Dançando muito a quantidade de álcool não fazia muito efeito. É um velho truque índio, que a maioria desconhece porque homens que bebem muito não costumam gostar de dançar. A Cláudia tentava me explicar que o que estavam tocando era nau catrineta, que o Zeca Baleiro tinha popularizado no país todo, mas eu quase não conseguia prestar atenção, era a primeira vez desde que ela tinha ido me buscar no aeroporto que saíamos sós. Sim, algumas amigas tinham vindo com ela, além da Inês, a irmã, mas não o namorado, e bastava isso, bastava ele não estar ali ao lado dela que o resto do mundo poderia estar ao nosso redor e ainda assim eu estaria sozinho com ela, a sobrinha do jovem, talentoso e falecido artista de mamulengos, a pesquisadora, a moça de 23 anos que me mostrara as fotos de seu ex-namorada e grande paixão da vida, seu distante e brilhante primo médico quarentão, ambos fantasiados prontos para sair para o carnaval, ela de dominatrix, ele de camisa caindo pregueada sobre a imensa barriga, calça indiferente e apenas uma máscara, ele com um ar perdido e ela de lado, seu rosto olhando agressivamente e dominador para a câmera, e a câmera não mente jamais, entrega tudo, é objetiva, fria e imparcial, não racionaliza, não tenta se auto-iludir: aquelas mulheres com personalidades tão esplendorosas que as fazem atraentes e desejáveis são reduzidas à sua mediana beleza; aquelas namoradas que julgamos erradamente nos amar aparecem com seus olhos vazios e inexpressivos; aquele coroa tão jovial e cheio de energia aparece em toda a glória de sua decadência de telômeros curtos e células não mais se replicando.
Assim como aparece o espírito abusado e apaixonante de Cláudia, morena de pele de café como sempre sonhei, cantora e microbióloga, tantos nomes em latim e conhecimentos arcanos na mente e tão pouca roupa sobre o corpo, a barriga exposta pela blusa curta mostrando a curva da cintura feita para encaixar no braço masculino, perfeita para encaixar no braço masculino, e a nau catrineta, a nau catrineta que se foda, que se foda a Cláudia, que eu foda a Cláudia, é o que penso, é o que me passa pela cabeça, a cientista gostosa, a versão feminina para os heróis dos filmes americanos de ficção científica dos anos 50, não tenho mais desculpa, não tenho mais nenhuma razão para adiar, não tenho mais como postergar a tentativa de um beijo, a tentativa de provar a saliva dela, mesmo que ela me afaste, mesmo que ela diga que é um absurdo, ela não vai dizer, é claro que não o fará, eu estou louco de pensar uma coisa dessas, mas e se ela o fizer, não terá sido a primeira vez, preciso pensar, preciso jogar uma água no rosto, só para ser um pouco mais eu mesmo, para ter um pouco mais de certeza.
dezembro 27, 2008
dezembro 22, 2008
60.000 Acessos
Menos de dois meses atrás deu 50.000 acessos desde 26 de fevereiro. Já são mais de 60.000 em menos de dez meses. Um brinde.
Sei que estou atrasado com o Blogue Sem Lei e tenho 5.248 fotos para postar, fora o ramerrame de sempre, mas festas de Natal, compras, passeios (começou o recesso de fim de ano) e noitadas regadas a Nintendo Wii (com um bando de sujeitos - e até sujeitas - em seus forties, não em seus fourteens) foram mais fortes do que eu. Além do mais, quem faz 500 postagens em um ano não tem que pedir desculpas para os leitores. Mas eu peço, é claro, só perco meu tempo com esse troço aqui pra eles.
Um abraço e grandes festas,
Luiz Henriques Neto
Sei que estou atrasado com o Blogue Sem Lei e tenho 5.248 fotos para postar, fora o ramerrame de sempre, mas festas de Natal, compras, passeios (começou o recesso de fim de ano) e noitadas regadas a Nintendo Wii (com um bando de sujeitos - e até sujeitas - em seus forties, não em seus fourteens) foram mais fortes do que eu. Além do mais, quem faz 500 postagens em um ano não tem que pedir desculpas para os leitores. Mas eu peço, é claro, só perco meu tempo com esse troço aqui pra eles.
Um abraço e grandes festas,
Luiz Henriques Neto
dezembro 18, 2008
Bernard Madoff, o Vigarista das Pirâmides Financeiras
Meu pai me ensinou que se enriquece trabalhando duro e a longo prazo. Mas isso era de outra época. Eu não aprendi muito o lance de "trabalhar duro", mas aprendi que dinheiro se economiza e se investe com prudência.
Um vigarista como Bernard Madoff, que sumiu com talvez 50 bilhões de dólares de clientes só existe num mundo em que se tem que enriquecer rápido e sem essa história de trabalho. E com uma facilidade terrível para atrair ricos, graças à sua idéia de classe. A noção que se popularizou nos últimos 20 anos de que milionários são sujeitos especiais se espraiou de tal forma pela concepção de mundo deles mesmos que passou a ser muito fácil acreditar num investimento garantido capaz de render mais do que outros fundos, independente de crises ou solavancos econômicos. Não só encapsula o conceito de que o dinheiro de verdade está acima dessas coisas como, principalmente, reflete uma visão de mundo em que existem informações privilegiadas disponíveis apenas para certos indivíduos acima da massa em geral.
A visão mais rasteira disso é aquela do Homer Simpson mesmo, sempre tentando enriquecer com esquemas malucos, porque trabalhar para ficar rico é coisa de perdedor.
Um vigarista como Bernard Madoff, que sumiu com talvez 50 bilhões de dólares de clientes só existe num mundo em que se tem que enriquecer rápido e sem essa história de trabalho. E com uma facilidade terrível para atrair ricos, graças à sua idéia de classe. A noção que se popularizou nos últimos 20 anos de que milionários são sujeitos especiais se espraiou de tal forma pela concepção de mundo deles mesmos que passou a ser muito fácil acreditar num investimento garantido capaz de render mais do que outros fundos, independente de crises ou solavancos econômicos. Não só encapsula o conceito de que o dinheiro de verdade está acima dessas coisas como, principalmente, reflete uma visão de mundo em que existem informações privilegiadas disponíveis apenas para certos indivíduos acima da massa em geral.
A visão mais rasteira disso é aquela do Homer Simpson mesmo, sempre tentando enriquecer com esquemas malucos, porque trabalhar para ficar rico é coisa de perdedor.
dezembro 17, 2008
Desculpa para Tirar a Roupa em Público
Em Paris, os modelos de nu para aulas de Belas-Artes, desenho, pintura e afins entraram em greve. A foto aí é da manifestação por melhores salários. Confira em http://www.repubblica.it/2006/05/gallerie/esteri/parigi-comune-modelli/1.html (em italiano)
dezembro 14, 2008
O Futuro Chegou em Três Eixos
Outro dia postei aqui a frase de Joseph Conrad, "vivemos como sonhamos - sozinhos". Pois, se o que está em http://news.yahoo.com/s/afp/20081211/sc_afp/sciencejapanbrainoffbeat_081211052641 não for uma pegadinha de Natal, nipojapas chefiados por um tal Iuquiasu Camitani conseguiram pela primeira vez captar imagens diretamente do cérebro de alguém. Isso deixa o mundo bem mais perto do futuro de Strange Days (Estranhos Prazeres) e começa a abrir caminho para se fazer o download de toda a memória de alguém para um computador, uma velha idéia da ficção científica.
