maio 06, 2024

Arte pela Arte

Quando eu fui visitar o meu compadre Zé no ano passado, tirei uma foto da praça central de Paraty bastante atraente. Melhor ainda ficou depois que acertei a perspectiva, com os lindos sobrados mostrando linhas paralelas. E mais ainda depois que, no editor do celular, cliquei num necessário, porém feio, latão laranja de lixo, e o apaguei, deixando a cena bucólica e simétrica. 





Fã de tecnologia que sou, mostrei o resultado final ao meu compadre e me preparei para uma nova captura da Procissão do Fogaréu com o fiel celular. Zé, então, com seu jeito contrariador dele, não resistiu a um comentário sobre a pretensa foto, “você sabe que isso não é real, não é?”. Ao que eu respondi, “cara, vou te contar um segredo. Fotos NUNCA foram reais”.


Também lá nos meus 22 anos, por causa de uma moça que estava querendo se tornar atriz, li um texto que ela me passou do curso que ela fazia com a Bia Lessa. Se não me engano, era Diderot, dizendo que o ator perfeito não participava da vida, apenas a observava nas outras pessoas para poder imitar como elas reagiam às emoções - uma ideia contraintuitiva face ao senso geral de que artistas devem viver intensamente para aprender sobre a natureza humana, conceito que o Stanislavsky codificou e fez a fortuna de muita gente, a começar pelo Lee Strasberg.


Eu me lembro de ter tentado explicar à Rita - esse era o nome da moça - que a vida não é um filme ou peça. Que um ator tinha que expressar em um único instante o que no dia a dia vemos espalhado por diversos momentos, entrecortados às vezes por diversas outras preocupações e alegrias rotineiras e mesquinhas. Ela concordou e me levou ao encontro com a Bia Lessa, mas quando ia vencer a timidez - eu nem sequer estava inscrito no curso, afinal -b ela mudou de assunto e começou a falar sobre o gato de Schrodinger, não me lembro por quê. Talvez porque física quântica estivesse em voga entre artistas na época, embora  não exatamente física quântica, só o conceito de que o observador altera o observado.





Eu podia ter explicado meu ponto de vista pra Rita - e até pra Bia Lessa - bem mais facilmente se me lembrasse das aulas do meu ótimo professor de português que, falando de arte moderna, mostrou aquele quadro do Magritte, A Traição das Imagens. É uma pintura de um cachimbo com a inscrição “Isto não é um cachimbo” (em francês, é claro). O Zé Paulo então, perguntou pros alunos por que aquilo não era um cachimbo e levou um bom tempo até alguém - não eu, snif - respondeu “porque é a pintura de um cachimbo”.


Porque arte não é real. Porque a realidade, apesar do que os reaças e fãs de Ayn Rand possam achar, é uma experiência subjetiva. Vivemos numa realidade virtual criada em nosso cérebro pelos nossos sentidos. Pessoas que nasceram cegas, ou perderam a visão muito cedo, quando voltam a enxergar têm que passar ainda muito tempo andando de bengala branca. Porque precisam aprender a entender o que estão vendo. Há casos inclusive de gente que recupera a visão, mas permanece na prática cega porque, como acontece com muita coisa que não aprendemos quando ainda jovens, eles não conseguem jamais conectar aquelas imagens que lhes chegam à mente com o mundo em que caminham.


Na semana passada, enquanto caminhava pelo Aterro, voltando a pé para casa como gosto de fazer, privilegiado (literalmente) que sou de morar na Zona Sul e trabalhar na Cidade, vi a lua nascendo, saquei o celular e tirei a foto abaixo. Há quase 40 anos tirei uma parecida, numa parada no interior da Bahia, numa viagem em ônibus de rua até Fortaleza. Pra isso tive que usar minha velha Exa IIA, que herdara do meu pai, bem como sua teleobjetiva de 200 mm (com mofo nas lentes). Dentro da câmera, um rolo de um dos primeiros filmes de grão tabular lançados pro consumidor final (embora na época eu nem soubesse o que era isso), um Kodak VR (não me lembro se 100 ou 200). Tive que improvisar suporte pra tele com uma pedra, apoiei a câmera num meio-fio e fiquei segurando o disparador, sem nem ao menos conseguir ver a cena, a não ser todo torto antes, por 10 segundos. 





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Como vocês podem ver, tirar uma foto dessas em 1984 exigia um equipamento caro (ou velho e herdado), conhecimento prático e teórico de fotografia, sorte e dedicação. Ficou tão impressionante e diferente que fiz um poster dela e está pendurado até hoje na minha sala. Quando cheguei no trabalho da loja que ampliou, que era do lado, uma colega também achou tão destacada que pediu o negativo pra fazer uma cópia. Já a versão 2024 exigiu apenas um (também valioso) telefone. Mas mesmo assim, apesar de todo o auxílio tecnológico, esse não é o elemento decisivo. Basta ver as duas imagens pra se perceber que tem alguém aí que GOSTA dessa composição.


Um amigo meu em rede social, quando começamos a postar as fotos da lua, como sói acontecer sempre que ela nasce avermelhada e ilusoriamente grande no horizonte, ao ver as minhas, comentou apenas que meu celular era muito bom e riu quando eu falei - é verdade, um tanto ironicamente - que o fotógrafo era melhor. Mas em qualquer momento de criação, pensado como arte ou não, existe uma série de escolhas. No caso dessas fotos, por exemplo. Quando a lua começou a nascer, dirigi-me imediatamente à foz do Carioca, porque sei que que o rio entrando na direção da terra providencia um melhor caminho aquático para o rastro luminoso selenita. Também é cercado por arbustos, que providenciam o verde para dar algum contraste na foto. E ainda foi preciso fechar a íris para que o céu não ficasse claro demais, mas não tanto que tirasse os arbustos da imagem. E escolher a lente e o enquadramento.


Diz uma anedota que um famoso diretor de cinema, compromissado com a adaptação para as telas de uma bem-sucedida peça, foi assisti-la. O também famoso diretor teatral, ao encontrá-lo, teria comentado “vocês de cinema são muito complicados. Se eu fosse filmar essa peça, eu poria a câmera numa poltrona e deixaria a encenação correr”, ao que o seu correspondente da sétima arte teria retrucado, “ah, certo… mas EM QUAL POLTRONA você poria a câmera?”


Se os editores fotográficos hoje geram cenas bem diferentes das registradas nos sensores, eles estão traindo quem? Quando eu olhava para o casario de Paraty, eu só via a beleza das casas. Minha mente nem registrava aquele latão de lixo laranja. Se estivéssemos na época das câmeras que não tiravam fotos noturnas sem ajuda de tripés e outros subterfúgios, eu a teria guardado na memória sem aquele latão e ela teria sido a verdade para mim e assim que eu a tentaria transmitir se, digamos, tentasse evocá-la numa pintura anos depois. Se é verdade que editores de imagem generativos e inteligências artificial podem danificar o fotojornalismo, são apenas mais e mais democráticas ferramentas para produção artística. Segundo meu amigo cineasta Zé José, antes do terceiro milênio, menos de 200 pessoas tinham dirigido um filme no Brasil. E então passou a ser digital.


Enquanto houver uma escolha a ser feita e um assunto sobre o qual se queira discorrer, arte vai continuar sendo uma inverdade, uma mentira, um engodo que nos envolve e nos emociona, com a qual sofremos, amamos e aprendemos a viver. Como a própria realidade, que existe para nós apenas em nossa mente e só a criatividade consegue transmitir a outro ser humano. Porque, em arte, a inverdade é a única realidade.


abril 23, 2024

Por Que Homens Acham Que Sua Missão no Mundo é Comer o Máximo Possível de Mulheres

  (Spoiler: não é pelo prazer do sexo)


Meus amigos de Caralivro insistem em ler feiquenios e raciocínios simplórios e literais dessas páginas conservadoras viralizando o que naquelas plagas passa por inteligência e cultura (céus, tem saites e vocetubos de Cavaleiros Templários!). O modelo deles, é claro, é o Olavo de Carvalho, que normalmente é jogado no mesmo saco de seus seguidores (ou devo dizer acepipes, como o assecla que chegou a ministro da educação?) pelo povo que não se deixa impressionar por suas falácias. O que é um erro crasso, sobre o qual falo depois em outro textão. Este é pra falar da minha galera que não resiste a postar 1 comentário provocador no Caralivro de influenciadores fascistas com milhares de seguidores concordatários, o que leva o algoritmo do Feice a jogar a postagem na minha Linha do Tempo.


A postagem do reaça era sobre como homens PRECISAM abandonar as mulheres que venham a traí-los. Não o contrário, porque mancebos podem ceder a uma tentação sem deixarem de amar sua parceira, sem maiores problemas. Mas já as mulheres, quando resolvem pular a cerca é porque querem demonstrar que o amante é melhor do que o seu macho em tudo, é porque não têm mais nenhum amor,  querem humilhar e expor ao escárnio seu companheiro. Uma amiga minha comentou que esse pensamento é um coletivo de estultícias, o que fez o algoritmo me expor o que, em verdade, é um assombroso assomo do raciocínio machista da extrema-direita. Porque os apavorantes piores pesadelos deles sempre incluem exatamente isso: fêmeas sexualmente independentes.


