dezembro 06, 2021

Moro num País Tropical

 Como era óbvio e previsível desde que apareceu nos noticiários, Sérgio Moro apareceu como candidato à presidência. Ninguém ganha uma capa “ele salvou o ano” de uma Veja em sua época ainda relevante em vão. Mais uma vez vão tentar empurrar um messias sem laços com a política tradicional. Pouco importa que ele tenha sido Ministro da Justiça ou que ele seja reconhecidamente um  juiz venal, parcial, que assumiu uma posição politizada num processo que teve que ser anulado por causa disso. A fantasia de imparcialidade cultivada pelos conservadores continua. Em seu provincianismo, essa é a única maneira de se conseguir fazer alguma coisa nesse país. O próprio Provinciano do Paraná esclareceu como funciona esse raciocínio, quando vendeu seu “projeto anticrime” explicando que os policiais poderiam agir como agentes de seriado americano. Esta é a referência, não só de seu público, como dele mesmo. Cultura pop americana. Esse é o preço que se paga pelo conservadorismo provinciano. O pessimismo cínico do pensamento literal e encarquilhado.


Presses pensadores conservadores que gostam de despejar silogismos que nunca passaram perto da teoria dos conjuntos e baseados em fatos altamente questionáveis, o pensamento “comunista” - aí englobados os progressistas, reformistas e liberais - é inerentemente pessimista e agressivo. Nunca estão satisfeitos com nada, não reconhecem valores consagrados pelo tempo e reclamam de tudo. Na verdade, é o contrário. Os cínicos e pessimistas são os conservadores, que não conseguem imaginar que tudo possa melhorar e temem desesperadamente que qualquer movimento faça tudo desabar. Em suma, além do pessimismo, a falta de imaginação também é especialidade da casa. 


Assim, não é à toa que conservadores temem tanto ensino de ciências humanas. A imaginação no poder é o seu grande temor. Sem ela - e com o pessimismo implícito dessa visão de mundo sem opções, só sobra cuidar de si mesmo. E é assim que o egoísmo - a verdadeira raiz de todos os males - não só é cultivado como estimulado - e como MOTOR da sociedade! O pensamento literal é incapaz de compreender que o egoísmo sem limites, por sua própria definição, não pode arrastar junto todo o mundo. Mas esse é um mundo mais simples e compreensível para um raciocínio mais limitado. Ainda vem com o bônus de alavancar os valores familiares tão estimados. Num cenário de cada um por si, em quem mais você pode confiar, além de sua família? Com reservas, é claro. Vamos deixar a discussão de como essa estreiteza de confiança justifica a homofobia (não produzem descendentes confiáveis) e misoginia (mulheres que compram os valores egoístas não se dedicam tanto à criação dos importantíssimos filhos). O papo aqui é o juiz venal vendido como campeão anticorrupção.


Esse egoísmo estrutural não compreende a política tradicional. Conciliação é a essência da vida em sociedade. Mas quando quem não está com você está contra você, a demanda é por messias (qual o plural de messias?). Salvadores imparciais, destituidos de egoísmo e dispostos a quebrar as regras e os limites para consertar as coisas. Porque se este é o melhor dos mundos, é claro que o problema é conjuntural. É só tirar algumas maçãs podres. E quem são as maçãs podres? 


Ora, num mundo apeado em egoísmo e falta de imaginação, é claro que o supremo problema é o atentado contra a propriedade. Tudo se resume a roubo. Parando o roubo, tudo vai ficar bem. E o “roubo” não pode ser do tipo metafórico. Tem que ser, novamente, literal. Ou é um bandido assaltante ou é a corrupção.


A corrupção, é claro, é algum político pedindo propina. A ideia de que ela existe em praticamente todo momento de relações humanas - do bullying à paquera - parece elusivo demais. A ideia de que divulgar conversas gravadas - cuja gravação já seria de pronto proibida - em processos sigilosos NÃO é corrupção pode ser empurrada facilmente porque não houve propriedade privada envolvida. Direitos são entidades etéreas e abstratas, ao contrário de coisas como anjos da guarda.


Sérgio Moro é o anjo da guarda paternal e imparcial. Com o rosto quadrado como um apresentador de telejornal ou super-herói desenhado nos anos 30, tem o físico do rolo, como o pessoal do Pasquim gostava de dizer. Moro se expressa pessimamente e com constantes clichês jurídicos. O que é ainda melhor, depois de décadas de condicionamento pela cultura pop de que pessoas com gostos refinados são vilões pervertidos (e, neste sentido, James Bond foi um personagem subversivo - até Daniel Craig aparecer como um bruto sem o característico elitismo). Sérgio Moro não é um suspeito gênio da retórica - mas olha como usa palavras difíceis. Ele é o  tipo de inteligente confiável.


É assim que se justifica a corrupção. Ele não está avançando sobre a propriedade privada de ninguém, o grande temor conservador. Esse é o custo do pensamento literal e provinciano - o culto ao vigilantismo. Em 2011 viajei pelo Caribe. Logo ao chegar, o povo de lá, ao saber que eu era brasileiro e viera pela Copa, comentou que essa linha havia acabado de adquirir os novos Embraer - muito melhores que os jatos norte-americanos anteriores. Tinham até DVD em cada cadeira (novidade na época, ainda mais em aviões para rotas médias). Todo o mundo queria saber notícias do câncer de garganta do Lula, fato recente então. Os países estavam sendo postos abaixo e reconstruídos - estradas, cassinos, hotéis, resorts, metrôs… tudo construído pela Odebrecht. Para os haitianos, Lula tinha sido “o melhor presidente da história da América Latina”. No Panamá, um dos mais famosos cartões postais, os ônibus ex-escolares americanos, estavam sendo substituídos por veículos brasileiros. O interesse que eu despertava fazia-me sentir um cidadão do verdadeiro primeiro mundo.


No ano seguinte subitamente começaram os golpes - alguns parlamentares, outros literais - contra todos os líderes não-conservadores latinoamericanos. No Brasil, um juiz que fez um curso nos EUA destruiu a Odebrecht e apeou do poder o partido que tanto espalhou a influência brasileira pela região - e pelo mundo, a ponto de nos darem uma Copa e uma Olimpíada. A Embraer foi comprada pela Boeing, embora a parte de melar tudo depois que metade dos funcionários foi demitida não fizesse parte do plano, foi apenas culpa dos 737 caindo frequentemente. Outro motivo pelo qual a Copa fez bem em comprar Embraers. Esse é o famoso soft power. Não rende dinheiro imediatamente. Na verdade, perde-se, a princípio. É um movimento para o futuro. Mas no universo egoísta e patrimonial, é perda de tempo. É preciso o meu agora. É preciso acabar com o roubo e gastar meu dinheiro com esses subdesenvolvidos é corrupção. É preciso eleger alguém acima do bem e do mal e sem envolvimento com a política tradicional. É preciso trazer o juiz corrupto. Ele é do bem. Afinal de contas, a Globo não passava aquele seriado sobre um juiz que saía à noite pra caçar os bandidos que ele não conseguia condenar?


E, assim, temos a mediocridade galopante. O egoísmo alimentando o provincianismo alimentando o egoísmo e a desigualdade. Que alimenta a corrupção e o egoísmo. A falta de imaginação nos impede de pensar em algo mais do que ser um país periférico, desde que nós possamos manter nossa identidade de classe média cosmopolita. Mesmo que esse cosmopolitismo seja frequentar um shopping center em Miami e voltar sem fazer nenhuma amizade. Sérgio Moro é obviamente o candidato da terceira via. É o candidato da falta de opção.






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