Seria essa a concretização da idéia de imortalidade humana? Mas o que aconteceria com a personalidade sem um corpo? Sem vontade de viver, sem desejo, sem emoções? A consciência permaneceria ou, sem objetivos além de jogos puramente intelectuais, dissolver-se-ia no universo e descobriria, como Buda, que é o desejo, motivado pelo corpo, que é o que gera a individualidade, que nos separa da percepção de completa integração à totalidade?
E será que arquivar as memórias de uma pessoa iria reconstituir sua consciência? Ou apenas criaria uma outra, que rapidamente se esgotaria sem um corpo para motivar seus desejos, inclusive o de viver?
E, outra coisa muito importante: quanto valeria a mente criativa de alguém, capaz de imaginar um filme inteiro sem o dispendioso processo da filmagem?
Esse pode ser o mais revolucionário avanço da humanidade desde que James Watt aperfeiçoou o motor a vapor e mecanizou o mundo, encurtando as distâncias e criando a produção em massa.
Seria essa a concretização da idéia de imortalidade humana? Mas o que aconteceria com a personalidade sem um corpo? Sem vontade de viver, sem desejo, sem emoções? A consciência permaneceria ou, sem objetivos além de jogos puramente intelectuais, dissolver-se-ia no universo e descobriria, como Buda, que é o desejo, motivado pelo corpo, que é o que gera a individualidade, que nos separa da percepção de completa integração à totalidade?
E será que arquivar as memórias de uma pessoa iria reconstituir sua consciência? Ou apenas criaria uma outra, que rapidamente se esgotaria sem um corpo para motivar seus desejos, inclusive o de viver?
E, outra coisa muito importante: quanto valeria a mente criativa de alguém, capaz de imaginar um filme inteiro sem o dispendioso processo da filmagem?
Esse pode ser o mais revolucionário avanço da humanidade desde que James Watt aperfeiçoou o motor a vapor e mecanizou o mundo, encurtando as distâncias e criando a produção em massa.
Blogue Sem Lei X
Por Alguns Dólares a Mais
de Sérgio Leone, 1965
O público pediu que o blogue sem lei da semana fosse "O último pôr-do-sol" e esta era a intenção do blogueiro, mas no meio do caminho havia um Wii recém-comprado e a postagem acabou mesmo sendo uma que já estava adiantada. Fica a promessa de, sobrando um tempo longe do sensor de movimento do videogame, rolar uma sessão do longa de Robert Aldrich, um dos mais interessantes cineastas não-superstar americanos.
Ano passado, comentando uma recentemente lançada biografia de Sergio Leone, um crítico comentou que ele foi um diretor inovador e interessante, mas que, desde que deixou de filmar faroestes e principalmente depois que precocemente abandonou este vale de cólera e lágrimas, sua influência desapareceu das telas, ninguém mais filmando westerns spaghetti daquele jeito idiossincrático: hipercloses nos atores, longas passagens sem diálogo, a música comentando a ação ao invés de reforçar a emoção dela, gestos e movimentos lentos, looooongos planos com poucos, estudados e vagarosos movimentos. E não, não estamos falando de "Feliz Natal", de Selton Mello.
Pois é, bangue-bangues italianizados podem ter caído em desuso, mas mais do que inventar um subgênero B, Sergio Leone criou um estilo que é um dos mais influentes do cinema contemporâneo. De Selton Mello a Wong Kar-Wai, as elipses visuais, os planos-detalhe, o fetichismo da câmera pelo rosto dos personagens e muitas outras das manias do gordo italiano colecionador de antiguidades se espalharam pelas telas do mundo todo, apropriadas em sua maioria por "autores de filmes", ao contrário dos cineastas B que o imitavam em seu auge.
É que estes trocaram a árida lentidão pela velocidade dos videoclipes. Mas mantiveram os heróis cínicos e pouco afeitos ao auto-sacrifício de Leone, que na verdade roubou o personagem do "Yojimbo", do Kurosawa, fita que ele copiou quase cena por cena ao fazer "Por um punhado de dólares". O samurai de Mifune, que seria desenvolvido em "Sanjuro" é um sujeito de meia-idade, extremamente especializado na arte de matar (no que foi provavelmente ajudado pelo seu sadismo), mas que devido aos tempos turbulentos da restauração Meiji, ficou sem empregador, sem um tostão e sem futuro. No fundo é um sujeito bem-intencionado e sociável cujas perversões o levam a derramar mais sangue do que poderia quando tenta ajudar e a não ter família.
O pistoleiro de Clint Eastwood não está interessado em ajudar. Não tem empregador, mas graças à americaníssima instituição do caçador de recompensas, tem mais dinheiro do que jamais precisará. Em "Por alguns dólares a mais" ele comenta que a grana que receberia por capturar Indio lhe permitiria comprar um rancho e se estabelecer. Não convence absolutamente ninguém. Não há como se imaginar aquele sujeito arando a terra, criando gado ou, se o dinheiro que juntou for tanto assim, sentado numa daquelas casas-grande sulistas, lendo um livro e fumando um cachimbo.
Sem contar que ele é claramente anti-social. Dificilmente fala alguma coisa e quando o faz é em monossílabos ou sentenças com pouquíssimas palavras. Diz a lenda que tal acontecia porque Eastwood não falava italiano e Leone não falava inglês; com liberdade para reescrever suas linhas, mal-escritas como poderia se esperar de uma produção B italiana, o ianque simplesmente as apagava às toneladas. A história é ótima, mas soa como exagero, já que ninguém em nenhum filme de Leone é chegado a verborragia, o que combina à perfeição com a vagareza ritualizada de seus filmes.
Essa ritualização é um dos aspectos fascinantes dos bangue-bangues de Leone. Não por coincidência o outro gênio do faroeste que transformava suas histórias em confrontos rituais era John Ford, como já dito no Blogue sem Lei de "Paixão dos fortes". Na fita do ianque-irlandês, Wyatt Earp também se move num ritmo próprio e lento e os duelos são coreografados com gestos exagerados e românticos. Não por coincidência tanto Ford quanto Leone são dos raros católicos a se especializar no gênero. Ford prefere expressar seu misticismo através de sua fé cristã - a Clementine do já falado "Paixão dos fortes" é uma santa casta e idealizada e Earp é um santo levando a palavra da civilização aos gentios.
Sergio Leone não é irlandês, é da terra das intrigas papais e da máfia. Seus caubóis são silenciosos e mortais como os capangas de "O poderoso chefão" e vivem pelo seu código de honra, que inclui o domínio de seu instrumento, os enormes Colts Walker e Dragoon, que em Leone substituem os Peacemakers tradicionais do cinemão americano. Os primeiros são maiores, claramente fálicos, pesadões e datam de antes da invenção do cartucho metálico, exigindo carga pela boca de cada um dos seis tiros, o que claramente deve ter fascinado o lado antiquário do italiano.
É esse código quase samurai que leva Monco e o coronel Mortimer a se aliarem após mostrarem que são equivalentes em habilidade graças ao ritual do tiro no chapéu. Mortimer é a versão mais velha e experiente de Monco. Ambos são mortais, mas o coroa é mais estudado, como se vê pela sua coleção de armas e por seus planos mirabolantes.
O blogueiro nunca vira esta fita antes da era do DVD, por isso não sabe dizer o quanto ela se beneficia da tela grande e do formato widescreen original, mas pelo que viu de "Era uma vez no oeste", imagina que a diferença seja enorme. Este último longa era profundamente desconfortável, já que a tela ficava totalmente preenchida quase o tempo todo com o rosto dos personagens, o que levava o espectador a pensar que era a intenção do diretor, que já usava o techniscope para aumentar a sensação de ressecamento e sujeira. O techniscope era um formato com as mesmas proporções do cinemascope, mas em vez de utilizar uma lente especial, simplesmente filmava dividia cada quadro do negativo ao meio. A produção economizava metade do filme virgem, economizava ao usar câmeras comuns em vez de anamórficas e continuava a ter uma imagem de boa qualidade graças ao processamento da technicolor, a inventora do sistema. O aspecto granulado e as cores sujas, em vez de atrapalharem, adicionavam ao visual rústico que, em mais uma das duradouras influências de Leone, se tornou o padrão de "realismo" de fitas de ação de época - qualquer época que não a contemporânea, qualquer locação que não o mundo dos ricos.