Elas os aterroriza por viverem eles num mundo onde todos os jogos são de soma zero. Toda relação humana é uma relação de poder, mas podem todos sair ganhando se  estiverem a fim de colaborar. Se você só raciocina em termos de ganhadores e perdedores, somando-os você obtém zero - daí o termo. A diferença é como fazer uma vaquinha pra comprar uma bola ou dar um jeito de conseguir sozinho a grana pra obrigar todo o mundo a ter que aturá-lo e escalá-lo como o dono do time. Até o dia que não aguentarem mais e fizerem uma vaquinha pra comprar uma bola e deixar você de  fora. Nem sei mais se essa metáfora faz sentido numa era em que lindas bolas de couro sintético feitas na China custam menos do que uma Dente de Leite na minha época, mas textão sobre a economia industrial na beira da era pós-escassez fica pra outro dia.


Não adianta tentar escapar dizendo o quanto você é zen: toda relação humana é de poder e tendemos a nos tornar amigos daqueles que nos admiram ou que admiramos e nos julgam iguais. A maneira como seu chefe, que inegavelmente tem mais poder do que você, o trata, vai dizer quase tudo sobre o clima no seu local de trabalho. As maiores demonstrações de poder costumam vir, pouco surpreendentemente, do pessoal mais inseguro. Ao mesmo tempo, essa mesma antipática criatura muitas vezes é a mesma que confunde vida profissional com vida pessoal, pois insegurança e falta de socialização costumam andar juntas. Muitos funcionários tornam-se cúmplices, ou por serem mesquinhos aproveitadores, ou por serem igualmente inseguros e valorizarem associações com superiores hierárquicos, ou simplesmente por síndrome de Estocolmo, que não precisa de terroristas literais. Basta um relacionamento pessoal ou profissional. Todo o mundo teve um chefe de esporros homéricos e que  não quer voltar pra casa e gosta muito de organizar comemorações - muitas vezes constrangedoras -  no local de trabalho.


E qual é a escala que mede o índice de sucesso de uma pessoa, que dá a ela uma aura impositiva de respeito, de poder? Na nossa sociedade, provavelmente, é a capacidade dos sujeito - pelo menos do sexo masculino - em conseguir sexo em quantidade com parceiras que preencham os padrões de qualidade gerais, ou pelo menos de sua comunidade. Mais do que fama e dinheiro - ambos são apenas instrumentos. Como o famosamente narcisista Donald Trump, profunda e confessadamente obcecado com status, já declarou em seus livros, o que importa numa transação não é ganhar a grana, mas mostrar ser capaz de amealhá-la. É ser o vencedor! 


Isso é porque, na verdade, RESPEITO é uma mercadoria mais preciosa do que dinheiro.  Você pode comprar dinheiro com respeito, mas não respeito com dinheiro. Ainda mais numa época em que uma migalha de respeito o capacita a ter seu próprio canal de vocetubo, instagram, declarar-se influenciador e ganhar a vida apenas explorando esse recurso tão valioso. Em compensação, lembre do quanto Eike Batista nunca se impôs, apesar de toda a fortuna que herdou e, durante um certo tempo, multiplicou. E pouco ajudou no seu caso ter se casado com uma bela mulher famosamente apaixonada por outro e que o largou para se amigar com um consideravelmente menos financeiramente dotado bombeiro. Que comecem as piadas sobre dotes e afins.


Todos nós temos de alguma forma inculcado esse julgamento de valor pelas habilidades heterossexuais dos homens. Sim, heterossexuais - daí mais um motivo para tanto desprezo por gays. É por isso que gostamos tanto de escancarar nossas pretensas façanhas amorosas. Mas, entre a direita, com muito menos imaginação e consequente consideração por assuntos mais metafísicos e alternativos, essa escala de respeito atinge níveis imanes de paranoia. 


É assim que, em seus olhos, uma mulher não trai seu companheiro por aventura, carência, química, atração, curiosidade, ou mesmo por amor. Não, o que ela está fazendo é mostrar ao seu homem - e, caso venha a saber, seus conhecidos - é um pobre coitado, betaboy, incapaz de satisfazer sua medalha de honra ao mérito. Um Eike Batista sem nem ao menos uma Ferrari. O problema não é terminar um relacionamento amoroso (que, segundo alguns neurocientistas, é a mesma química de largar cigarro ou heroína), mas espezinhar o respeito que o sujeito comanda, expô-lo ao ridículo, minar sua hombridade, obliterar seu status.


A postagem acredita que não é esse o caso dos homens quando traem suas mulheres. Afinal de contas, a medida do sucesso feminino não é pela quantidade de sexo que consegue, mas de matrimônios. Afinal de contas, ELA é o prêmio. Se ela quiser sexo, basta se aproximar de algum macho. Nenhum recusa um troféu de “empregado do mês”, imagina uma conquista. É por isso que na comunidade incel - os caras que não conseguem ter atvidades sexuais que envolvam  outras pessoas - elas são conhecidas como as “guardiãs dos portões”. É a elas que cabe decidir a quem se abrirão, abrindo  também  as portas do sucesso e do respeito.


Portanto, as mulheres não podem ser julgadas pela quantidade e qualidade de sexo que consigam, uma vez que elas são o objetivo desse jogo. Sim, porque é um jogo. Sexo deixa de ser intimidade, diversão, afeto, aventura e torna-se uma obrigação, um dever de casa. É por isso que os incels se tornam tão misóginos e têm tanta  dificuldade em terem um relacionamento. Não é isso  que eles querem, é uma busca por afirmação, é um símbolo de status. E, para as mulheres, este é medido pelo homem que consegue como marido. Que vai sustentá-la, ideia que persiste subconscientemente mesmo nesta época em  que existe uma boa chance de que suas companheiras ganhem mais do que eles.


Assim, se ela for traída, desde que ele não a largue, não importa. Pelo contrário, se ele  tem amantes atraentes, só aumenta a medida dele, o que, por consequência, também a valoriza. Afinal, tendo tantas à disposição, foi com ela que ele decidiu montar um lar. Melhor do que ser vista como a esposa daquele cara que está com ela porque é a única que ele jamais conseguiu.


Mas não terminam aí  as revelações da  postagem. É interessante notar,  como já disse acima, que o sujeito não vê possível  uma mulher trair alguém  por atração, aventura, carẽncia, ou mesmo por se apaixonar. Porque, no fundo, eles as enxergam como seres  sem  iniciativa. Uma moça compromissada permanecerá assim por ter conseguido seu objetivo principal e deste estado só sairá por ódio. Não existe amor nesses relacionamentos, apenas comodidade, busca por respeito e ódio. 


Se a mulher é um objeto, um prêmio, ela não tem agenda própria. Seu único universo  é seu homem e uma eventual traição é para atingi-lo, não por algum motivo dela. E, confirmando a visão narcisista de mundo do postador, também não existe o outro. Não existe a sedução do outro, não existe a atração que o outro  exerce, não  existe o  amor  que o outro desperta ou sente. Não há um outro, tudo que existe é ele e o respeito que ele impõe.  Os outros são apenas extensões dele e de sua posição no mundo, de sua autoestima. Não lhe passa pela cabeça que, digamos, o Brad Pitt  ligando  todo o dia para a sua mulher declarando seu amor e lhe  mandando presentes possa talvez,  apenas talvez,  levá-la a considerar  uma  inconsequente noite de aventura.


É essa a base do neoliberalismo, do objetivismo, do fascismo. Não existem outros. Existem  apenas eu e  meu status. Não existe empatia.  Não existe coletividade. A sociedade existe para me servir. O mundo é apenas uma extensão de meus desejos. Uma visão imatura de mundo, sexualidade e sociedade. Uma visão  tchutchuca,  uma  visão sem humor, sem afeto. Uma visão sem imaginação de como as coisas possam ser diferentes. É por isso que é tão importante mudar a cultura quanto a femininismo,  homofobia e alteridade. É  por isso que esses assuntos não são mimimi ou vitimismo.  Porque o grande objetivo desses movimentos inclusivos é fazer os indivíduos enxergarem o outro. Religar, como  na verdadeira concepção de religião e não a  simplificação de um super-herói que mora no  céu pra manter o ego vivo mesmo após a morte do corpo. Mudar essa concepção é tão importante porque depois que o sujeito perceber o outro, o resto, como uma fila de dominós, vem todo junto.




























