outubro 03, 2010
Festival de Cinema do Rio de Janeiro: Luz nas Trevas, de Helena Ignez e Icaro C. Santos
"Luz", para os íntimos. Afinal, era como a hilariante locutora de "O bandido da luz vermelha" explicava para o público. Daí que o título desta continuação não é só pra dizer que existe salvação, mas que para alcançá-la, o protagonista vai ter que atravessar um inferno. Bem-vindo à visão de um brilhante homem doente, pesando sua mortalidade com quase sessenta anos, mais de três décadas depois de ter concatenado o maior clássico do udigrudi da Boca do Lixo ainda rapazola de vinte aninhos.
Mas Rogério Sganzerla não viveu o suficiente para por de pé este estimado projeto, e ele acabou na mão da starlet do longa original, a lendária musa do cinema marginal, Helena Ignez, sua viúva, que há dois Fest-Rios mostrou intensidade e talento fazendo de "A canção de Baal", com parquíssimo orçamento, quase uma viagem no tempo a anos mais cabeça. "Quase" porque longe de ser um fóssil, o filme tem uma linguagem atualizada e deixou o povo que adora o meliante com a lanterna encarnada cheio de água na boca. Afinal, com acesso a muito mais recursos do que o original, o roteiro de Sganzerla e uma diretora talentosa afinada com as ideias da trama, a fita ameaçava tornar-se referência de época como sua primeira parte.
Paulo Vilaça e a própria Helena Ignez no filme original
Sim, porque "O bandido da luz vermelha" é uma colagem vibrante e irresistível do final dos anos 60. Cheia de politização, revolução armada, revolução sexual, existencialismo, jovem guarda, bangue-bangue, filme de monstro japonês, rádio, tevê, cafonice, símbolos de status, a fita é como "Ulysses" ou "A divina comédia" uma viagem à sua época, um dos melhores retratos do Brasil em processo de urbanização e industrialização, cheio de vigor, originalidade, revolta e irreverência.
E é justamente essa irreverência que faz mais falta na continuação. A abertura com a marquise luminosa levou o blogueiro emocionado à beira da poltrona e deixou claro logo de cara o clima mais místico do longa: o anúncio avisava que o filme era um melodrama e seu protagonista era infinito. E, para explicitar ainda mais a diferença de tom, eis que entra o novo intérprete do marginal da lâmpada rubra, Ney Matogrosso, trazendo o primeiro problema da obra: ele está A-T-U-A-N-D-O. Inclusive está atuando bem, mas a cada aparição do ex-seco & molhado o público pode perceber todas as fibras do seu ser flexionando-se e contorcendo-se em agonia enquanto ele tenta demonstrar P-R-O-F-U-N-D-I-D-A-D-E e logo os espectadores começam a sentir falta do tranquilo desprezo agressivo e viril de Paulo Vilaça (será que Tarcísio Meira não toparia?).
Essa reverência na atuação de MT contagia boa parte da continuação, que vai aos poucos afundando-se em referências à sua alma mater, como o político populista, ou a viagem a Santos, ou o policial corrupto, sem contar, é claro, a marquise luminosa e os locutores de rádio. A televisão aparece muito pouco e não há referência à internet. Luz está reavaliando sua vida e o passeio é mais pelo passado emocional do personagem do que pela metrópole BRIC. O delinquente com a luminária escarlate da vez é o filho dele, protegido de São Jorge, que toma o caminho do crime para escapar da miséria, mas é muito menos angustiado e politizado do que o pai - sua relação com a prostituta/namorada da vez é muito mais saudável (como ele mesmo diz, ele faz tudo com amor, inclusive amor) e ele chega a prometer à moça, como os velhos malsinados caubóis ou gangsteres da velha Hollywood que apenas mais um trabalho e uma grana e ele larga essa vida.
É claro que quando você encontra na rua e começa a namorar uma prostituta com o visual e a personalidade da Djin Sganzerla você diz qualquer coisa pra ela. Não fosse a pontinha de Mojica Marins e ela não teria rivais na fita. A moça continua ótima atriz, sem esforço, com um jeitão irresistível e recomenda-se aos cardíacos que abandonem o recinto quando ela começar a tirar a roupa - ou mesmo dançar só de lingerie para o facínora com a lâmpada com o mais baixo comprimento de onda luminosa visível. Por falar em dançar, a trilha sonora do longa é tão irresistível quanto a Djin e ajuda a evocar o clima do original e a jornada sentimental de Luz nas trevas do presídio.
Justamente essa jornada e a ênfase na salvação de Jorge Prado, mais as constantes referências e a reverência pela fita original acabam roubando a produção do vigor daquela e ralentando o ritmo - alguns incidentes são altamente episódicos e parecem aparecer somente para homenagear a alma mater, como a invasão da casa do político. E um roteiro altamente estilizado como este pede a alta voltagem, por exemplo, de "A canção de Baal". Ou então dos últimos 15 minutos, quando finalmente montagem, atuações e trama decolam com a intensidade quase perfeita fazendo um final quase inesquecível - o herdeiro semialienado de Luz reinando no inferno, enquanto Jorge Prado se redime e se torna o somatório de toda a sua existência e explode num excelente aproveitamento do cantor-ator e estado do centro-oeste brasileiro. O blogueiro só não achou irretocável porque quando ouviu rotores de helicópteros atrás dele nas caixas surround, ficou esperando as aeronaves sobrevoando o protagonista no topo de um (provável) arranha-céu, com naves espaciais e afins cruzando os ares. Eu sei que isso é caro, mas não dava pra fazer uma computação gráfica meio picareta?
De qualquer forma, a sequência final é irresistível e deixa o público saindo do cinema eufórico. A diretora Helena Ignez foi musa de vários diretores e adolescentes, mas em vez de com a idade tentar tornar-se uma boneca de cera embotocada, mostra que aproveitou bem a vida e que ainda está numa excelente forma - como Prado, ela é orgulhosamente a soma de toda a sua existência. Seus filmes refletem sua sinceridade, seu talento, seu encanto e, mesmo que não tenha alcançado seu potencial nesta continuação, é mais por ter tentado medir-se com os gigantes. Como em seminários de autoajuda, ela visou as estrelas, falhou, e ainda assim fez uma fita interessante, cheia de qualidades e acima da média.
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