O povo dos anos 60, já preparado para contracultura pela revista Mad, pelo movimento beat, pelo existencialismo e pela idéia "vamos-nos-divertir-dançando-bebendo-e-trepando-antes-que-o-apocalipse-atômico-nos-mate-a-todos" do rock and roll, adorou os taciturnos pistoleiros preocupados apenas com eles mesmos, incapazes de estavam de acreditar nos homens santos do faroeste americano que a esta época já estava começando a virar quase uma autoparódia, massacrado nas séries de baixo orçamento da tevê. Adoraram a mitologia mística católica de Leone que dava suporte a toda aquela violência gráfica e falta de fé na humanidade. Indio é um matador sem piedade e bandido da pior espécie. No entanto, dá ao capanga que o traiu a chance de um duelo realmente justo - nada de rifles apontados para ele ou coisas parecidas - cronometrado por um relógio musical. O coronel Mortimer tem um igual e ambos parecem partilhar flashbacks sobre uma mulher que teve o marido assassinado por Indio, que em seguida a estuprou.
Ao final da fita, após voltas e reviravoltas, num mundo em que só existem trapaceiros, corruptos e prostitutas, Mortimer e Indio se enfrentam numa estrutura similar a uma arena, com o relógio marcando o tempo para que um deles morra. E descobrimos que a mulher dos flashbacks era a irmã de Mortimer; tendo a chance de matar Indio, ela preferiu se matar a viver desonrada, sem o homem que amava e tornando-se uma assassina como seu agressor. Este gesto, um típico martírio de santas católicas, salvará a alma de Mortimer e trará a ruína de Indio, morbidamente obcecado com o episódio durante toda a história. Mortimer dispensa toda a recompensa, que é recolhida pelo Monco de Eastwood. É dinheiro suficiente para o tal rancho que ele mencionara, mas sem uma santa sacrificando-se para salvá-lo, seu futuro não parece apontar para uma aposentadoria, mas apenas para mais violência sem sentido, onde ele poderá exercer sua inigualável habilidade, sem nenhum crescimento espiritual ou alívio antes de encontrar alguém mais talentoso que encerre sua existência vazia.
de Sérgio Leone, 1965
O público pediu que o blogue sem lei da semana fosse "O último pôr-do-sol" e esta era a intenção do blogueiro, mas no meio do caminho havia um Wii recém-comprado e a postagem acabou mesmo sendo uma que já estava adiantada. Fica a promessa de, sobrando um tempo longe do sensor de movimento do videogame, rolar uma sessão do longa de Robert Aldrich, um dos mais interessantes cineastas não-superstar americanos.
Ano passado, comentando uma recentemente lançada biografia de Sergio Leone, um crítico comentou que ele foi um diretor inovador e interessante, mas que, desde que deixou de filmar faroestes e principalmente depois que precocemente abandonou este vale de cólera e lágrimas, sua influência desapareceu das telas, ninguém mais filmando westerns spaghetti daquele jeito idiossincrático: hipercloses nos atores, longas passagens sem diálogo, a música comentando a ação ao invés de reforçar a emoção dela, gestos e movimentos lentos, looooongos planos com poucos, estudados e vagarosos movimentos. E não, não estamos falando de "Feliz Natal", de Selton Mello.
Pois é, bangue-bangues italianizados podem ter caído em desuso, mas mais do que inventar um subgênero B, Sergio Leone criou um estilo que é um dos mais influentes do cinema contemporâneo. De Selton Mello a Wong Kar-Wai, as elipses visuais, os planos-detalhe, o fetichismo da câmera pelo rosto dos personagens e muitas outras das manias do gordo italiano colecionador de antiguidades se espalharam pelas telas do mundo todo, apropriadas em sua maioria por "autores de filmes", ao contrário dos cineastas B que o imitavam em seu auge.
É que estes trocaram a árida lentidão pela velocidade dos videoclipes. Mas mantiveram os heróis cínicos e pouco afeitos ao auto-sacrifício de Leone, que na verdade roubou o personagem do "Yojimbo", do Kurosawa, fita que ele copiou quase cena por cena ao fazer "Por um punhado de dólares". O samurai de Mifune, que seria desenvolvido em "Sanjuro" é um sujeito de meia-idade, extremamente especializado na arte de matar (no que foi provavelmente ajudado pelo seu sadismo), mas que devido aos tempos turbulentos da restauração Meiji, ficou sem empregador, sem um tostão e sem futuro. No fundo é um sujeito bem-intencionado e sociável cujas perversões o levam a derramar mais sangue do que poderia quando tenta ajudar e a não ter família.
O pistoleiro de Clint Eastwood não está interessado em ajudar. Não tem empregador, mas graças à americaníssima instituição do caçador de recompensas, tem mais dinheiro do que jamais precisará. Em "Por alguns dólares a mais" ele comenta que a grana que receberia por capturar Indio lhe permitiria comprar um rancho e se estabelecer. Não convence absolutamente ninguém. Não há como se imaginar aquele sujeito arando a terra, criando gado ou, se o dinheiro que juntou for tanto assim, sentado numa daquelas casas-grande sulistas, lendo um livro e fumando um cachimbo.
Sem contar que ele é claramente anti-social. Dificilmente fala alguma coisa e quando o faz é em monossílabos ou sentenças com pouquíssimas palavras. Diz a lenda que tal acontecia porque Eastwood não falava italiano e Leone não falava inglês; com liberdade para reescrever suas linhas, mal-escritas como poderia se esperar de uma produção B italiana, o ianque simplesmente as apagava às toneladas. A história é ótima, mas soa como exagero, já que ninguém em nenhum filme de Leone é chegado a verborragia, o que combina à perfeição com a vagareza ritualizada de seus filmes.
Essa ritualização é um dos aspectos fascinantes dos bangue-bangues de Leone. Não por coincidência o outro gênio do faroeste que transformava suas histórias em confrontos rituais era John Ford, como já dito no Blogue sem Lei de "Paixão dos fortes". Na fita do ianque-irlandês, Wyatt Earp também se move num ritmo próprio e lento e os duelos são coreografados com gestos exagerados e românticos. Não por coincidência tanto Ford quanto Leone são dos raros católicos a se especializar no gênero. Ford prefere expressar seu misticismo através de sua fé cristã - a Clementine do já falado "Paixão dos fortes" é uma santa casta e idealizada e Earp é um santo levando a palavra da civilização aos gentios.
Sergio Leone não é irlandês, é da terra das intrigas papais e da máfia. Seus caubóis são silenciosos e mortais como os capangas de "O poderoso chefão" e vivem pelo seu código de honra, que inclui o domínio de seu instrumento, os enormes Colts Walker e Dragoon, que em Leone substituem os Peacemakers tradicionais do cinemão americano. Os primeiros são maiores, claramente fálicos, pesadões e datam de antes da invenção do cartucho metálico, exigindo carga pela boca de cada um dos seis tiros, o que claramente deve ter fascinado o lado antiquário do italiano.