Warrior - A Série

 A Netflix adquiriu “Warrior” do Cinemax e imediatamente começou a tentar me empurrar de qualquer forma, avisando que estava entre as séries mais vistas e pondo uma cena inteira passando insistentemente na tela inicial. Sim, eu sei, gosto de tirar onda que uso a Netflix pra ver Viagem ao Infinito e filmes asiáticos premiados, mas o algoritmo sabe direitinho que eu adoro produções com cara e impressionante direção de arte, porradaria em som surround e deslumbrante fotografia. Na verdade, é só para curtir a qualidade da minha imensa tevê QLED e minha avançada soundbar surround Atmos, ok?


Mas eu só comecei a ver Warrior depois que julguei familiar o rosto do chinês abusado que protagonizava a cena teaser. Era o Andrew Koji, que embolsou o “Sêneca - Da Criação de Terremotos”, que vi no FestRio do ano passado. A Gricel e o Sílvio me contaram que já conheciam o vivente de outros estrímens, mas para mim era um completo estranho. Seu centurião irascível, porém completamente dedicado ao cumprimento de sua missão, passou de mecanismo da trama a personagem graças ao seu olhar implacável e, por que não dizer, sua sobreatuação, com frases entredentes, rosnadas e saindo aparentemente de dentes rangendo. Contrastando com a hipocrisia do filósofo rico e título de filma, e do resto da galera que povoa o longa, sua coerência interna em busca de um objetivo é louvável em sua abjeção. Ele é o único na história que parece saber o que quer, ainda que contribuindo para a disseminação do mal que aparentemente deixou os outros habitantes da fita sem saber o que fazer, discutindo e produzindo (má) arte enquanto Nero (aparentemente uma metáfora para o Trump) taca (literalmente, mas em outra época) fogo em tudo.


A série já tem alguns anos e o Koji parece bem menos impressionante. Ainda que o protagonista de Warrior seja um construto para agradar espectadores, aquele cara fodão que fala “fucking” a cada 3 palavras, distribuindo respostas cínicas de efeito com mais velocidade do que seus fulminantes golpes, mas que, no fundo, tem bom coração e bons valores. O resto do elenco também não vai levar nenhum memorável prêmio de atuação, até porque nós já os vimos antes - e muitas vezes. Convencionais como a trama, começar a ver Warrior é como já pegar uma série a partir do meio. A familiaridade e previsibilidade do pessoal são ótimos companheiros para noites para refrescar a cuca. Termo anacrônico que utilizei porque a reconstrução de época obedece às leis da simplificação para o supostamente idiota público. Um ou outro detalhe de época para capturar a atenção e todo o mundo se comportando de uma maneira moderna (ou caricatural). A modernidade de uma moça, casada por interesse, mas incoerentemente sexualmente ousada e pintora de uma modernidade singular para a época é mais uma daquelas convenções de que não fazer as coisas parecerem como se passadas hoje em dia vai soar alienígena demais para atrair as plateias atuais. É assim que vemos batalhas em que bestas são usadas como metralhadoras e João sem Terra tem barcaças de desembarque.


Bem, mas chega de falar mal, afinal já cheguei ao episódio 4, muito mais do que a maioria das coisas que começo a assistir. Koji não rosna entredentes aqui - mesmo quando deveria - mas está ótimo nas coreografias de luta e não compromete, apesar de parecer mais um integrante de gangue de filme do Tarantino do que da Chinatown de 1880. A produção é bela e refinada. Como em todas as ficções dessa estirpe, há um puteiro barato em que as meninas mais feias no mundo real estariam casadas com algum político 40 anos mais velho (ei, aconteceu isso com a pintora!), mas que beleza de puteiro barato. Os cenários são lindos e parecem caros. Não veja isso na tela do seu computador ou telefone.


Enfim, o mundo não mudou, mas se você estiver sem espírito de embarcar em alguma aventura desconhecida, mas dá preferência praquelas conhecidas, ainda que disfarçada de peça de época, Warrior é uma boa pedida. Já disse que as cenas de luta são  ótimas?



 

Uma Viagem ao Infinito

  Fale com algum nerd que já fosse senciente lá pelo começo dos anos 80 sobre a primeira série Cosmos, e eles imediatamente se atirarão ao chão, cobrindo-se de cinzas e lamuriando-se que não são dignos. Naquela época ninguém sabia muito sobre astrofísica e os escritores de ficção científica que gostavam de explicar do que estavam falando estavam mais interessados em tecnologia do que nas coisas básicas do espaço. Pouquíssimos garotos esquisitos, provavelmente alvos de valentões, tinham realmente boas informações sobre buracos negros ou as visões cosmoteológicas de Kepler (só aprendíamos na escola as leis, impessoalmente, aquelas sobre os planetas transladarem ao redor do Sol em elipses, com a velocidade em cada trecho proporcional ao arco da curva). 


O mais fascinante de tudo era que as leis que regiam o Universo eram as mesmas de todos os lugares, com as quais estávamos completamente familiarizados, mas levadas ao extremo pela escala das massas e distâncias pantagruélicas. A ideia, por exemplo, de que a força que fez a maçã cair (ou não) aos pés de Newton, numa estrela, tornava-se tão descomunal que apertava os átomos a ponto de disparar uma fusão nuclear era intrigante e provocadora. Era o tipo de condução de pensamento que beirava a filosofia e esse foi um dos pontos que tornou o Cosmos de Neil Degrasse Tyson tão decepcionante. Não só perdeu o lustro de novidade, como teve que voltar seus esforços para fazer propaganda da ciência contra religião e as virtudes de uma sociedade cooperativa, problemas que já existiam na era do Carl Sagan, mas que pareciam definitivamente encaminhados para a extinção. Na verdade, apesar do orçamento não permitir tantos efeitos especiais - ou sequer uma peruca que não seja de fantasia de carnaval para o Alexei Filippenko - e ninguém ter o carisma e os dons pedagógicos do Sagan, a série O Universo (e seus derivados) é muito mais o herdeiro espiritual do que o esforço do astrônomo-lutador (sim, o Tyson foi atleta de luta grecorromana na faculdade!). Pelo menos as abstrações filosóficas estão lá, e sempre que o Lee Smolin for falar das consequências da física, estou disposto a escutar. Mas a Netflix tem em sua programação um especial com ainda mais DNA do Carl no sangue. A singular “Viagem ao Infinito”.


O singular acima, é claro, é pra remeter ao termo singularidade. Mas também porque é embatucante porque a Netflix achou que um especial sobre matemática abstrata iria atrair espectadores suficientes para justificar seu financiamento. Sim, porque esses espaçoespeciais sempre podem apelar para “as chances de um asteroide atingir a Terra” ou “em 2030 poderemos estar mandando uma missão a Marte” para atrair espectadores menos dados a conceitos puramente teóricos, mas Viagem ao Infinito deve soar para a maioria dos espectadores como matéria escolar, da qual eles já tiveram bastante, muito obrigado. Mas eles vão acabar perdendo uma hora e meia de uma fascinante jornada não apenas sobre o que é o infinito, mas o que SIGNIFICA não ter começo e nem fim.


Pouca coisa se parece tanto com filosofia quanto matemática abstrata, e mesmo os conceitos mais simples e fáceis de compreender ali destilados são provocantes. A equação “infinito + infinito = infinito”, ao se subtrair o infinito de cada lado do sinal de igual, leva à conclusão matemática de que “infinito = 0”. O que o programa já havia insinuado ao demonstrar - com ótimas animações imitando o estilo dos anos 30 - que o dobro de infinito é igual a infinito, e nova dobra leva ao mesmo. Ser tudo é o mesmo que ser nada, como já dizia aquele ditado sobre magia: é o espaço vazio em torno de nós que nos dá forma. Só é possível SER alguma coisa se formos finitos.


Viagem ao Infinito é uma produção barata, mas não tanto quanto O Universo. Afinal, tem até bem cuidadas animações simulando as analógicas da era do art-decó, mas também se escora principalmente em cientistas falando, de forma bem pedagógica e editada. Afinal, quem pode resistir a uma série sobre matemática avançada e filosofia em que um astrofísico conta “quando eu tinha 10 anos, eu tive consciência da vastidão do espaço. De como tudo era numa escala incompreensível e indiferente. Com esse conhecimento, por que nos preocupamos em levantar da cama, ir ao dentista, manter a casa arrumada, trabalhar… qual o sentido disso tudo? Aí eu me apaixonei”.







dezembro 28, 2021

Pra Super Herois e Cultura Pop em Geral, Conhecimento é Sinônimo de Fraqueza

 Eu não lembro das palavras exatas, mas era algo no sentido de “muito estudo e dedicação”. Estou falando do primeiro filme do dr. Estranho. Benedict Cumberbatch estava querendo saber como se tornar um feiticeiro e Mordo pergunta a ele como ele se tornou um respeitado cirurgião e o Strange responde, “com  muito estudo e dedicação”. Mordo ri e diz que terá que ser da mesma forma.


Esse é um dos meus momentos favoritos dos filmes da Marvel. Resume o espírito ligeiramente subversivo desse universo cinematográfico, honrando a tradição dos quadrinhos do Stan Lee. A subversão é que Stephen Strange irá se tornar o Mago Supremo da Terra não porque os deuses decidiram que seria divertido dar poderes de nascença praquele sujeito, mas porque o vivente vai meter a cara nos livros e tomar muita porrada (metafórica) até aprender como essa coisa de magia funciona.


