, desde a época em que se rastejava por baixo da roleta porque "menores de sete anos têm direito a passagem gratuita" até o dia em que se entrava sozinho e orgulhoso, subindo sem vacilar os degraus maiores do que sua perna - e que, ao contrário do que se pode pensar, não parecerão melhor dimensionados quando você crescer - e esticar as moedas contadas para o trocador. Felizmente eu peguei uma época em que já praticamente haviam sido abolidas as fichas de ônibus, com seu código de cores indicando o lugar onde você havia tomado o ônibus e o lugar onde você desceria do ônibus, com um preço proporcional ao percurso percorrido. Como os trocadores conseguiam despachar os passageiros rapidamente sem ter um laptop ou ao menos uma calculadora de camelô só aumenta cada vez mais a admiração que tenho pelos antigos. Talvez alguns deles ainda não tivessem tido sua iniciação sexual e sua lista de interesses ainda abarcasse o cálculo algébrico avançado, afinal, pelo que lemos na época nas histórias de Nélson Rodrigues, ou se era tarado ou se era virgem e alguns cobradores podiam ter uma aparência bizarra, mas todos inspiravam confiança.
Do aprendizado fazia parte também saber que você deveria conversar com o motorista somente sobre o indispensável. A redação algo prolixa deste aviso criou em minha geração uma dúvida terrível: o que era aquele raio daquele indispensável que você tinha que conversar sobre ele com o condutor? E se você não soubesse do que se tratava aquele assunto, o que aconteceria? Você seria posto para fora do ônibus? E se você estivesse em pé, ali perto do capô, caput, capeaux, e o motorista começasse a conversar sobre o indispensável com você, "e aí, viu o indispensável ontem no programa do Flávio Cavalcanti?", o que fazer? Sorrir, dizer que não, que estava assistindo a "Só o Amor Constrói" ou ao "Fantástico"? Perguntei uma vez ao meu pai e ele me explicou "por exemplo, se tiver um bêbado criando problema no ônibus, você vai lá e fala com o motorista". Durante anos achei que indispensável fosse um criador de problemas. Quando eu brincava de bangue-bangue, o xerife chegava para o bandido e dizia "estou vendo que você é indipensável". É claro que aprendi o correto significado da frase. Senão não poderia pegar o ônibus sozinho para ir ao cinema em outro bairro. Ah, a liberdade. Sem ela, como olhar com ar superior para os colegas de escola que tinham que esperar os pais chegarem ou embarcavam no ônibus do colégio que dava voltas intermináveis? E como disfarçar a sensação de maturidade ao sair sozinho com o dinheiro para ver aquele filme que tinha acabado de estrear no cinema e o lanche no recentemente inaugurado McDonald´s em outro bairro, enquanto os outros garotos tinham que esperar até o fim de semana, quando os pais os levariam, se tivessem tempo, é claro.
E andar de ônibus tinha também suas sutilezas, que você só aprendia com a prática, assim como o sexo também só se desvela com o tempo. Usando sempre a mesma linha, aos poucos começava a reconhecer rostos entre os passageiros sentados e guardar onde eles iriam saltar, assim você podia ficar em pé perto do banco dos que iam sair primeiro e sentar mais rápido. Mais tempo ensinava você a perceber pela cara do passageiro se ele iria até o fim do percurso ou ficaria em algum ponto próximo. Não me pergunte o porquê, mas pelo menos na minha época, mulheres com muitas sacolas sempre iam até o fim da linha.

E, por falar em mulheres com sacolas, você sabia que sua maturidade em andar de ônibus chegara quando começavam suas preocupações com a filosofia do ato: por exemplo, o que é a tarifa? É o direito de usar a condução ou o direito de ocupar um espaço no ônibus? Sim, isso é importante. Há tempos, pegando certa vez no conserto uma tevê Philco Amazonas, voltei com ela de ônibus, sentado e trazendo-a ao meu lado, o que fez uma mulher discutir comigo que eu não podia ocupar dois lugares pagando só uma passagem. Acabei pagando outra passagem também para a televisão, o que a deixou sem argumentos e furiosa, duas coisas que normalmente andam juntas, mas a pergunta me volta à mente sempre que vejo pessoas carregadas de sacolas ou mesmo obesos mórbidos ocupando bancos em ônibus. Estes últimos, apesar de seu imenso volume corporal, têm direito a deixar você espremido na borda do banco ou devem pagar também duplamente? De outra vez, presenciei - juro que é verdade - uma senhora que começou a receber santo no ônibus. Um sujeito meio idoso e implicante falou ao motorista que ela era indispensável e queria que ela fosse expulsa do coletivo. Quanto o motorista retrucou que não havia razão para tanto, ele hesitou um pouco, pensou e mandou essa: "mas o santo não pagou passagem".

Eram outros tempos, eram os tempos em que você começava a andar sozinho de ônibus, tinha sua iniciação sexual e começava a fumar. Tinha avisos no ônibus alertando que era proibido fumar, mas até o aviso fumava naquela época. Era como o capô, caput, capeaux. Com a prática, você descobria que, por ser moleque, podia sentar na beirinha dele. Hoje em dia não tem mais nem o capô escrito errado e ninguém fuma em ônibus. Mas os ônibus continuam rodando. Eu também não fumo mais, mas também continuo rodando. Aprendi andando sozinho de ônibus. Sozinho, não. Eu e mais 36 sentados e 44 em pé. E o trocador e o motorista, mas este não era boa companhia. Só sabia conversar sobre o indispensável.

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