dezembro 28, 2021

Pra Super Herois e Cultura Pop em Geral, Conhecimento é Sinônimo de Fraqueza

 Eu não lembro das palavras exatas, mas era algo no sentido de “muito estudo e dedicação”. Estou falando do primeiro filme do dr. Estranho. Benedict Cumberbatch estava querendo saber como se tornar um feiticeiro e Mordo pergunta a ele como ele se tornou um respeitado cirurgião e o Strange responde, “com  muito estudo e dedicação”. Mordo ri e diz que terá que ser da mesma forma.


Esse é um dos meus momentos favoritos dos filmes da Marvel. Resume o espírito ligeiramente subversivo desse universo cinematográfico, honrando a tradição dos quadrinhos do Stan Lee. A subversão é que Stephen Strange irá se tornar o Mago Supremo da Terra não porque os deuses decidiram que seria divertido dar poderes de nascença praquele sujeito, mas porque o vivente vai meter a cara nos livros e tomar muita porrada (metafórica) até aprender como essa coisa de magia funciona.


Pode parecer pouca coisa, mas perto do universo fascista do Zach Snyder e da DC, onde todo o mundo já vem com superpoderes de fábrica e, preferivelmente, de uma família real, é um tremendo adianto. E não adianta lembrar do Batman, porque, como ele mesmo explica na versão de cinema de “Liga da Justiça”, seu superpoder é ser rico. Também posso parecer apenas um nerd discutindo detalhes de universos fictícios que deveria estar em algum vocetubo de jovens virgens cavaleiros templários, mas é um assunto que merece mais atençaõ do que recebe, porque essa cultura pop é que alimentou nas últimas décadas esses mitos neocons, neoliberais, misóginos, anticientíficos, a ponto de um então Ministro da Justiça e hoje candidato a presidente tenta vender uma lei dando ainda mais poderes a policiais afirmando que vai criar agentes como os de filmes policiais americanos (aqueles extremamente realistas).


Stephen Strange tendo que meter a cara nos livros pra passar nos exames vai soar pra muita gente a glorificação da meritocracia utópica dos neoliberais, o que não é verdade porque, em primeiro lugar, está muito mais pra utopia socialista de igualdade de oportunidades e, em segundo lugar, porque os conservadores odeiam a ideia de meritocracia. 


Desde que Alec Guinness contou pro Luke Skywalker que o pai dele era na verdade um cavaleiro jedi (e o avô dele era literalmente um Espírito Santo) e que, por isso, ele deveria derrubar o Imperador, a fantasia do sujeito que, apesar de parecer um mané perdedor, secretamente é o filho-herdeiro-avatar de alguém, destinado a ser o fodão do Universo, tomou as telas, as telinhas, as páginas da cultura de massa e as mentes e almas da imensa maioria da humanidade que se enquadra nessa descrição (mané perdedor, não fodão do Universo). 


Stephen Strange entra para o templo de Vishanti, Hoggoth, Stanlee ou seja lá o que for e seu círculo de amizades, dinheiro e acesso a conhecimento não lhe vão valer de nada. É claro que o conhecimento geral que ele traz de sua vida luxuriante pregressa faria diferença, mas aí estamos entrando em muita sutileza para narrativas mitológicas pop.  Ainda mais que, para compensar, o povo que escreveu a historinha ainda perde um tempinho pra dizer que nem existem vantagens genéticas de maior agilidade ou destreza. Quando o Estranho reclama que não consegue gesticular magicamente (não hipnoticamente, fãs de Mandrake!) porque o acidente de carro que motiva o filme deixou suas mãos e seus dedos inábeis, é revelado que um dos talentosos feiticeiros da área nem dedos tem. Enquanto isso, o maior fenômeno pop deste século, Harry Potter, igualmente ancorado em magia, é um mané perdedor até que, um dia, alguém aparece e diz que ele, secretamente, é filho de um casal de magos e tem poderes que… não posso falar muito por nunca ter lido ou visto Harry Potter (e isso não é motivo de orgulho, embora também não seja de opróbrio), mas vocês já entenderam como a coisa segue.