Pode parecer pouca coisa, mas perto do universo fascista do Zach Snyder e da DC, onde todo o mundo já vem com superpoderes de fábrica e, preferivelmente, de uma família real, é um tremendo adianto. E não adianta lembrar do Batman, porque, como ele mesmo explica na versão de cinema de “Liga da Justiça”, seu superpoder é ser rico. Também posso parecer apenas um nerd discutindo detalhes de universos fictícios que deveria estar em algum vocetubo de jovens virgens cavaleiros templários, mas é um assunto que merece mais atençaõ do que recebe, porque essa cultura pop é que alimentou nas últimas décadas esses mitos neocons, neoliberais, misóginos, anticientíficos, a ponto de um então Ministro da Justiça e hoje candidato a presidente tenta vender uma lei dando ainda mais poderes a policiais afirmando que vai criar agentes como os de filmes policiais americanos (aqueles extremamente realistas).


Stephen Strange tendo que meter a cara nos livros pra passar nos exames vai soar pra muita gente a glorificação da meritocracia utópica dos neoliberais, o que não é verdade porque, em primeiro lugar, está muito mais pra utopia socialista de igualdade de oportunidades e, em segundo lugar, porque os conservadores odeiam a ideia de meritocracia. 


Desde que Alec Guinness contou pro Luke Skywalker que o pai dele era na verdade um cavaleiro jedi (e o avô dele era literalmente um Espírito Santo) e que, por isso, ele deveria derrubar o Imperador, a fantasia do sujeito que, apesar de parecer um mané perdedor, secretamente é o filho-herdeiro-avatar de alguém, destinado a ser o fodão do Universo, tomou as telas, as telinhas, as páginas da cultura de massa e as mentes e almas da imensa maioria da humanidade que se enquadra nessa descrição (mané perdedor, não fodão do Universo). 


Stephen Strange entra para o templo de Vishanti, Hoggoth, Stanlee ou seja lá o que for e seu círculo de amizades, dinheiro e acesso a conhecimento não lhe vão valer de nada. É claro que o conhecimento geral que ele traz de sua vida luxuriante pregressa faria diferença, mas aí estamos entrando em muita sutileza para narrativas mitológicas pop.  Ainda mais que, para compensar, o povo que escreveu a historinha ainda perde um tempinho pra dizer que nem existem vantagens genéticas de maior agilidade ou destreza. Quando o Estranho reclama que não consegue gesticular magicamente (não hipnoticamente, fãs de Mandrake!) porque o acidente de carro que motiva o filme deixou suas mãos e seus dedos inábeis, é revelado que um dos talentosos feiticeiros da área nem dedos tem. Enquanto isso, o maior fenômeno pop deste século, Harry Potter, igualmente ancorado em magia, é um mané perdedor até que, um dia, alguém aparece e diz que ele, secretamente, é filho de um casal de magos e tem poderes que… não posso falar muito por nunca ter lido ou visto Harry Potter (e isso não é motivo de orgulho, embora também não seja de opróbrio), mas vocês já entenderam como a coisa segue.


A meritocracia pregada pelo neoliberalismo e neoconservadorismo é a do Harry Potter, não a do dr. Estranho. Ela não existe para recompensar estudo e dedicação, mas para garantir que aqueles nascidos “especiais” recebam seu quinhão de direito e sua posição superior a dos outros reles mortais. Seus talentos vêm de nascença. Não é por coincidência que essas ideologias neorreaças venham do mesmo berço daquele protestantismo que pregava que Deus já escolheu aqueles que receberão a salvação. Para o pensamento conservador, a presença dos sujeitos esforçados em meio aos titãs “escolhidos” é quase uma ofensa. Pensando em termos de seleção brasileira, comparem o ódio que o esplêndido Dunga, multicampeão, desperta, enquanto o multifracassado (repito, em termos de seleção) Neymar é o ídolo das multidões. Coisas como conhecimento são totalmente inúteis frente à férrea vontade do Predestinado. Quantas fitas você já não assistiu em que os cientistas - aqueles caboclos - ou cabrochas - com décadas envolvidos em pesquisas e leituras - insistem em que alguma coisa é impossível pra chegar o herói e fazer o impensável a que se propôs apenas por sua vontade férrea, fé, ou pelo poder do amor ou algo parecido>


Assim se cria o pensamento anticientífico. Esse povo todo foi treinado desde antes de saber que pensava, logo existia, a crer que opiniões e ideias de pessoas especiais têm total procedência sobre sábios. Os nerds de hoje, então, nem precisam estudar, pois, como vimos, você só precisa saber que é especial. E é claro que você é, com toda sua bagagem cultural e conhecimento de literatura e cinema. Literatura de fantasia  e cinema de super-herói, mas, ei, isso é arte! Você que diz o contrário, aposto que é um desses cientistas que está sempre errado.


Uma ou duas gerações atraś, depois de uma certa idade o que você tinha à disposição de universos fictícios coerentes era destinada a gente com menos de 20 anos, como as HQs da Marvel, ou escassa, como Star Trek. Até uma certa época você nem  encontrava Duna em português. Muito menos Elric de Melniboné (a fantasia que é a antifantasia conservadora tradicional). Então, depois que você ficava viciado em leitura, começava a buscar obras mais complexas. No mundo de hoje em dia os “especiais” podem se perder em infindáveis fantasias exaltando a falta de esforço. Antigamente, nas aventuras espaciais infantojuvenis de Isaac Asimov (ele tinha as adultas também), quem mandava no planeta era o Conselho de Ciências. Os heróis eram cientistas (tradição herdada por Star Trek, onde ser um estudioso não exclui ser um homem de ação). Já hoje em dia eles são os intrusos, tentando se intrometer  entre os superiores predestinados. Que podem  parecer apenas ser uns manés fracassados, mas que estão apenas esperando ser reconhecidos como  os cavaleiros templários de direito que são.


E assim a humanidade caminha. No último Homem-Aranha do cinema, e estou contando uma revelação da fita aqui, o Ned, o melhor amigo do Amigão da Vizinhança, descobre  que, usando o anel do dr. Estranho, consegue abrir portais e manipular magia.  Nada de estudo e dedicação. Ele é um escolhido. Um predestinado. Curiosamente Ned era um  nerd (aliteração!!) que já ajudava o herói com  seus conhecimentos tecnológicos e de informática. Mas, aparentemente, na Marvel de agora, isso não é o bastante para ser amigo de um dos homens superiores desse universo. É preciso ter nascido com seus próprios superpoderes, ou você não é nada, é um alpinista social e genético. Aparentemente mesmo os tímidos conceitos subversivos da Marvel estão sendo limados. Stan Lee deve estar se revirando em seu túmulo.

dezembro 07, 2021

Bond, o Subversivo parte 1

 Na postagem que fiz sobre o Sérgio Moro, afirmei que James Bond, quando apareceu no cinema, era um personagem subversivo. Como o capanga pessoal da Rainha da Inglaterra, servo do mais clássico império colonial europeu, machista comedor  e misógino pode ser subversivo? O homem é um ícone conservador, um fascista com um charme arrebatador, mas um fascista claramente racista. Como assim ele era subversivo?


O Satânico dr. No deve ter batido nas telas com um impacto impressionante. Levado pelo meu pai pra assistir, num festival no velho Coral/Scala, 13 anos depois, me foi um  choque. Naquela época mocinhos cínicos e sexualmente ativos eram Censura 18 anos - e essas coisas não passavam na tevê, pelo menos não num horário assistível para moleques de 10, 11 anos. Ver o mocinho (!!!) calmamente levar pra cama uma vilã (nem um pouco disposta, mas precisando fazê-lo pra manter o plano), imediatamente em seguida pô-la na mão da polícia, armar uma isca para um assassino e aguardá-lo jogando paciência (e tomando uma vodka) e, finalmente, enroscar o silenciador e explicar para o sujeito que ele descarregou a arma  enquanto o enche de tiros foi a realização de velhas fantasias infantis que os filmes nunca levavam até o final. Por boas razões, inclusive, já que isso acabaria levando à cultura pop exaltando o vigilantismo, de Dirty Harry às infindáveis séries policiais em que o herói não  pode agir por motivos políticos, legais ou similares.


A misoginia de Bond também faz hora extra na cena de cama com a cúmplice do assassino. A vilã não está com a menor disposição, mas precisa prosseguir para manter a armadilha para 007. Não parece nem um pouco provável que, nesse clima, o sexo tenha sido bom. Mas James deve ter curtido de montão. Seu objetivo é humilhá-la. Puni-la. É um estupro. Um jogo de poder. E, para adicionar racismo à injúria, ela é a única das amantes do agente secreto que não é branca.