É esse código quase samurai que leva Monco e o coronel Mortimer a se aliarem após mostrarem que são equivalentes em habilidade graças ao ritual do tiro no chapéu. Mortimer é a versão mais velha e experiente de Monco. Ambos são mortais, mas o coroa é mais estudado, como se vê pela sua coleção de armas e por seus planos mirabolantes.
O blogueiro nunca vira esta fita antes da era do DVD, por isso não sabe dizer o quanto ela se beneficia da tela grande e do formato widescreen original, mas pelo que viu de "Era uma vez no oeste", imagina que a diferença seja enorme. Este último longa era profundamente desconfortável, já que a tela ficava totalmente preenchida quase o tempo todo com o rosto dos personagens, o que levava o espectador a pensar que era a intenção do diretor, que já usava o techniscope para aumentar a sensação de ressecamento e sujeira. O techniscope era um formato com as mesmas proporções do cinemascope, mas em vez de utilizar uma lente especial, simplesmente filmava dividia cada quadro do negativo ao meio. A produção economizava metade do filme virgem, economizava ao usar câmeras comuns em vez de anamórficas e continuava a ter uma imagem de boa qualidade graças ao processamento da technicolor, a inventora do sistema. O aspecto granulado e as cores sujas, em vez de atrapalharem, adicionavam ao visual rústico que, em mais uma das duradouras influências de Leone, se tornou o padrão de "realismo" de fitas de ação de época - qualquer época que não a contemporânea, qualquer locação que não o mundo dos ricos.
O povo dos anos 60, já preparado para contracultura pela revista Mad, pelo movimento beat, pelo existencialismo e pela idéia "vamos-nos-divertir-dançando-bebendo-e-trepando-antes-que-o-apocalipse-atômico-nos-mate-a-todos" do rock and roll, adorou os taciturnos pistoleiros preocupados apenas com eles mesmos, incapazes de estavam de acreditar nos homens santos do faroeste americano que a esta época já estava começando a virar quase uma autoparódia, massacrado nas séries de baixo orçamento da tevê. Adoraram a mitologia mística católica de Leone que dava suporte a toda aquela violência gráfica e falta de fé na humanidade. Indio é um matador sem piedade e bandido da pior espécie. No entanto, dá ao capanga que o traiu a chance de um duelo realmente justo - nada de rifles apontados para ele ou coisas parecidas - cronometrado por um relógio musical. O coronel Mortimer tem um igual e ambos parecem partilhar flashbacks sobre uma mulher que teve o marido assassinado por Indio, que em seguida a estuprou.
Ao final da fita, após voltas e reviravoltas, num mundo em que só existem trapaceiros, corruptos e prostitutas, Mortimer e Indio se enfrentam numa estrutura similar a uma arena, com o relógio marcando o tempo para que um deles morra. E descobrimos que a mulher dos flashbacks era a irmã de Mortimer; tendo a chance de matar Indio, ela preferiu se matar a viver desonrada, sem o homem que amava e tornando-se uma assassina como seu agressor. Este gesto, um típico martírio de santas católicas, salvará a alma de Mortimer e trará a ruína de Indio, morbidamente obcecado com o episódio durante toda a história. Mortimer dispensa toda a recompensa, que é recolhida pelo Monco de Eastwood. É dinheiro suficiente para o tal rancho que ele mencionara, mas sem uma santa sacrificando-se para salvá-lo, seu futuro não parece apontar para uma aposentadoria, mas apenas para mais violência sem sentido, onde ele poderá exercer sua inigualável habilidade, sem nenhum crescimento espiritual ou alívio antes de encontrar alguém mais talentoso que encerre sua existência vazia.
dezembro 13, 2008
dezembro 10, 2008
O Vasco na Segunda Divisão
É verdade, Eurico Miranda raspou o cofre no Vasco, mas na maioria dos clubes fazem isso. O pior dele não era a administração do clube (que era ruim), mas a administração da imagem. Daí a mídia ter feito tanta festa quando ele foi embora. Pouco promissor foi o fato de que a nova diretoria entrou graças a uma decisão da Justiça que correu mais do que o normal justamente quando entrou como governador um conhecido vascaíno inimigo do baiacu ex-deputado.
A atual diretoria está tentando assumir o Vasco faz tempo. Já foi garfada, roubada e já perdeu até mesmo honestamente. Um dos nomes dela é Olavo Monteiro de Carvalho, que foi vice-presidente de futebol em 1980, quando Calçada, ele e Eurico puseram pra fora Agathyrno Gomes e começaram um monte de contratações sem critério. O Olavo saiu em seis meses dizendo que não podia conviver com os caras e, pelo jeito, o trauma foi tão forte que ele ficou uns 20 anos sem se meter em futebol.
De uma vez eles conseguiram o apoio importantíssimo de Artur Sendas e não conseguiram se eleger, graças a um monte de manipulações do Eurico. Faltava um nome galvanizador, uma cara melhor do que o Fernandão do vôlei (da geração de prata - um vice na presidência?). E acharam no Roberto.
Quem tem menos de trinta anos não entende que Roberto ERA o Vasco. Nunca beijou o escudo, que eu me lembre, e todos sabiam que ele era torcedor do Botafogo (o Júnior, do Fla, em compensação, era vascaíno na infância; boa parte dos "ódios de torcida" a atletas por algum vínculo com outra agremiação é manipulado - depois eu conto um caso do TRT - por dirigentes e gente que quer emplacar outro jogador no lugar dele ou coisa parecida), mas ele, a camisa 10 com a faixa em diagonal, gols e as esperanças de título estavam todos interligados indissoluvelmente. Sem o assédio de fora, a maioria dos times mantinha seus ídolos e seu futuro dependia de conseguir revelá-los. O Flamengo tinha Zico. O Fluminense teve Rivelino, depois Edinho; o Botafogo, Mendonça - daí sua decadência. Não interessava o pessoal em volta. Mesmo mantendo Júnior, Tita, Adílio, Andrade, Mozer, o Fla começou a perder campeonatos e otmar goleadas depois que o Galinho foi embora. E Roberto, mesmo assessorado por Catinha, Wilsinho, Zandonaide, Marquinhos, Paulinho, Dudu, sempre levava a gente até as finais.
O problema é que, pelo que conheci dele no meu ano e meio como jornalista esportivo, lá por volta de 85, 86, ele era um sujeito muito fechado. Introvertido, calado, desconfiado, sem um senso de humor expansivo ou o cacoete de dar abraços e tapinhas nas costas imprescindível pra quem vive no meio do futebol - quanto mais picareta, melhor. Sabe Deus como ele foi se meter em política - aliás, sei sim, os vascaínos da minha geração todos votam nele (eu, não, mas recebo mala direta dele em toda eleição e penduro na geladeira). Mas embora talvez ele tenha as qualidades para ser um bom executivo sério, ele certamente não tem para ser o carismático presidente de um clube de futebol às voltas com filhos-da-puta escrotos, vigaristas e picaretas por todos os lados. Sem contar os jogadores, na maioria sujeitos pobres, que já vieram com pouca educação em casa (nada de livros, nada de filmes franceses, nada de música clássica, nada de exercícios para estimular o lado direito do cérebro), ainda largaram a escola pra se dedicar à bola e se descobriram, mesmo quando muito inteligentes (cf. Romário), sem preparo para lidar com as súbitas e instáveis fama, fortuna e bocetas caça-dotes.
E aí voltamos ao problema de imagem do Eurico. Graças aos maus-tratos a que ele submeteu a mídia (e os clubes com administrações sérias, fora do Rio, é claro), a imprensa toda o odiava e qualquer um que entrasse para substituí-lo teria amplo apoio. Quando entra o grande ídolo dos anos 70 e 80, o idolatrado Roberto, então, nem se fala. O busílis é que ele serve mais como a frente visível de um bando de até agora completos e totais desastrados.
