O CCBB começou no dia 18 uma mostra de John Ford que vai até 7 de outubro. A programação completa está aqui.
Ajoelhai-vos e orai, crentes e pagãos, pois John Ford está entre nós. Arrependei-vos de vossos pecados e atirai no lixo vossos DVDs de Woody Allen; ateai fogo a vossos ingressos para filmes de relacionamentos e desviai-vos de cinemas exibindo fitas experimentando novas linguagens - prostrai-vos, cobri-vos de cinzas e implorai clemência ao único e verdadeiro Senhor. E vós a recebereis, pois John Ford ama toda a humanidade.
E é esse humanismo que torna John Ford tão irresistível. Irlandês católico numa indústria de protestantes e judeus, sua filmografia é repleta de um lirismo amoroso de quem compreende todas as suas crianças. Suas fitas são mitologias, contando histórias de moralidade para engrandecer o caráter. Mesmo os seus personagens perdidos são redimíveis e dignos de compaixão - até seu mais desprezível vilão, o Velho Clanton, é digno de pena ao ter seus planos e sonhos destruídos. Outros diretores podem ter feito de seus caubóis lendas titânicas, como Fred Zinnemann e Anthony Mann, mas os pistoleiros de Ford não lamentam seu destino imutável - suas vidas são consequências de suas escolhas, de sua livre escolha frente a Deus e ao mundo.
Tudo de bom encompassado pelo termo "cinema americano" está em John Ford. A direção invisível, o entretenimento garantido, fé na humanidade e nos bons valores morais, qualidade de produção, bela fotografia... tanto que muita gente às vezes considera Ford um artesão competente que sabia encenar um roteiro. A aparente falta de personalidade na condução das cenas é apenas ilusórias, entretanto. Um ator certa vez resolveu desafiar a marcação do falso caolho (1) e, em vez de por a mão sobre um corrimão enquanto falava, resolveu segurá-lo. Ford repetiu o take SETENTA E SEIS VEZES até que o rebeldezinho desistiu e finalmente fez como o velho irlandês queria. Ford não chamava, como Hitchcock, a atenção das pessoas para seus truquezinhos pessoais, mas concatenava belíssimas metáforas visuais, como, por exemplo, em "Rastros de ódio", quando dois jovens pioneiros brigões são separados, levados para dentro de casa e recomeçam a briga, os golpes espalhando a poeira de seus corpos - simbolizando que mesmo dentro de uma casa, mesmo sob o teto da civilização, eles carregam ainda a selvageria da vida na fronteira. Ou o ataque aéreo minimalista de "A longa viagem de volta". Sempre acompanhado de grandes câmeras, como Gregg Tolland, a eminência parda de "Cidadão Kane", seus filmes são visualmente esplendorosos, tanto em preto e branco (experimente "Paixão dos fortes" e "Vinhas da ira") como coloridos ("Rastros de ódio" ou "E o céu mandou alguém").
A influência católica é visível também nos comportamentos ritualizados de seus personagens. O primeiro encontro entre Doc Holliday e Wyatt Earp, em "Paixão dos Fortes", em que os pistoleiros se medem com jogos de gestos e palavras; a luta final em "Depois do vendaval"; a preparação para o ataque dos índios em "Rastros de ódio"; o desafio de Liberty Vallance em "O homem que matou o facínora". Os atores movem-se sempre de forma expressiva, muitas vezes tão languidamente que parece quase uma dança, como Henry Fonda em "Paixão dos fortes". Com tal controle sobre a movimentação em cena, Ford não tem problema nenhum em favorecer os planos gerais, sem precisar abusar de closes e mais closes para conseguir emoção, evitando cortes desnecessários e deixando as fitas fluirem com espontaneidade, sem nunca cansar o espectador. Tão precisa era sua edição, aliás, que para evitar que o editor contratado resolvesse inventar com suas tomadas, ele filmava normalmente apenas um take, com uma câmera, e começava e terminava a cena exatamente onde queria que ela iniciasse e parasse. O pobre montador não tinha muita escolha a não ser ir colando os pedacinhos de celuloide.
O tema favorito de John Ford é contar uma mitologia humanista positivista, a civilização vencendo a barbárie e conquistando o bem mais importante de todos, a terra. Tanto que a grande tragédia da família em um de seus melhores filmes (existem poucos que não podem ser considerados assim), "As vinhas da ira", é justamente a perda de suas terras, enquanto em "A longa viagem de volta", o drama dos marinheiros é não terem raízes, viverem errando nos oceanos. Mas isso é muita simplificação e algumas de suas fitas vão desde a defesa da revolução socialista, como no "vinhas...", até a kafkiana metáfora de "A patrulha perdida", quando um destacamento da Legião Estrangeira, após a perda de seu oficial comandante, o único que sabia qual era sua missão secreta, fica cercado num oásis, a mercê de atiradores árabes que nunca são vistos, enquanto um Boris Karloff em modo ator subleva os soldados com um discurso religioso fanático.
Compassivo, humanista, crente, expressivo, Ford foi a grande inspiração do Arcanjo Kurosawa e da galera da Nouvelle Vague, talvez os primeiros pseudointelectuais a dizer que aquele sujeito era um dos gênios da sétima arte, o grande pilar do que se entende por cinema americano, um artista desprovido de cinismo e que amava toda a humanidade. E, se alguém como Ford (e seu arcanjo Kurosawa) acredita no homem, nós também podemos ter alguma fé na grande comunidade. Portanto ide em paz, filhos, lotar todas as sessões da Mostra de John Ford no CCBB. Pois John Ford está novamente entre nós.
(1) Nas imagens de divulgação, Ford está comumente usando um tapa-olho, mas, ao contrário de Raoul Walsh, ele não tinha nenhum problema de visão - servia apenas para descansar a vista enquanto olhava pelo visor da câmera. Mas o diretor gostava de ser fotografado assim porque achava que... ficava com cara de mau!
outubro 18, 2010
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