Mas, se a mulher for caucasiana, James Bond está disposto a celebrar sexo por prazer e, neste ponto, já é bem mais subversivo do que todo o cinema americano, onde os casais casados ainda precisavam dormir em camas separadas. Naquela minha apresentação a 007 no Coral/Scala, quando ele ganha um jogo de cartas de altas apostas de uma mulher sexy e misteriosa, só para encontrá-la nua (ok, com uma camisa masculina e salto) em seu quarto em seguida, eu REALMENTE comentei com meu pai, “será que ele não percebe que ela é uma espiã?” E eis que ela NÃO era, supõe-se que tenham tido bom sexo e nunca mais ouvimos falar dela. Aliás, não, Sylvia Trench reaparece em “Moscou contra 007”.


Eu mesmo nunca reparei que a mulher com quem Bond está fazendo um piquenique no começo da segunda fita é a mesma Sylvia Trench. Tudo bem que os criadores não puderam deixar de comentar que ela ficou excitada por ter sido derrotada pelo 007, mas a verdade é que ela é uma mulher independente - inclusive financeiramente -, que frequenta aristocráticos clubes ingleses e que dá pra quem quiser. E sem compromisso. Depois de Moscou contra 007, ela some de vez, mas não deixava de ser, na época, relevante que uma bela mulher tomasse a iniciativa de um relacionamento basicamente sexual, sem ser punida, assassinada ou revelada como espião.


Mas não é essa a subversão à qual eu estava me referindo quando escrevi sobre o Moro. É outra, referente a jogos de poder e posição na sociedade. Mas fica pra próxima postagem.

dezembro 06, 2021

Moro num País Tropical

 Como era óbvio e previsível desde que apareceu nos noticiários, Sérgio Moro apareceu como candidato à presidência. Ninguém ganha uma capa “ele salvou o ano” de uma Veja em sua época ainda relevante em vão. Mais uma vez vão tentar empurrar um messias sem laços com a política tradicional. Pouco importa que ele tenha sido Ministro da Justiça ou que ele seja reconhecidamente um  juiz venal, parcial, que assumiu uma posição politizada num processo que teve que ser anulado por causa disso. A fantasia de imparcialidade cultivada pelos conservadores continua. Em seu provincianismo, essa é a única maneira de se conseguir fazer alguma coisa nesse país. O próprio Provinciano do Paraná esclareceu como funciona esse raciocínio, quando vendeu seu “projeto anticrime” explicando que os policiais poderiam agir como agentes de seriado americano. Esta é a referência, não só de seu público, como dele mesmo. Cultura pop americana. Esse é o preço que se paga pelo conservadorismo provinciano. O pessimismo cínico do pensamento literal e encarquilhado.


Presses pensadores conservadores que gostam de despejar silogismos que nunca passaram perto da teoria dos conjuntos e baseados em fatos altamente questionáveis, o pensamento “comunista” - aí englobados os progressistas, reformistas e liberais - é inerentemente pessimista e agressivo. Nunca estão satisfeitos com nada, não reconhecem valores consagrados pelo tempo e reclamam de tudo. Na verdade, é o contrário. Os cínicos e pessimistas são os conservadores, que não conseguem imaginar que tudo possa melhorar e temem desesperadamente que qualquer movimento faça tudo desabar. Em suma, além do pessimismo, a falta de imaginação também é especialidade da casa. 


Assim, não é à toa que conservadores temem tanto ensino de ciências humanas. A imaginação no poder é o seu grande temor. Sem ela - e com o pessimismo implícito dessa visão de mundo sem opções, só sobra cuidar de si mesmo. E é assim que o egoísmo - a verdadeira raiz de todos os males - não só é cultivado como estimulado - e como MOTOR da sociedade! O pensamento literal é incapaz de compreender que o egoísmo sem limites, por sua própria definição, não pode arrastar junto todo o mundo. Mas esse é um mundo mais simples e compreensível para um raciocínio mais limitado. Ainda vem com o bônus de alavancar os valores familiares tão estimados. Num cenário de cada um por si, em quem mais você pode confiar, além de sua família? Com reservas, é claro. Vamos deixar a discussão de como essa estreiteza de confiança justifica a homofobia (não produzem descendentes confiáveis) e misoginia (mulheres que compram os valores egoístas não se dedicam tanto à criação dos importantíssimos filhos). O papo aqui é o juiz venal vendido como campeão anticorrupção.


Esse egoísmo estrutural não compreende a política tradicional. Conciliação é a essência da vida em sociedade. Mas quando quem não está com você está contra você, a demanda é por messias (qual o plural de messias?). Salvadores imparciais, destituidos de egoísmo e dispostos a quebrar as regras e os limites para consertar as coisas. Porque se este é o melhor dos mundos, é claro que o problema é conjuntural. É só tirar algumas maçãs podres. E quem são as maçãs podres? 


Ora, num mundo apeado em egoísmo e falta de imaginação, é claro que o supremo problema é o atentado contra a propriedade. Tudo se resume a roubo. Parando o roubo, tudo vai ficar bem. E o “roubo” não pode ser do tipo metafórico. Tem que ser, novamente, literal. Ou é um bandido assaltante ou é a corrupção.


A corrupção, é claro, é algum político pedindo propina. A ideia de que ela existe em praticamente todo momento de relações humanas - do bullying à paquera - parece elusivo demais. A ideia de que divulgar conversas gravadas - cuja gravação já seria de pronto proibida - em processos sigilosos NÃO é corrupção pode ser empurrada facilmente porque não houve propriedade privada envolvida. Direitos são entidades etéreas e abstratas, ao contrário de coisas como anjos da guarda.


Sérgio Moro é o anjo da guarda paternal e imparcial. Com o rosto quadrado como um apresentador de telejornal ou super-herói desenhado nos anos 30, tem o físico do rolo, como o pessoal do Pasquim gostava de dizer. Moro se expressa pessimamente e com constantes clichês jurídicos. O que é ainda melhor, depois de décadas de condicionamento pela cultura pop de que pessoas com gostos refinados são vilões pervertidos (e, neste sentido, James Bond foi um personagem subversivo - até Daniel Craig aparecer como um bruto sem o característico elitismo). Sérgio Moro não é um suspeito gênio da retórica - mas olha como usa palavras difíceis. Ele é o  tipo de inteligente confiável.


É assim que se justifica a corrupção. Ele não está avançando sobre a propriedade privada de ninguém, o grande temor conservador. Esse é o custo do pensamento literal e provinciano - o culto ao vigilantismo. Em 2011 viajei pelo Caribe. Logo ao chegar, o povo de lá, ao saber que eu era brasileiro e viera pela Copa, comentou que essa linha havia acabado de adquirir os novos Embraer - muito melhores que os jatos norte-americanos anteriores. Tinham até DVD em cada cadeira (novidade na época, ainda mais em aviões para rotas médias). Todo o mundo queria saber notícias do câncer de garganta do Lula, fato recente então. Os países estavam sendo postos abaixo e reconstruídos - estradas, cassinos, hotéis, resorts, metrôs… tudo construído pela Odebrecht. Para os haitianos, Lula tinha sido “o melhor presidente da história da América Latina”. No Panamá, um dos mais famosos cartões postais, os ônibus ex-escolares americanos, estavam sendo substituídos por veículos brasileiros. O interesse que eu despertava fazia-me sentir um cidadão do verdadeiro primeiro mundo.


No ano seguinte subitamente começaram os golpes - alguns parlamentares, outros literais - contra todos os líderes não-conservadores latinoamericanos. No Brasil, um juiz que fez um curso nos EUA destruiu a Odebrecht e apeou do poder o partido que tanto espalhou a influência brasileira pela região - e pelo mundo, a ponto de nos darem uma Copa e uma Olimpíada. A Embraer foi comprada pela Boeing, embora a parte de melar tudo depois que metade dos funcionários foi demitida não fizesse parte do plano, foi apenas culpa dos 737 caindo frequentemente. Outro motivo pelo qual a Copa fez bem em comprar Embraers. Esse é o famoso soft power. Não rende dinheiro imediatamente. Na verdade, perde-se, a princípio. É um movimento para o futuro. Mas no universo egoísta e patrimonial, é perda de tempo. É preciso o meu agora. É preciso acabar com o roubo e gastar meu dinheiro com esses subdesenvolvidos é corrupção. É preciso eleger alguém acima do bem e do mal e sem envolvimento com a política tradicional. É preciso trazer o juiz corrupto. Ele é do bem. Afinal de contas, a Globo não passava aquele seriado sobre um juiz que saía à noite pra caçar os bandidos que ele não conseguia condenar?