O povo entrou e mudou o departamento de futebol todo. Foi-se o competentíssimo Paulo Angioni. Foi-se o marco da ortopedia Lídio Toledo e voltou Clóvis Munhoz. Não sei se é lucro ou prejuízo a troca, mas lembro que antes de entrar o Lídio os vascaínos se contundiam e sumiam dois meses antes de começar a voltar, tempo que passou a ser abreviado para 15 dias (fora a lenda que acompanha a grife Lídio Toledo). Entraram sujeitos que nunca estiveram perto da administração de um clube de futebol. E ainda reclamando que não tinha dinheiro em caixa. Ora, TODO O MUNDO sabia que não tinha dinheiro em caixa. Essa turma tá há anos tentando derrubar o Eurico e não tinha um reles plano de emergência além de achar que "sem Eurico, os patrocinadores vão fazer fila na porta do Vasco"? (1)
E os desentendimentos com Morais, Wagner Diniz e agora o Madson, um dos últimos que jogava bola naquele time (meio jogador, é verdade, com profundos problemas para ganhar divididas)? E a contratação de Tita como técnico, um sujeito que só treinara time pequeno - e mal? E depois o Renato Gaúcho, o treinador brincalhão. E as contratações de Pinilla, Fernando e Odvan, cujo grande feito foi tirar Leandro Amaral durante um período importantíssimo (que, aliás, como no final dos anos 90 e início do século XXI, quando Clóvis Munhoz era o médico, teve sua volta anunciada em uma semana, depois em outra, depois em outra...)? E agora anuncia-se uma mobilização para manter Leandro Amaral, justamente quando todo o mundo já viu que ele está novamente em decadência e ninguém está interessado?
Subindo quatro times por ano, não é mais aquele sufoco que Fluminense, Grêmio, Botafogo e Palmeiras passaram pra voltar e o Vasco deve reascender à primeira (e sempre que o Vasco vai da segunda divisão pra primeira é campeão), mas até agora esse povo que substituiu o Eurico está vendo que não basta professar ética superior pra gerir um time de futebol. Depois de se ver o que foi feito com Simon por não ter inventado um pênalti nos descontos pro Flamengo não perder um ponto contra o Cruzeiro, um amigo meu tricolor perguntou: "imagina se um presidente do Fla entrasse, perdesse todos os jogadores que prestavam pra clubes DO BRASIL, fosse rebaixado e contratasse Tita como técnico, será que a imprensa estaria tão festeira quanto está pro Roberto?"
(1) Dizem que é certo que ano que vem a Eletrobrás patrocinará o Vasco. Embora como vascaíno eu ache fantástico essa grana entrando, é eticamente discutível aceitar como mecenas uma empresa estatal que está negociando contratos com o governador estadual, conhecido torcedor cruzmaltino. O que a imprensa diria se Eurico anunciasse um contrato desses?
A atual diretoria está tentando assumir o Vasco faz tempo. Já foi garfada, roubada e já perdeu até mesmo honestamente. Um dos nomes dela é Olavo Monteiro de Carvalho, que foi vice-presidente de futebol em 1980, quando Calçada, ele e Eurico puseram pra fora Agathyrno Gomes e começaram um monte de contratações sem critério. O Olavo saiu em seis meses dizendo que não podia conviver com os caras e, pelo jeito, o trauma foi tão forte que ele ficou uns 20 anos sem se meter em futebol.
De uma vez eles conseguiram o apoio importantíssimo de Artur Sendas e não conseguiram se eleger, graças a um monte de manipulações do Eurico. Faltava um nome galvanizador, uma cara melhor do que o Fernandão do vôlei (da geração de prata - um vice na presidência?). E acharam no Roberto.
Quem tem menos de trinta anos não entende que Roberto ERA o Vasco. Nunca beijou o escudo, que eu me lembre, e todos sabiam que ele era torcedor do Botafogo (o Júnior, do Fla, em compensação, era vascaíno na infância; boa parte dos "ódios de torcida" a atletas por algum vínculo com outra agremiação é manipulado - depois eu conto um caso do TRT - por dirigentes e gente que quer emplacar outro jogador no lugar dele ou coisa parecida), mas ele, a camisa 10 com a faixa em diagonal, gols e as esperanças de título estavam todos interligados indissoluvelmente. Sem o assédio de fora, a maioria dos times mantinha seus ídolos e seu futuro dependia de conseguir revelá-los. O Flamengo tinha Zico. O Fluminense teve Rivelino, depois Edinho; o Botafogo, Mendonça - daí sua decadência. Não interessava o pessoal em volta. Mesmo mantendo Júnior, Tita, Adílio, Andrade, Mozer, o Fla começou a perder campeonatos e otmar goleadas depois que o Galinho foi embora. E Roberto, mesmo assessorado por Catinha, Wilsinho, Zandonaide, Marquinhos, Paulinho, Dudu, sempre levava a gente até as finais.
O problema é que, pelo que conheci dele no meu ano e meio como jornalista esportivo, lá por volta de 85, 86, ele era um sujeito muito fechado. Introvertido, calado, desconfiado, sem um senso de humor expansivo ou o cacoete de dar abraços e tapinhas nas costas imprescindível pra quem vive no meio do futebol - quanto mais picareta, melhor. Sabe Deus como ele foi se meter em política - aliás, sei sim, os vascaínos da minha geração todos votam nele (eu, não, mas recebo mala direta dele em toda eleição e penduro na geladeira). Mas embora talvez ele tenha as qualidades para ser um bom executivo sério, ele certamente não tem para ser o carismático presidente de um clube de futebol às voltas com filhos-da-puta escrotos, vigaristas e picaretas por todos os lados. Sem contar os jogadores, na maioria sujeitos pobres, que já vieram com pouca educação em casa (nada de livros, nada de filmes franceses, nada de música clássica, nada de exercícios para estimular o lado direito do cérebro), ainda largaram a escola pra se dedicar à bola e se descobriram, mesmo quando muito inteligentes (cf. Romário), sem preparo para lidar com as súbitas e instáveis fama, fortuna e bocetas caça-dotes.
E aí voltamos ao problema de imagem do Eurico. Graças aos maus-tratos a que ele submeteu a mídia (e os clubes com administrações sérias, fora do Rio, é claro), a imprensa toda o odiava e qualquer um que entrasse para substituí-lo teria amplo apoio. Quando entra o grande ídolo dos anos 70 e 80, o idolatrado Roberto, então, nem se fala. O busílis é que ele serve mais como a frente visível de um bando de até agora completos e totais desastrados.
O povo entrou e mudou o departamento de futebol todo. Foi-se o competentíssimo Paulo Angioni. Foi-se o marco da ortopedia Lídio Toledo e voltou Clóvis Munhoz. Não sei se é lucro ou prejuízo a troca, mas lembro que antes de entrar o Lídio os vascaínos se contundiam e sumiam dois meses antes de começar a voltar, tempo que passou a ser abreviado para 15 dias (fora a lenda que acompanha a grife Lídio Toledo). Entraram sujeitos que nunca estiveram perto da administração de um clube de futebol. E ainda reclamando que não tinha dinheiro em caixa. Ora, TODO O MUNDO sabia que não tinha dinheiro em caixa. Essa turma tá há anos tentando derrubar o Eurico e não tinha um reles plano de emergência além de achar que "sem Eurico, os patrocinadores vão fazer fila na porta do Vasco"? (1)
E os desentendimentos com Morais, Wagner Diniz e agora o Madson, um dos últimos que jogava bola naquele time (meio jogador, é verdade, com profundos problemas para ganhar divididas)? E a contratação de Tita como técnico, um sujeito que só treinara time pequeno - e mal? E depois o Renato Gaúcho, o treinador brincalhão. E as contratações de Pinilla, Fernando e Odvan, cujo grande feito foi tirar Leandro Amaral durante um período importantíssimo (que, aliás, como no final dos anos 90 e início do século XXI, quando Clóvis Munhoz era o médico, teve sua volta anunciada em uma semana, depois em outra, depois em outra...)? E agora anuncia-se uma mobilização para manter Leandro Amaral, justamente quando todo o mundo já viu que ele está novamente em decadência e ninguém está interessado?
