abril 23, 2024

Uma Viagem ao Infinito

  Fale com algum nerd que já fosse senciente lá pelo começo dos anos 80 sobre a primeira série Cosmos, e eles imediatamente se atirarão ao chão, cobrindo-se de cinzas e lamuriando-se que não são dignos. Naquela época ninguém sabia muito sobre astrofísica e os escritores de ficção científica que gostavam de explicar do que estavam falando estavam mais interessados em tecnologia do que nas coisas básicas do espaço. Pouquíssimos garotos esquisitos, provavelmente alvos de valentões, tinham realmente boas informações sobre buracos negros ou as visões cosmoteológicas de Kepler (só aprendíamos na escola as leis, impessoalmente, aquelas sobre os planetas transladarem ao redor do Sol em elipses, com a velocidade em cada trecho proporcional ao arco da curva). 


O mais fascinante de tudo era que as leis que regiam o Universo eram as mesmas de todos os lugares, com as quais estávamos completamente familiarizados, mas levadas ao extremo pela escala das massas e distâncias pantagruélicas. A ideia, por exemplo, de que a força que fez a maçã cair (ou não) aos pés de Newton, numa estrela, tornava-se tão descomunal que apertava os átomos a ponto de disparar uma fusão nuclear era intrigante e provocadora. Era o tipo de condução de pensamento que beirava a filosofia e esse foi um dos pontos que tornou o Cosmos de Neil Degrasse Tyson tão decepcionante. Não só perdeu o lustro de novidade, como teve que voltar seus esforços para fazer propaganda da ciência contra religião e as virtudes de uma sociedade cooperativa, problemas que já existiam na era do Carl Sagan, mas que pareciam definitivamente encaminhados para a extinção. Na verdade, apesar do orçamento não permitir tantos efeitos especiais - ou sequer uma peruca que não seja de fantasia de carnaval para o Alexei Filippenko - e ninguém ter o carisma e os dons pedagógicos do Sagan, a série O Universo (e seus derivados) é muito mais o herdeiro espiritual do que o esforço do astrônomo-lutador (sim, o Tyson foi atleta de luta grecorromana na faculdade!). Pelo menos as abstrações filosóficas estão lá, e sempre que o Lee Smolin for falar das consequências da física, estou disposto a escutar. Mas a Netflix tem em sua programação um especial com ainda mais DNA do Carl no sangue. A singular “Viagem ao Infinito”.


O singular acima, é claro, é pra remeter ao termo singularidade. Mas também porque é embatucante porque a Netflix achou que um especial sobre matemática abstrata iria atrair espectadores suficientes para justificar seu financiamento. Sim, porque esses espaçoespeciais sempre podem apelar para “as chances de um asteroide atingir a Terra” ou “em 2030 poderemos estar mandando uma missão a Marte” para atrair espectadores menos dados a conceitos puramente teóricos, mas Viagem ao Infinito deve soar para a maioria dos espectadores como matéria escolar, da qual eles já tiveram bastante, muito obrigado. Mas eles vão acabar perdendo uma hora e meia de uma fascinante jornada não apenas sobre o que é o infinito, mas o que SIGNIFICA não ter começo e nem fim.


Pouca coisa se parece tanto com filosofia quanto matemática abstrata, e mesmo os conceitos mais simples e fáceis de compreender ali destilados são provocantes. A equação “infinito + infinito = infinito”, ao se subtrair o infinito de cada lado do sinal de igual, leva à conclusão matemática de que “infinito = 0”. O que o programa já havia insinuado ao demonstrar - com ótimas animações imitando o estilo dos anos 30 - que o dobro de infinito é igual a infinito, e nova dobra leva ao mesmo. Ser tudo é o mesmo que ser nada, como já dizia aquele ditado sobre magia: é o espaço vazio em torno de nós que nos dá forma. Só é possível SER alguma coisa se formos finitos.


Viagem ao Infinito é uma produção barata, mas não tanto quanto O Universo. Afinal, tem até bem cuidadas animações simulando as analógicas da era do art-decó, mas também se escora principalmente em cientistas falando, de forma bem pedagógica e editada. Afinal, quem pode resistir a uma série sobre matemática avançada e filosofia em que um astrofísico conta “quando eu tinha 10 anos, eu tive consciência da vastidão do espaço. De como tudo era numa escala incompreensível e indiferente. Com esse conhecimento, por que nos preocupamos em levantar da cama, ir ao dentista, manter a casa arrumada, trabalhar… qual o sentido disso tudo? Aí eu me apaixonei”.







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