E, assim, temos a mediocridade galopante. O egoísmo alimentando o provincianismo alimentando o egoísmo e a desigualdade. Que alimenta a corrupção e o egoísmo. A falta de imaginação nos impede de pensar em algo mais do que ser um país periférico, desde que nós possamos manter nossa identidade de classe média cosmopolita. Mesmo que esse cosmopolitismo seja frequentar um shopping center em Miami e voltar sem fazer nenhuma amizade. Sérgio Moro é obviamente o candidato da terceira via. É o candidato da falta de opção.






novembro 20, 2021

Viva o Pensamento Renascentista

 Tem um conto do Isaac Asimov, agora eu esqueci qual, sobre um mundo onde as crianças aos 7 anos entram numa máquina que baixa instruções pra cabeça delas e elas saem sabendo ler. Ninguém vai pra escola. Aos 20 anos, a garotada – presumivelmente depois de passar a adolescência toda chapada, imersa em sexo e álcool – volta mais uma vez pro mesmo lugar, dessa vez pra se ligarem numa engenhoca que vai analisar as sinapses e os neurônios dos viventes, decidir pra qual carreira a mente deles é desenhada e eles receberem um daunloude do curso pro qual foram designados.

O protagonista sonha em ser, se não me engano, algum tipo de engenheiro eletrônico, físico ou inventor (ou então “cientista”, naquela vaga definição que envolvem Reed Richards e Peter Parker) e passou sua juventude lendo muitos livros sobre o assunto. No dia em que ele vai lá receber o curso na cabeça, os orientadores lhe explicam que ler sobre o que gostaria de fazer não influencia a máquina, só o que interessa é o que ela decidir. E olha só, apesar do nosso herói ter fama de muito inteligente e dedicado, a traquitana chega à conclusão que o cérebro dele não tem nenhuma aptidão específica pra nada. E a história começa justamente com ele numa Instituição, conversando com um interno veterano, que passa o tempo todo lendo. Aos poucos, isso tudo que contei nos dois primeiros parágrafos vai sendo narrado em flechebeque e, no final do primeiro ato, revela-se que a Instituição é uma “Casa para Débeis Mentais”.

O garoto em quem já investimos nossa simpatia resolve se rebelar e fugir da Casa, e após algumas peripécias, consegue uma entrevista com algumas autoridades, tentando vender a ideia de que as pessoas poderiam aprender por si próprias e assim evitar casos muito comuns em que engenheiros, por exemplo, não sabiam trabalhar com máquinas que tinham aparecido APÓS sua graduação e ficavam restritos a empregos que não a utilizassem. As autoridades rebatem a ideia, o rapaz tem um desmaio e, quando acorda, tudo está resolvido. 

Sim, ao despertar ele dá de cara com seu ex-companheiro de Casa, agora vestido como uma autoridade. Enquanto o garoto se recobrando, ele chegou à conclusão que essa inabilidade das pessoas de se adaptarem às novidades significava que ALGUÉM que não recebera seu conhecimento pelas máquinas era quem inventava esses aparelhos novos. As pessoas criativas. Os inventores e artistas. Aqueles cujo conhecimento e vontade de saber não se enquadram dentro de nenhum campo específico, saca? Mas não basta isso, é preciso também ter iniciativa e gana, por isso a história de internar na casa dos débeis mentais, pra ver se o sujeito se rebela e demonstra vontade de quebrar os paradigmas blablabla etc. Etc. “A maioria das pessoas está satisfeita com o que aprendeu e tem muito orgulho de andar por aí com o crachá exibindo sua profissão, como “cozinheiro registrado” ou “advogado registrado”, explica o antigo parceiro de instituição. O crachá era recebido no dia da Graduação. “Poucos são os que estão a fim de ir além”.

Mas e o que acontecia com quem não demonstrasse iniciativa? O sujeito que gostava de ler explica que estes se tornam os psicólogos, filósofos, sociólogos, antropólogos. Alguém tem que analisar as fitas de cursos, os avanços tecnológicos, as personalidades dos candidatos e desenhar os aprendizados e mesmo as orientações da sociedade. O ex-companheiro do protagonista era, por exemplo, um psicólogo. E assim acaba a história, com final feliz, como normalmente favorecido pelo Asimov (exceto por alguns contos do auge da Guerra Fria).

Lembrei dessa história por conta do nosso ex-ministro da Educação e do eleito, que já várias vezes disseram que brasileiro tem que aprender a ler, escrever e fazer conta e acabar essa história de se estudar Ciências Humanas (1). O problema é que ler e escrever não adianta de nada se a pessoa não conseguir interpretar texto e decorar tabuada não vai ter nenhuma utilidade no mundo das calculadoras se o vivente não souber como funciona uma operação aritmética. Poucas pessoas têm sequer ideia que elas envolvam Teoria dos Conjuntos. E que “lógica” também decorre dela. Sem essa compreensão, vivem num mundo de analogias – e, por consequência, falácias. 

A próxima digressão agora é sobre uma matéria que li outro dia, infelizmente agora não me lembro onde, sobre como entendemos errado a história de que na China os salários são baratos. A imagem de que no Império do Meio há um monte de operários trabalhando em suétechopes, ganhando duas mariolas por dia seria, segundo o articulista, completamente ultrapassada. Não só já não existem tantos trabalhadores miseráveis recebendo consideravelmente menos que os assínicos, como uma imensa parte desse tipo de labor atualmente é feita por robôs. As remunerações baratas que fazem valer a pena ter uma fábrica num lugar praonde a rota transpolar é mais curta seriam as dos sujeitos formados com títulos universitários, como os engenheiros, analistas de sistemas, programadores. Isso porque na América, com os custos das universidades decentes em centenas de milhares de dólares, os ordenados desse povo, ainda que abaixo do que os pais recebiam, é bem acima daqueles dos chineses educados em faculdades estatais comunistas.

Mas o mais surpreendente é que o uso desses sujeitos formados não é pra novos desenvolvimentos. O uso desses universitários é basicamente técnico. Seus títulos na verdade os credenciam a ser os gerentes, supervisores, ou até mesmo os zeladores das linhas de produção. São os viventes que vão fazer os ajustes nas máquinas, na engenharia da produção, dinamizar o throughput, flexibilizar a distribuição e vários outros clichês corporativos. Porque esses diplomas de “exatas” e afins se tornaram, nesse mundo de robôs e algoritmos, exatamente isso – um curso técnico mais profundo. É aquele efeito que você já deve ter visto de algum conhecido, o bancário que faz Administração ou Economia à noite pra poder subir um nível salarial, ou o concursado que faz Direito pro mesmo fim. Já escrevi aqui inclusive sobre a garotada mais bem-nascida que vai se embrenhar nas leis não pra advogar ou se especializar em profundas análises dos códigos civis e penais, mas sim pra fazer concurso pra juiz e disparar sentenças como aprendidas na faculdade, porque não aprenderam a pensar, saindo direto dos bancos escolares, viciados em pensar que estudar serve apenas para conseguir as notas necessárias. E isso, é claro, não se aplica apenas a juízes, mas a gente em todos os ramos desses conhecimentos “exatos”.

E mesmo essa tecnização universitária, criando montes de gerenciadores de rotina, também tem um prazo de validade. Assim como a robotização destruiu os operários de fábricas, a informatização está começando a destruir os velhos empregos de classe média. Hoje em dia bancos funcionam praticamente com atendentes de telemarketing e gerentes. Todos aqueles cargos clericais se foram. E mesmo as atribuição dos gerentes não passam de administração da rotina. Algoritmos de mesas de crédito decidem a quem e como devem ser feitos os empréstimos, algoritmos de mesas de investimentos decidem onde e em quem aplicar e assim por diante. Tribunais funcionam com metade dos funcionários, pois não há mais necessidade de um batalhão de datilógrafos pra endereçar as intimações. Artefinalistas, letristas, tipógrafos, esse tipo de gente não mais povoa agências de publicidade. Essas tomadas de decisão ou habilidades artísticas básicas já podem ser feitas por qualquer um que saiba usar um computador. Quem desejar realmente um trabalho à prova de futuro não pode ser o operador desses instrumentos. Tem que ser o sujeito que desenha ou programa esses instrumentos. Ou quem toma as decisões complexas, que vão formatar os algoritmos para as decisões mais simples. Os ANALISTAS.

Como esse texto já está prolixo mesmo, é hora então de contar outra historinha (esse negócio de gente contando uma história por cima da outra me lembra A COMPANHIA DOS LOBOS). E, por falar em contos de fada realistas ingleses do final dos anos 80, início dos 90, a historinha que vou contar agora é sobre o Neil Gaiman. O inglês gótico lá pelo meio dos anos Zero (sim, século XXI), recebeu um convite do governo chinês pruma convenção de nerds. Você sabe, aqueles encontros de fãs e autores de fantasia, ficção científica, histórias pseudomedievais, super-heróis e essas coisas todas. O Gaiman jogou seu sobretudo e suas roupas pretas na mala e se mandou lá pro outro lado do mundo. E estava animado o negócio. Tanto que, a certa hora, perguntou lá pros representantes do governo que tinham ido recebê-lo, “sabe, eu fiquei surpreso de vocês terem me chamado pressa convenção. Não faz muito tempo vocês nem publicavam meus livros, porque eram pueris fantasias burguesas e em nada contribuíam para formar o cidadão”. 