Subindo quatro times por ano, não é mais aquele sufoco que Fluminense, Grêmio, Botafogo e Palmeiras passaram pra voltar e o Vasco deve reascender à primeira (e sempre que o Vasco vai da segunda divisão pra primeira é campeão), mas até agora esse povo que substituiu o Eurico está vendo que não basta professar ética superior pra gerir um time de futebol. Depois de se ver o que foi feito com Simon por não ter inventado um pênalti nos descontos pro Flamengo não perder um ponto contra o Cruzeiro, um amigo meu tricolor perguntou: "imagina se um presidente do Fla entrasse, perdesse todos os jogadores que prestavam pra clubes DO BRASIL, fosse rebaixado e contratasse Tita como técnico, será que a imprensa estaria tão festeira quanto está pro Roberto?"
(1) Dizem que é certo que ano que vem a Eletrobrás patrocinará o Vasco. Embora como vascaíno eu ache fantástico essa grana entrando, é eticamente discutível aceitar como mecenas uma empresa estatal que está negociando contratos com o governador estadual, conhecido torcedor cruzmaltino. O que a imprensa diria se Eurico anunciasse um contrato desses?
dezembro 06, 2008
Blogue Sem Lei IX
Rio Bravo - Onde Começa o Inferno
de Howard Hawks, 1958
Depois de revolucionar o uso do som nos filmes com o barulhentíssimo "Scarface", em 1931, Howard Hawks olhou para alguns dos simbolismos e voltas de força da fita – planos-sequência iniciando numa cruz e terminando num assassinato, folhas de calendário voando com tiros de metralhadora, pinos de boliche dançando, moedas sendo jogadas para o alto o tempo todo – e disse que aquilo tudo só servia pro diretor se mostrar e distrair o espectador da história. E assim, apesar de todo seu talento para criar cenas para deixar estudantes de cinema babando com a inteligência do autor, Hawks passou o resto da (longa) carreira se dedicando a botar o enredo pra frente com o máximo de eficiência e simplicidade. E criou uma enorme quantidade de clássicos da era de ouro de Hollywood.
Mas em "Rio Bravo" ele trapaceia um pouquinho e resolve fazer uma volta de força logo no começo só pra se divertir, filmando os primeiros cinco minutos sem diálogos. Um bêbado pede esmola, o ator que nos anos 70 faria o Xerife Lobo do seriado joga uma moeda na escarradeira, o bêbado – Dean Martin – hesita e resolve pegá-la, John Wayne, segurando seu rifle, joga a escarradeira longe, o bêbado agride John Wayne, depois tenta pegar Joe, o futuro xerife Lobo, mas os capangas dele o impedem e o seguram para que Joe o espanque. Um popular tenta detê-lo, mas Joe se enfurece e atira nele, matando-o. Entediado, sai pela cidade, paquera meninas, começa a beber em outro bar, até que John Wayne, ainda meio trôpego e ensanguentado pela cacetada que levou de Dean Martin entra saloon adentro segurando a Winchester com uma mão só enquanto profere a primeira linha do longa: "Joe, you´re under arrest".
Depois de uma pequena confusão em que Dean Martin acaba ajudando Wayne a levar o desordeiro para a cadeia (onde fica sob a guarda do velho manco Walter Brennan), ficamos sabendo que o primeiro era o melhor gatilho da região e assistente do xerife Wayne até que se apaixonou por uma vadia que todo mundo avisou a ele que era uma vadia, mas não adiantou nada. Ele largou tudo por ela e voltou seis meses depois sem um tostão, mergulhou numa garrafa e não saiu mais. Sua busca por redenção será o fio condutor da trama.
Dizem os livros que "Rio Bravo" foi ideado como uma resposta a "Matar ou morrer", que Wayne achou antiamericano, coisa de comuna. Irritou-o sobremaneira o xerife interpretado por Gary Cooper achar que o pessoal da cidade tinha que protegê-lo, quando deveria ser o contrário. Por isso a cena em que Ward Bond quer angariar ajuda pra Wayne e este dispensa, dizendo que ter um bando de amadores preocupados com a família ao lado iria atrapalhar mais do que ajudar. Por isso que Wayne chamaria de "garoto esperto" a Colorado (Ricky Nelson), pistoleiro contratado de Bond e que acha mais sensato ficar fora do assunto. Por isso, enfim, que Wayne teria contatado Hawks pra fazer a fita. Ele só não contava que Hawks iria subverter a concepção original até encaixá-la em seus temas recorrentes. E iria gostar tanto que refilmaria a história mais duas vezese, em "El Dorado" e "Rio Lobo" (1).
No mundo de Hawks, todos têm seu papel definido pelos seus talentos e usar suas aptidões pelo bem do grupo é o grande interesse. Mesmo os personagens que parecem o alívio cômico, como o Sueco em "Paraíso infernal", ou Walter Brennan aqui, são profissionais imprescindíveis - o Sueco é quem banca a operação dos aviões e Brennan é a fortaleza em torno de Joe, e é ele quem salva o dia em duas ocasiões, mesmo manco, velho e desdentado. Neste oeste selvagem, o homem que é homem não é aquele que tem mais perícia com o revólver - embora isso ajude - mas aquele que se atém ao código de conduta profissional, que põe o grupo acima de tudo. Essa idéia de que há lugar para todos na turma e essa falta de mesquinhos interesses pessoais é o que torna fantasias como"Jornada nas estrelas" tão atraentes para nerds e desajustados
E é também o encanto por trás da idéia fascista - no romance "Tropas estelares", a Força Federal (e, por conseguinte, o direito de voto), está aberta a todos - se você for cego, surdo, mudo e sem pernas, eles o poriam para contar as cerdas de uma taturana com o tato. Note que cerdas de taturanas queimam - no fascismo só o guerreiro tem valor. Nos filmes de Hawks basta desempenhar bem seu papel, mesmo que ele seja não oferecer ajuda ao xerife.
Dean Martin caiu em desgraça com o grupo ao pôr seus interesses sexuais acima do bem comunal. Enquanto rola a confusão na cidade com o riquíssimo irmão esperto de Joe oferecendo uma recompensa pela cabeça de Wayne, uma gostosíssima Angie Dickinson, quinze anos antes de Police Woman e mais de vinte anos antes de fantasiar ser estuprada no chuveiro em "Dublê de corpo", salta da diligência com sua descrição num cartaz de "procurado" e logo está cheia de amor pra dar praquele duque de um metro e noventa e comprida e potente arma sempre erguida e à mão.
Na verdade, era o ex-marido dela quem era o trapaceiro procurado pela justiça. Como a mulher prototípica de Hawks, ela é gostosa, atirada, sensual, sexual, deu adoidado a (jovem) vida toda e no final termina com o mocinho, ao contrário da tendência de Hollywood na época. Compare, por exemplo, com "Scaramouche", onde a atriz gostosa que é apaixonada pelo personagem-título abre mão dele prele ficar com a mocinha porque ela tem algo que ela nunca poderia lhe oferecer: um cabaço. Angie Dickinson aqui, Lauren Baccall em "Uma aventura na Martinica" e Jean Arthur em "Paraíso infernal" são claramente garotas de programa, mas isso não as impede de serem moças interessantíssimas - muito pelo contrário. Para conquistarem o herói, elas não têm que provar que na verdade não têm vida sexual passada ativa, variada e descompromissada (como o patético final de "Gilda"), mas apenas que estão preparadas para pôr os interesses do grupo acima dos seus e não tentar afastar um homem daquilo que ele nasceu para fazer.
