Em dez minutos de filme, o policial arquetípico dos anos 70 (bebe
muito, fuma muito, vale-se de seu distintivo muito) já matou sem
nenhuma provocação três pessoas que não fizeram nada. Mas o que deu a
“Os maus não merecem a paz” (1) a fama de “Tropa de elite” espanhol é
que não é ele um dos malvados a que o título se refere. O adjetivo é
mais aplicável a todos os colombianos, árabes e outros não europeus
que povoam a fita. Tudo um bando de filhos da puta e só um tira que
usa bigode, barba por fazer, jeans e armas grandes como a do Dirty
Harry pra botar ordem nessa porra.
Depois de assassinar três sul-americanos num puteiro (daqueles que se
chamam “leidy’s club” quando querem dizer “ladies”) de um colombiano,
o policial Santos Trinidad começa a investigar a identidade deles pra
tentar pegar uma testemunha que escapou, o rapaz que tomava conta das
câmeras de segurança. Como uma bolinha do pinball que Santos abre o
filme jogando, ele é atirado de um lado para o outro e acaba
descobrindo uma conspiração envolvendo tráfico de drogas e terrorismo.
Tudo isso em plenos preparativos para um encontro do G-20, outro
símbolo da globalização (repare na hora em que aparece a imagem do
Berluscomi na tevê).
No habra paz para los malvados (Trailer) - Enrique Urbizu from aproductions on Vimeo.
Santos é o último macho da Espanha. Ao mesmo tempo que ele, uma juíza
investiga o assassinato triplo e tem que enfrentar a burocracia, os
erros do judiciário (uma grande investigação é jogada fora porque se
perde um prazo), a falta de comunicação entre os departamentos, e, por
que não dizer, a efeminação da força policial. Um comissário, por
exemplo, parece muito mais preocupado com o seu viril informante do
que com o fracasso de sua diligência antiterrorista. A juíza mesmo tem
que interromper os afazeres pra ser fofinha ao telefone com o filho e
o marido (é ele quem fica em casa cuidando das crianças!).
E, obviamente, sob uma ótica tão polêmica quanto a do primeiro “Tropa
de elite”, quem não é espanhol é traficante de drogas, terrorista,
quando não ambos. Chega a ser curioso que os espanhóis, que nos
Estados Unidos dão nome a uma das “raças” em que eles subdividem
pessoas (os hispânicos), sejam tão branquinhos nesta fita. Seria
difícil de imaginar que Hollywood escalasse atores tão caucasianos pra
representar ibéricos. Mais provavelmente poriam a turma que faz os
árabes e os colombianos. Um dos estrangeiros da história chega a casar
com uma autêntica europeia. O pai reclama que ele a ensinou tanto a
ser livre pra ela acabar se cobrindo toda e dizendo “me entrego a este
homem livremente”. A cena traz à memória o slogan racista de “Paixões
que alucinam”: “Peguem aquele negro antes que ele se case com a minha
filha!”
José Coronado recebeu o Goya (o César espanhol) por sua ótima atuação como um tira escroto
A fama de “Tropa de elite” espanhol não é aplicável só ao conteúdo
polêmico. Estilisticamente, fica provado que dominar a linguagem de
filmes policiais não é mais privilégio americano (ou francês). Embora
sem tanta personalidade, a investigação lembra “Operação França”, não
dando nenhuma colher de chá para o espectador: quem se distrair vai
perder o fio da meada. O que não acontece com Santos Trinidad. Como o
tira corrupto de “A marca da maldade”, ele é infalível: o que pode
parecer pura arbitrariedade são só os seus instintos quase
sobrenaturais, E, também, quem é que vai encarar se ele estiver
errado? Ele bebe, ele fuma (em lugares públicos fechados!!!), ele
gosta de café com anis que ninguém mais tem, ele mija na rua, ele
atira bem, veste jeans e camisa de macho enquanto os outros policiais
usam ternos bem cortados, penteados bem cuidados e ficam enchendo o
saco dele com esses terroristas à solta por aí.
O filme passa na terça, às 15:50h, no Estação Sesc Botafogo 1, e na
quinta, às 16:15h e 23:30h, Estação Sesc Rio 1.
(1) O tradutor não sacou que o título original é uma citação bíblica,
como segue em português: “mas os ímpios não têm paz” (Isaías 48, 22).
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