Os representantes do governo concordaram e explicaram pro inglês cabeludo o que tinha levado-os a mudar de ideia: “Bem, sr. Gaiman, estamos muito felizes de finalmente encontrá-lo face a face. Durante muito tempo o senhor foi um escritor fascinante... fascinante mas que julgávamos pouco poder oferecer para moldar o caráter de um útil cidadão de nossa milenar nação. Mas, nos últimos anos, começamos a perceber que formávamos engenheiros, programadores e desainers muito bons para fazer engenharia reversa de outros produtos, ou mesmo simplificar meios de produção de certas mercadorias, barateando seu custo... mas não temos grandes inovadores. Faltam-nos aqueles criadores visionários que impulsionam o grande salto para a frente... Então, começamos a fazer uma pesquisa, no estilo que vocês anglo-saxões chamariam de analytics ou big data. Esquadrinhamos os fatos conhecidos das vidas desses grandes inovadores e chegamos a uma surpreendente conclusão. Essas pessoas costumam ter tido durante a infância uma grande atração por histórias fantásticas e de ficção científica. Devoraram livros e livros – e filmes e afins em períodos mais recentes – relativos a mundos que nunca existiram. Não somos inflexíveis, sr. Gaiman, e aprendemos bastante rapidamente com nossos equívocos. Portanto, em vez de desencorajar esse tipo de literatura e arte, passamos em pouco tempo a encorajá-la, na esperança de forjar com ideias retiradas de universos alternativos o futuro do Império do Meio” (provavelmente não com essas palavras, é claro).

Isso porque esse tipo de mente criativa precisa de mais estímulo e até uma certa idade eles não têm compreensão suficiente pra pegar um livro sobre a História da Riqueza do Homem. Então partem pra fantasia, que requer menos conhecimento factual sobre o mundo real. Aqueles que desde cedo saem em uma jornada pra conhecer as pessoas nesse mundo real, então, fazem melhor ainda. Porque a mente humana, pra ser produtiva, precisa de estímulo. E ensinar a ler, escrever e fazer contas, a seguir as regras exatas das “exatas” sem questioná-las, sem delas duvidar, sem desafiá-las, é a estrada da mediocridade. Um programa de OCR lê mais rápido e eficientemente do que a imensa maioria das pessoas. Uma calculadora de 10 reais faz contas melhor do que qualquer gênio matemático. Ler e escrever não é ensinar a fazer um texto; fazer contas não é matemática. Ambas são formas de arte, literatura e matemática pura, essa particularmente uma ciência abstrata e praticamente irreconhecível pelos fãs do tecnicismo.

Bill Gates largou o curso de Direito em Harvard pra ser o homem mais rico do mundo. Marissa Mayer, ex-executiva top do Google e ex-presidente do Yahoo, “ingressou na Universidade de Stanford pretendendo se tornar neurocirurgiã pediátrica, mas trocou o curso de neurociência pediátrica para sistemas simbólicos, que combinava filosofia, psicologia cognitiva, linguística e ciência da computação”. Steve Jobs famosamente nunca se formou, apesar do que seus pais adotivos tinham prometido à sua mãe biológica (ela não ficou chateada com isso). Ele chegou a entrar numa faculdade, mas cursou apenas 6 meses e obteve uma permissão para assistir aulas livremente, por 18 meses, como Observador. Segundo o próprio, um dos cursos que mais o impressionou e influenciou foi Caligrafia. Nas palavras do sr. Maçã, "aprendi sobre letras com serifas e sem serifas, sobre variar a quantidade de espaço entre diferentes combinações de letras, sobre o que torna uma tipografia excelente. Era lindo, histórico, artisticamente sutil de uma maneira que a ciência não pode captar, e achei fantástico”. Bem-vindos ao povo que, no mundo do conto do Asimov, iria parar na “Casa”. Esse é o tipo de gente que queremos formar. O resto são empregos que vão acabar. A única formação técnica com futuro pelo menos pelos próximos anos é o tipo de ensino que ninguém quer financiar: pedreiros, carpinteiros, bombeiros hidráulicos, porque não temos nenhuma previsão de quando teremos um robô capaz de quebrar uma parede, encontrar um defeito e consertá-lo. E, por incrível que pareça, ENCONTRAR UM DEFEITO NESSAS COISAS E SABER CONSERTAR exige um conhecimento analítico que surpreenderia a maior parte dos universitários que sabem ler, escrever e fazer conta e chamam o chefe quando veem algo com o qual não sabem lidar.

Isso me lembra ainda quando, depois de uma longa entrevista ao Globo, o Eugênio Gudin tornou-se colunista no jornal. Não de economia, mas de variedades, um precursor do Roberto Campos. Só o conheci já quase nonagenário – o que hoje em dia valeria como centenário – e tinha e apenas uns 14, 15 anos, mas o tipo de pensamento conservador “iluminado” dele me deixava furioso. Americanófilo declarado, defendia ideias de que os ianques tinham perdido a guerra do Vietnã por causa dos protestos dos hippies e do Congresso, porque não podiam usar todo o seu arsenal contra aqueles minúsculos orientais (não, eles não podiam usar porque senão os soviéticos iriam usar o deles também) e que não fazia sentido tentar industrializar o Brasil, porque era pouco inteligente tentar competir com a indústria estadunidense.

Hoje em dia ninguém tenta rivalizar com o magnífico parque industrial americano mesmo. Ele migrou todo pra outros lugares. Ficaram os analistas, os desenhistas. Ninguém compra mais produtos “made in USA”, mas coisas como “made in China, designed in Palo Alto, California”. A propriedade intelectual está se tornando o bem mais valioso. Já aconteceu com a Inglaterra e o Japão. Este último, inclusive, está cada vez mais dominando o mundo culturalmente à base de animê, mangá e ninfetinhas amarradas sendo estupradas por tentáculos. Mas não era por causa disso que o Gudin achava desnecessário a ideia de criar uma firme industrialização no Brasil. Ele não previu as mudanças pelas quais o mundo iria passar com a informatização, inclusive por causa do seu pensamento conservador. A época da coluna dele era a mesma em que os robôs das automobilísticas japonesas estavam levando-as a dominar o mercado, mas ele não via isso. Era o começo das fábricas automáticas. Estamos caminhando para um futuro “Jornada nas Estrelas”, em que bens de consumo ainda estão looooonge de serem feitos por sintetizadores (movidos a reação de matéria e antimatéria), mas os métodos de fabricação automatizados barateraram tanto a produção que mergulhamos num mar de consumo desenfreado (para o bem e para o mal). Lembro que meu pai, marceneiro e carpinteiro, escondia de suas crianças algumas chaves de fenda de relojoeiro porque eram caras e frágeis. E delicadas. Você pode comprar um estojo delas no camelô hoje em dia por 10 reais.

Finalmente, para fechar o raciocínio, uma última historinha. Lá do começo dos anos 90. A Veja, já há 30 anos, apoiou firmemente o Collor, porque já naquela época era preciso não deixar o PT chegar ao governo. Então, como hoje, acabaram se arrependendo quando o sujeito tentou sequestrar MESMO o poder, acumulando em suas mãos – e de sua turminha – todos os cargos e até mesmo símbolos que pudesse. E, então como hoje, começaram a fazer uma campanha contra ele. Lembro de um artigo que eles fizeram indo a Maceió e entrevistando os coronéis da terra pra “entender o pensamento” do presidente, mostrando-os como uma cáfila de grosseiros broncos. Num dos parágrafos, diziam que, num esforço para aumentar o refinamento da galera, o governo incentivou a abertura de um restaurante de luxo, mas que tinham acabado por permitir que as pessoas fossem de bermuda, por ser impossível detê-las (sim, sinta a ironia do pensamento conservador, que hoje a adota como uniforme). E, numa das entrevistas com os poderosos, que tentavam parecer modernos e empreendedores, um deles dizia que a vocação do Nordeste era o turismo, mas ele era populoso demais pra isso. Então a solução seria mandar metade do povo pra Amazônia.

Esse é o tipo do pensamento conservador dessa galera. Pra eles e pra todos seus conhecidos, a vida está ótima. Eles estão bem, dá pra galera ganhar uma grana pilotando Uber e bicicleta de entrega, e estudando – lendo, escrevendo e fazendo conta – pra manter as coisas funcionando. Não as mudar. Como aquela piada do algoritmo para reparar sistemas - “está funcionando?” - “Não mexa” - “Você mexeu?” - “seu idiota”. É preciso ser exato e técnico. Nada pode escorregar do lugar, principalmente porque não vai ter ninguém pra ver que o lugar escorregadio é que de repente dá onda.

O brilhante intelectual Gudin não podia ver para onde o mundo estava indo bem debaixo de seus olhos e ainda se agarrava à vocação agrária do Brasil. O próprio agronegócio hoje em dia é automatizado e desumano – no sentido de que precisa de relativamente poucos humanos para funcionar. O mundo muda, a tecnologia surge porque, apesar de todos os esforços dele, a galera cujo cérebro não tem as sinapses pré-programadas pralguma coisa pensou em algo diferente.