A meritocracia pregada pelo neoliberalismo e neoconservadorismo é a do Harry Potter, não a do dr. Estranho. Ela não existe para recompensar estudo e dedicação, mas para garantir que aqueles nascidos “especiais” recebam seu quinhão de direito e sua posição superior a dos outros reles mortais. Seus talentos vêm de nascença. Não é por coincidência que essas ideologias neorreaças venham do mesmo berço daquele protestantismo que pregava que Deus já escolheu aqueles que receberão a salvação. Para o pensamento conservador, a presença dos sujeitos esforçados em meio aos titãs “escolhidos” é quase uma ofensa. Pensando em termos de seleção brasileira, comparem o ódio que o esplêndido Dunga, multicampeão, desperta, enquanto o multifracassado (repito, em termos de seleção) Neymar é o ídolo das multidões. Coisas como conhecimento são totalmente inúteis frente à férrea vontade do Predestinado. Quantas fitas você já não assistiu em que os cientistas - aqueles caboclos - ou cabrochas - com décadas envolvidos em pesquisas e leituras - insistem em que alguma coisa é impossível pra chegar o herói e fazer o impensável a que se propôs apenas por sua vontade férrea, fé, ou pelo poder do amor ou algo parecido>


Assim se cria o pensamento anticientífico. Esse povo todo foi treinado desde antes de saber que pensava, logo existia, a crer que opiniões e ideias de pessoas especiais têm total procedência sobre sábios. Os nerds de hoje, então, nem precisam estudar, pois, como vimos, você só precisa saber que é especial. E é claro que você é, com toda sua bagagem cultural e conhecimento de literatura e cinema. Literatura de fantasia  e cinema de super-herói, mas, ei, isso é arte! Você que diz o contrário, aposto que é um desses cientistas que está sempre errado.


Uma ou duas gerações atraś, depois de uma certa idade o que você tinha à disposição de universos fictícios coerentes era destinada a gente com menos de 20 anos, como as HQs da Marvel, ou escassa, como Star Trek. Até uma certa época você nem  encontrava Duna em português. Muito menos Elric de Melniboné (a fantasia que é a antifantasia conservadora tradicional). Então, depois que você ficava viciado em leitura, começava a buscar obras mais complexas. No mundo de hoje em dia os “especiais” podem se perder em infindáveis fantasias exaltando a falta de esforço. Antigamente, nas aventuras espaciais infantojuvenis de Isaac Asimov (ele tinha as adultas também), quem mandava no planeta era o Conselho de Ciências. Os heróis eram cientistas (tradição herdada por Star Trek, onde ser um estudioso não exclui ser um homem de ação). Já hoje em dia eles são os intrusos, tentando se intrometer  entre os superiores predestinados. Que podem  parecer apenas ser uns manés fracassados, mas que estão apenas esperando ser reconhecidos como  os cavaleiros templários de direito que são.


E assim a humanidade caminha. No último Homem-Aranha do cinema, e estou contando uma revelação da fita aqui, o Ned, o melhor amigo do Amigão da Vizinhança, descobre  que, usando o anel do dr. Estranho, consegue abrir portais e manipular magia.  Nada de estudo e dedicação. Ele é um escolhido. Um predestinado. Curiosamente Ned era um  nerd (aliteração!!) que já ajudava o herói com  seus conhecimentos tecnológicos e de informática. Mas, aparentemente, na Marvel de agora, isso não é o bastante para ser amigo de um dos homens superiores desse universo. É preciso ter nascido com seus próprios superpoderes, ou você não é nada, é um alpinista social e genético. Aparentemente mesmo os tímidos conceitos subversivos da Marvel estão sendo limados. Stan Lee deve estar se revirando em seu túmulo.

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