- Você até hoje não consertou esse ar condicionado?
- Eu só lembro quando entro no carro e quando eu entro no carro, eu já tô indo pralgum lugar.
- Você não derrete aqui não?
- Ainda não.
- Eu vou acabar passando mal. Ainda mais com esse engarrafamento todo.
- Que que você quer que eu faça? A hora que você marcou é assim mesmo, os colégios todos tão dando a saída do turno da manhã, as mães vêm buscar, engarrafa tudo. E o que não falta aqui é colégio.
- E será que serve pralguma coisa?
- Como assim?
- Será que serve pralguma coisa? Será que eles aprendem alguma coisa?
- Você estudou aqui, né?
- Foi.
- Hm.
E, depois do rapaz, um pouco de silêncio. A moça então abriu a bolsa e pegou um cigarro.
- Já que você não consertou o ar condicionado...
- Você não sabe que no seu estado não se deve fumar?
- Não vou ficar nesse estado por muito tempo.
- Nunca dura muito tempo.
- Do que estamos falando?
- Do tempo.
- Não, o tempo do quê? Tempo de amor, tempo de vida, tempo de sexo...
- Sexo tem tempo?
- Tem hora de começar e acabar.
- Não tem hora de acabar.
- Mas você não sabe que tem hora de começar.
- Estamos nebulosos hoje, hein?
- Embaraçados, talvez.
- Não devíamos.
- Numa situação destas?
- Pois é. Eu achava que você não ficaria embaraçado. Por isso que eu te chamei. Pensei que você não ficaria embaraçado.
- Em quem mais você pensou pra chamar?
Silêncio.
- Você tem tantos amigos.
- Amigas.
- Elas se embaraçariam menos.
- Elas iam ficar com pena e se acharem superiores. Elas e seus namoros chatos e monogâmicos. Seus homens chatos. Suas vidas chatas.
- Suas amigas e você fala assim delas?
- Justamente. Eu as conheço o suficiente para saber como se sentiriam.
- Você não errou quanto a mim?
(A garota vira o rosto lentamente na direção dele quando ele fala isso, fica procurando um sinal de segundas intenções, dubiedade, ela sabe que ele sabe usar subtexto, ela sabe que ele sabe ser sutil, ela sabe que ele sabe insinuar, ela sabe que ele sabe esconder, ela sabe que ele sabe dissimular, mas ela não sabe por onde começar, ela está abalada e não sabe por onde começar a leitura no rosto dele, os óculos escuros não ajudam muito, a concentração dele no trânsito em frente, o sol forte apagando todas as tênues fronteiras entre luz e sombra, ela não sabe se é só isso, ela não sabe se é porque ela não quer, não quer saber, mas ela não consegue, não consegue ler o rosto dele e saber o que ele está pensando, se ele insinuou e então pergunta)
- No que você está pensando?
- Que você vai liquidar legal tua poupança.
- É. Vou.
- Com dinheiro você é sempre tão cuidadosa.
- Eu tenho pouco, tenho que cuidar dele.
- Do teu corpo também.
- Ele se cura sozinho.
- Dinheiro também. É que teu corpo não te atrai.
- Dinheiro não me atrai.
- Não. O valor material dele não. Você não é disso. É o poder.
- O poder?
- O poder. Não o de comprar coisas ou mandar nas pessoas. Mas a idéia. A idéia intrínseca. Ele é aberta e escandalosamente forte.
- Ele não traz a felicidade.
- Mas leva embora.
- Você sempre tem uns pensamentos tão esquisitos...
- Lógicos.
- Não, não são lógicos. Você não age que nem as pessoas normais.
- Elas é que são ilógicas.
- Então? Não é você que é o esquisito nesse caso?
- Eu não sou esquisito. Eu só estou te dando uma carona e uma força. Eu nem devia, se fosse tão lógico assim.
- Eu sei.
Ela abaixou os olhos. Ela é uma menina muito orgulhosa. Ele acha que nunca a viu fazendo isso. Ela sempre teve uma explicação para tudo. Ela está cansada e abatida. Não queria se deixar ver assim, mas ela está assim, está cansada e abatida. Ela não só abaixa os olhos, ela abaixa os olhos e ainda vira o rosto para o lado. Ela está cansada e abatida. O outro lado, longe dos olhos dele. Longe. Longe dos olhos.
- Era esse assunto que estávamos tentando evitar, não era?
- Era.
- Por que você me chamou?
- Eu não confiaria em mais ninguém.
- Não?
- Não.
- Tem certeza? Foi esse o único motivo?
Ela está longe, ela está alquebrada, mas é orgulhosa demais para responder "não", verdade ou mentira. Ela está longe dos olhos.
- Olha só você. Depois de tudo. De tudo que eu fiz, de tudo que a gente passou esse tempo todo, você tá aí.
- Tô. Eu sempre estive "aqui". Do seu lado. Sempre estive à sua disposição.
- Eu sei.
Silêncio.
Os olhos dela marejam enquanto ela continua longe do olhar dele. Ela não quer perguntar, ela não quer saber, ainda há pouco não conseguiu ler o rosto dele, não quer arriscar, é melhor a dúvida eterna do que a certeza negativa, mas o coração é ilógico, ela é normal como os outros, ela não é esquisita como ele, ela precisa, ela quer, ela deseja saber. E segue.
- Mas depois de tudo que eu te fiz... você não precisava mais estar do meu lado. Se eu estivesse ao teu lado que nem você do meu não tava assim agora. Por que quando eu te liguei você não me bronqueou? Não me pagou um esporro? - soluço - Não desligou na minha cara? Não gritou? Não fez nada. Nem chorou. Nem ficou triste. Disse que me levava. - entrecortada - Disse que ficava comigo. Disse que esperava eu acordar. Que me levava pra tomar um sorvete depois. Disse que me ajudava no que fosse possível. Nem ao menos levantou a voz. Por quê? Por que você não me bateu, não gritou comigo, não me mandou embora, por que você me tratou tão bem, por quê?
Ela nem olhava o rosto dele, não queria ler, não queria não saber ler a expressão, expressão do rosto, expressão corporal, ele podia parecer misterioso à primeira vista e reservado demais e incapaz de arrebatamento e paixão à segunda, mas ela o conhecia o suficiente, mas agora não parecia mais capaz disso. Só de esperar a resposta, que demora um pouco, ele não responde de cara, a garganta dela não está mais livre, tem muco e soluços e dúvida e tristeza, tem tristeza, ela está longe de casa, longe da mãe, longe de ser mãe, longe de estar pronta para lhe ouvir a resposta, que chega, vem devagar e firme, devagar e certa, devagar e triste como a garganta dela, vem longe, vem de longe que seus tímpanos já ouvem mais os sons de dentro dela.
- Eu acho que não te amo mais, Cecília.
E depois ela não ouve mais nada que começa o choro, escondido, longe dos olhos dele, longe dos olhos, longe do coração.
agosto 23, 2009
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