Para reforçar essa sensação comunal, as fitas de Hawks sempre têm uma canção envolvendo todo o grupo - aqui aproveitando que há dois cantores, Dean Martin e Ricky Nelson, e um Walter Brennan que toca gaita. Hawks também abusa de botar seus atores em posições relaxadas, Angie Dickinson displicentemente apoiada no balcão, Wayne com os cotovelos apoiados em uma prateleira e uma das pernas dobrada e encostada num anteparo em frente, bem como os faz se movimentarem com gestos largos, informais e desatentos ao andar, abrir portas e pegar coisas em armários. Essa mesma informalidade é outro dos motivos da popularidade de "Jornada nas estrelas": a famosa maneira de abrir o comunicador com um solavanco, os botões para levantar as portas sendo batidos com a palma da mão enquanto os atores olham para o lado e coisas assim.
Hawks também evita filmar diálogos cortando entre os interlocutores. Ele prefere um clássico plano americano, a câmera de preferência localizada onde um sujeito que fizesse parte da turma estaria displicentemente sentado olhando os amigos, e faz os atores se movimentarem dinamicamente pelo quadro, com direito a alguns gestos desnecessários, mais uma vez relaxados, como coçar as costas, puxar as calças para cima ou ajeitar o chapéu. Esse controle sobre a movimentação fica claro na primeira aparição da gostosona, quando ela faz um comentário cínico encostada inclinada sobre um portal, exatamente como Lauren Baccall em "Uma aventura na Martinica".
Aliás, só pra constar, a idéia de Hawks quando chamou Baccall para filmar era comê-la, mas ela acabou dando antes pra Humphrey Bogart. Quando o diretor soube que seu amigo e ator, que na vida real não comia ninguém, tinha pego a maravilhosa adolescente, ficou bastante frustrado, mas como o que interessa é o grupo, a amizade e o profissionalismo, continuou a filmagem, continuou amigo do Bogart, e comeu a garota que fazia o papel da mulher do líder da resistência. Hawks era um sujeito tão parecido com os aventureiros de suas histórias que morreu aos 79 anos num acidente de moto - que ele estava guiando. O próprio "Uma aventura na Martinica" saiu de uma aposta dele com o Hemingway quando ambos pescavam em alto-mar e o cineasta, pra provar seu ponto-de-vista que cinema era muito mais fácil que literatura, perguntou qual a pior coisa que ele já tinha escrito e que tiraria um filme de sucesso dali. Bogart agradece.
Esse profissionalismo professado nas fitas dele não exige absoluta perfeição técnica. Wayne explica que passa o filme todo carregando uma incômoda Winchester na mão porque não saca tão rápido assim e prefere ter a arma já pronta para disparar. Não era o tipo de confissão que os personagens do Duque fizessem na época. O que interessa é conhecer suas fraquezas, seus limites, e aproveitar o que sabe fazer melhor. Como o povo que ele filma normalmente tem uma profissão interessante - aviador, xerife, explorador, cientista - e com toda a fluidez e informalidade que sua câmera e direção proporcionam, o espectador se sente tão bem durante o longa como se estivesse enchendo a cara com um pessoal legal. O próprio Colorado, que acha sensato não se juntar àquele pessoal em apuros, acaba não resistindo e unindo-se a eles. E ainda tem aquela mulher gostosa. Depois do tiroteio em que ela atira o vaso pra distrair os bandidos, ela fraqueja um instante, acha que não é talhada pra conviver com esse ofício. Mas no final ela aceita a profissão de Wayne - que é sua própria vida - e quando ele aceita o que ela é - uma ex-vadia agora disposta a ficar com ele, mas (implicitamente) indisposta a abrir mão de sua sexualidade (mesmo que disposta à monogamia) e seu jeito de ser atirado. Ambos aceitando as condições do outro, estão prontos para uma união muito mais atraente do que os finais felizes tipicamente assexuados da Hollywood da época. A gargalhada de Brennan e Dean Martin ao verem a meia-calça de Dickinson atirada pela janela deixa isso bem claro.
E eles viveram felizes e fodendo muito para sempre.
(1) John Wayne apareceria nos três; Hawks insistia em que não era tuo a mesma história, por isso Wayne, quando convidado pra fazer o terceiro, perguntou, "mas dessa vez eu vou ser o bêbado ou o xerife?"
de Howard Hawks, 1958
Depois de revolucionar o uso do som nos filmes com o barulhentíssimo "Scarface", em 1931, Howard Hawks olhou para alguns dos simbolismos e voltas de força da fita – planos-sequência iniciando numa cruz e terminando num assassinato, folhas de calendário voando com tiros de metralhadora, pinos de boliche dançando, moedas sendo jogadas para o alto o tempo todo – e disse que aquilo tudo só servia pro diretor se mostrar e distrair o espectador da história. E assim, apesar de todo seu talento para criar cenas para deixar estudantes de cinema babando com a inteligência do autor, Hawks passou o resto da (longa) carreira se dedicando a botar o enredo pra frente com o máximo de eficiência e simplicidade. E criou uma enorme quantidade de clássicos da era de ouro de Hollywood.
Mas em "Rio Bravo" ele trapaceia um pouquinho e resolve fazer uma volta de força logo no começo só pra se divertir, filmando os primeiros cinco minutos sem diálogos. Um bêbado pede esmola, o ator que nos anos 70 faria o Xerife Lobo do seriado joga uma moeda na escarradeira, o bêbado – Dean Martin – hesita e resolve pegá-la, John Wayne, segurando seu rifle, joga a escarradeira longe, o bêbado agride John Wayne, depois tenta pegar Joe, o futuro xerife Lobo, mas os capangas dele o impedem e o seguram para que Joe o espanque. Um popular tenta detê-lo, mas Joe se enfurece e atira nele, matando-o. Entediado, sai pela cidade, paquera meninas, começa a beber em outro bar, até que John Wayne, ainda meio trôpego e ensanguentado pela cacetada que levou de Dean Martin entra saloon adentro segurando a Winchester com uma mão só enquanto profere a primeira linha do longa: "Joe, you´re under arrest".
Depois de uma pequena confusão em que Dean Martin acaba ajudando Wayne a levar o desordeiro para a cadeia (onde fica sob a guarda do velho manco Walter Brennan), ficamos sabendo que o primeiro era o melhor gatilho da região e assistente do xerife Wayne até que se apaixonou por uma vadia que todo mundo avisou a ele que era uma vadia, mas não adiantou nada. Ele largou tudo por ela e voltou seis meses depois sem um tostão, mergulhou numa garrafa e não saiu mais. Sua busca por redenção será o fio condutor da trama.
Dizem os livros que "Rio Bravo" foi ideado como uma resposta a "Matar ou morrer", que Wayne achou antiamericano, coisa de comuna. Irritou-o sobremaneira o xerife interpretado por Gary Cooper achar que o pessoal da cidade tinha que protegê-lo, quando deveria ser o contrário. Por isso a cena em que Ward Bond quer angariar ajuda pra Wayne e este dispensa, dizendo que ter um bando de amadores preocupados com a família ao lado iria atrapalhar mais do que ajudar. Por isso que Wayne chamaria de "garoto esperto" a Colorado (Ricky Nelson), pistoleiro contratado de Bond e que acha mais sensato ficar fora do assunto. Por isso, enfim, que Wayne teria contatado Hawks pra fazer a fita. Ele só não contava que Hawks iria subverter a concepção original até encaixá-la em seus temas recorrentes. E iria gostar tanto que refilmaria a história mais duas vezese, em "El Dorado" e "Rio Lobo" (1).
No mundo de Hawks, todos têm seu papel definido pelos seus talentos e usar suas aptidões pelo bem do grupo é o grande interesse. Mesmo os personagens que parecem o alívio cômico, como o Sueco em "Paraíso infernal", ou Walter Brennan aqui, são profissionais imprescindíveis - o Sueco é quem banca a operação dos aviões e Brennan é a fortaleza em torno de Joe, e é ele quem salva o dia em duas ocasiões, mesmo manco, velho e desdentado. Neste oeste selvagem, o homem que é homem não é aquele que tem mais perícia com o revólver - embora isso ajude - mas aquele que se atém ao código de conduta profissional, que põe o grupo acima de tudo. Essa idéia de que há lugar para todos na turma e essa falta de mesquinhos interesses pessoais é o que torna fantasias como"Jornada nas estrelas" tão atraentes para nerds e desajustados
E é também o encanto por trás da idéia fascista - no romance "Tropas estelares", a Força Federal (e, por conseguinte, o direito de voto), está aberta a todos - se você for cego, surdo, mudo e sem pernas, eles o poriam para contar as cerdas de uma taturana com o tato. Note que cerdas de taturanas queimam - no fascismo só o guerreiro tem valor. Nos filmes de Hawks basta desempenhar bem seu papel, mesmo que ele seja não oferecer ajuda ao xerife.
Dean Martin caiu em desgraça com o grupo ao pôr seus interesses sexuais acima do bem comunal. Enquanto rola a confusão na cidade com o riquíssimo irmão esperto de Joe oferecendo uma recompensa pela cabeça de Wayne, uma gostosíssima Angie Dickinson, quinze anos antes de Police Woman e mais de vinte anos antes de fantasiar ser estuprada no chuveiro em "Dublê de corpo", salta da diligência com sua descrição num cartaz de "procurado" e logo está cheia de amor pra dar praquele duque de um metro e noventa e comprida e potente arma sempre erguida e à mão.
Na verdade, era o ex-marido dela quem era o trapaceiro procurado pela justiça. Como a mulher prototípica de Hawks, ela é gostosa, atirada, sensual, sexual, deu adoidado a (jovem) vida toda e no final termina com o mocinho, ao contrário da tendência de Hollywood na época. Compare, por exemplo, com "Scaramouche", onde a atriz gostosa que é apaixonada pelo personagem-título abre mão dele prele ficar com a mocinha porque ela tem algo que ela nunca poderia lhe oferecer: um cabaço. Angie Dickinson aqui, Lauren Baccall em "Uma aventura na Martinica" e Jean Arthur em "Paraíso infernal" são claramente garotas de programa, mas isso não as impede de serem moças interessantíssimas - muito pelo contrário. Para conquistarem o herói, elas não têm que provar que na verdade não têm vida sexual passada ativa, variada e descompromissada (como o patético final de "Gilda"), mas apenas que estão preparadas para pôr os interesses do grupo acima dos seus e não tentar afastar um homem daquilo que ele nasceu para fazer.
Para reforçar essa sensação comunal, as fitas de Hawks sempre têm uma canção envolvendo todo o grupo - aqui aproveitando que há dois cantores, Dean Martin e Ricky Nelson, e um Walter Brennan que toca gaita. Hawks também abusa de botar seus atores em posições relaxadas, Angie Dickinson displicentemente apoiada no balcão, Wayne com os cotovelos apoiados em uma prateleira e uma das pernas dobrada e encostada num anteparo em frente, bem como os faz se movimentarem com gestos largos, informais e desatentos ao andar, abrir portas e pegar coisas em armários. Essa mesma informalidade é outro dos motivos da popularidade de "Jornada nas estrelas": a famosa maneira de abrir o comunicador com um solavanco, os botões para levantar as portas sendo batidos com a palma da mão enquanto os atores olham para o lado e coisas assim.
Hawks também evita filmar diálogos cortando entre os interlocutores. Ele prefere um clássico plano americano, a câmera de preferência localizada onde um sujeito que fizesse parte da turma estaria displicentemente sentado olhando os amigos, e faz os atores se movimentarem dinamicamente pelo quadro, com direito a alguns gestos desnecessários, mais uma vez relaxados, como coçar as costas, puxar as calças para cima ou ajeitar o chapéu. Esse controle sobre a movimentação fica claro na primeira aparição da gostosona, quando ela faz um comentário cínico encostada inclinada sobre um portal, exatamente como Lauren Baccall em "Uma aventura na Martinica".
Aliás, só pra constar, a idéia de Hawks quando chamou Baccall para filmar era comê-la, mas ela acabou dando antes pra Humphrey Bogart. Quando o diretor soube que seu amigo e ator, que na vida real não comia ninguém, tinha pego a maravilhosa adolescente, ficou bastante frustrado, mas como o que interessa é o grupo, a amizade e o profissionalismo, continuou a filmagem, continuou amigo do Bogart, e comeu a garota que fazia o papel da mulher do líder da resistência. Hawks era um sujeito tão parecido com os aventureiros de suas histórias que morreu aos 79 anos num acidente de moto - que ele estava guiando. O próprio "Uma aventura na Martinica" saiu de uma aposta dele com o Hemingway quando ambos pescavam em alto-mar e o cineasta, pra provar seu ponto-de-vista que cinema era muito mais fácil que literatura, perguntou qual a pior coisa que ele já tinha escrito e que tiraria um filme de sucesso dali. Bogart agradece.
Esse profissionalismo professado nas fitas dele não exige absoluta perfeição técnica. Wayne explica que passa o filme todo carregando uma incômoda Winchester na mão porque não saca tão rápido assim e prefere ter a arma já pronta para disparar. Não era o tipo de confissão que os personagens do Duque fizessem na época. O que interessa é conhecer suas fraquezas, seus limites, e aproveitar o que sabe fazer melhor. Como o povo que ele filma normalmente tem uma profissão interessante - aviador, xerife, explorador, cientista - e com toda a fluidez e informalidade que sua câmera e direção proporcionam, o espectador se sente tão bem durante o longa como se estivesse enchendo a cara com um pessoal legal. O próprio Colorado, que acha sensato não se juntar àquele pessoal em apuros, acaba não resistindo e unindo-se a eles. E ainda tem aquela mulher gostosa. Depois do tiroteio em que ela atira o vaso pra distrair os bandidos, ela fraqueja um instante, acha que não é talhada pra conviver com esse ofício. Mas no final ela aceita a profissão de Wayne - que é sua própria vida - e quando ele aceita o que ela é - uma ex-vadia agora disposta a ficar com ele, mas (implicitamente) indisposta a abrir mão de sua sexualidade (mesmo que disposta à monogamia) e seu jeito de ser atirado. Ambos aceitando as condições do outro, estão prontos para uma união muito mais atraente do que os finais felizes tipicamente assexuados da Hollywood da época. A gargalhada de Brennan e Dean Martin ao verem a meia-calça de Dickinson atirada pela janela deixa isso bem claro.
E eles viveram felizes e fodendo muito para sempre.
(1) John Wayne apareceria nos três; Hawks insistia em que não era tuo a mesma história, por isso Wayne, quando convidado pra fazer o terceiro, perguntou, "mas dessa vez eu vou ser o bêbado ou o xerife?"
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