Esse é o pensamento da mediocridade. Vimos agora as filas enormes em shoppings, mesmo sob risco de pandemias. As vitrines são padronizadas, o céu não e visível, os restaurantes são franquias que fazem a comida de acordo com as normas exatas. Passar pela rua, pelo Saara, esbarrar em lojas antigas e empoeiradas não são a onda deles. É o mundo uberizado, onde podem ser mimados e ter o prazer de encontrar o já conhecido. Não sofrer o estresse do desafio. É o povo que acha que o turismo é mandar metade da população pra outro lugar, ou abrir à exploração uma área preservada, pra fazer um complexo como o de Cancún. Ou Miami. O turismo tem que ser para um lugar reconhecivelmente como um shopping. Não há o interesse em conhecer o diferente, só o semelhante. São turistas registrados. Assim como profissionais registrados, exibindo seu crachá de ler-escrever-fazer conta. Nunca tive – e lamento – vocação pra mochileiro, mas lembro uma vez em Madri quando encontramos uma brasileira e perguntamos sobre Toledo, e ela disse que bastava uma tarde pra conhecer, pegar um trenzinho pra circular pela cidade e pronto. E quando chegamos encontramos uma lindíssima vila medieval, inclusive pouco modificada pelo menos desde o Tristana, do Buñuel, lá de 1970. Porque lembro de estar vendo o filme com a Ana e, quando o Fernando Rey para pra falar com um personagem, “ei, eu conheço essa porta. Hoje em dia tem uma fábrica de espadas (aço toledano!) lá”. E, quando a câmera abre, vemos o cartaz – o mesmo! - da fábrica de espadas.

Weintraub – e Bolsonaro – foram treinados na mediocridade. Este é um militar de média patente, acostumado a seguir – e dar ordens, sem questionar ou ser questionado. Não para pensar. Não por acaso ele sempre gostou de dizer que qualquer coisa, pergunte ao fulano do seu governo. Ele faz apenas o que o mandam fazer, e exige o cumprimento inquestionável, mesmo que não entenda ou concorde. Já o primeiro é bem-nascido filho de um famoso psiquiatra que cresceu à sombra do pai e se envolveu em um processo para interditar o patriarca, porque receber a herança dos pais é o desenvolvimento óbvio de sua vida. Obcecados em criar um país de técnicos de “exatas”, aparentemente nem percebem que estão seguindo as ordens de seu grande ídolo, um autodenominado filósofo, sem formação universitária, mas cujo conhecimento geral – ainda que superficial – é bastante superior ao deles (2) – para não falar de sua oratória e gramática. 

Tivessem eles tido uma formação humanista geral, não se deixariam enganar tão facilmente.

(1) Há muitos anos, um amigo meu com inclinações parecidas falava que realmente o que importavam eram as Leis Naturais, que são fixas e imutáveis (parece que ele não entende muito de fisica quântica – aliás, nem eu). Tentei explicar pra ele que ciência na verdade é uma corrente filosófica, basicamente. Ela se apoia na ideia de que certos fenômenos cíclicos continuarão sendo cíclicos (ou algo parecido, não sei explicar direito agora). Pra explicar melhor, por exemplo, chegamos à conclusão que a Terra gira em torno do Sol porque todo dia ele nasce no leste e se põe no oeste, mas, na verdade, não temos NENHUMA garantia de que isso vá acontecer amanhã. Não existem “Leis Naturais”, algo como uma Constituição firmada e promulgada por Deus, Odin, Galactus e o Tribunal Vivo (ele era nerd). Não existem “números” na Natureza, é uma invenção humana, abstrata e de difícil explicação. As “Leis Naturais” são uma abstração da mente humana tentando fazer sentido de um monte de matéria – e energia – espalhados pelo Universo.

(2) Existe esse tipo de pessoa que tem um conhecimento geral superficial, oriundo de fontes de segunda mão (ops, estou me expondo!), artigos de revistas ou lições bem lembradas do segundo grau. Normalmente ele se sobressai entre os viventes de formação puramente de série de tevê e filme americano, o que acaba subindo à cabeça deles e fazendo-os crer que têm a explicação para tudo. Quando se junta a uma personalidade carismática, costumam ter um séquito de viventes impressionados com a eloquência e fartura de respostas diretas e simples.

(3) Meus amigos mais próximos não aguentam mais, mas vou contar mais uma vez uma historinha passada comigo na 5a. Série do São Bento – que todo ano é o melhor ou um dos melhores colégios do Brasil no Enem. Eu tinha acabado de entrar praquela escola, vinha de uma pequena e familiar, estava assustado com aquele negócio enorme, aquele esquema de aulas seguidas de uma hora com professores diferentes, enfim, todo melindrado. Durante a aula de história, sobre a formação da Terra e surgimento da vida, perguntei ao professor se a vida não poderia ter começado com pedaços vindo de outros lugares do sistema solar. “Claro, Luiz”, resondeu o professor que, não satisfeito em nem se dar ao trabalho de dar uma resposta elaborada, ainda resolveu fazer bullying com um garoto de 10 anos, “os dinossauros vieram em um meteoro. Ele parou aqui e eles saltaram”, pra turma toda rir. Quem gosta de ler essas coisas de Superinteressante obviamente já tá ligado que hoje em dia uma das principais teorias do surgimento da vida na Terra é de que moléculas orgânicas ou bactérias tenham chegado aqui em meteoros de outros corpos celestes, porque tem uma turma que acha que decorreu muito pouco tempo entre o esfriamento do nosso planeta e o surgimento de um monte de organismos

janeiro 14, 2020

A Justiça Cativa


Antes da Constituição de 1988, os concursos para juízes exigiam pelo menos 35 anos de idade do candidato. Era um tempo para o sujeito se formar e passar uns 10 anos trabalhando em algum lugar antes de encadeirar-se em sua sinecura. Não por coincidência, já diziam os antigos – aquele povo qe vivia antes da Constituição de 1988 – que você levava 10 anos pra se tornar bom naquilo que gostava de fazer.

Nesse ínterim, se você fosse trabalhar com Direito, você iria lidar com clientes. Com juízes. Com funcionários. Interagir com gente, enfim. Aprender como funciona o mundo. Porque um dos assuntos da moda entre o povo pensador é como as redes sociais criam “bolhas”, isolando o indivíduo do contato com pessoas que vivam ou pensem diferentemente dele, mas na realidade estamos fazendo o mesmo há décadas, desde que arquitetos e governantes decidiram que o modelo ideal de cidade é a equivocada “cidade-jardim” de Le Corbusier – uma ideia, aliás, que lá por fora já está se tornando obsoleta, mas por aqui ainda é um ideal de vida (cf. Barra da Tijuca, que, mesmo nos anos 70, o auge do pensamento urbanista modernista, era conhecida como um “bairro sem esquinas e, portanto, sem bares de esquina”).

Quem aliás primeiro chamou a atenção pra isso foi a Jane Jacobs no seu fundamental e altamente influente livro, “Vida e Morte das Grandes Cidades”. Ela conta que, no começo do século XX, com o automóvel barateando, Le Corbusier e sua turma sonharam com uma “cidade-jardim”. As pessoas não precisariam morar perto do trabalho, porque poderiam se deslocar até lá em seus próprios veículos. Pra quem viveu nos já citados anos 70, respirando as titânicas nuvens de carbono dos escapamentos dos ônibus e carros mal regulados, a ideia pode soar ridícula, mas é porque, segundo a Jane, nunca tivemos que chafurdar em bosta de cavalo acumulada por ruas estreitas e fedorentas, sem ventilação ou árvores.

Além do mais, no século XIX, um prefeito de Paris, o Haussman, botou meia cidade abaixo pra criar bulevares arborizados, com casas devendo obedecer regulamentos não só de construção como de estética, e amplos, bem amplos (segundo muita gente, pra facilitar a movimentação de tropas pra reprimir as constantes revoltas populares parisienses). Que fica bonito é inegável, mas esse tipo de reforma acaba levando primeiro ao afidalgamento do lugar (gentrificação de cu é rola) pela valorização imobiliária e, subsequentemente, ainda que paradoxalmente, à decadência da área (a turma endinheirada acaba preferindo ir criar seus filhos em um lugar mais isolado, onde não tenha tanto barulho e movimento, deixando tudo pro comércio e pra serviços, o que torna o local deserto à noite, atraindo prostituição, tráfico, violência etc. Etc. - cf. Avenida Central, atual Rio Branco, aqui no Rio de Janeiro).

Mas, voltando ao Le Corbusier. Influenciado por Haussman, ele foi ainda mais radical. Livraria as massas da imundície e pestilência das fezes equinas e as levaria ao paraíso: blocos residenciais cercados de jardins e alamedas arborizadas, com enooormes ruas para o deslocamento dos veículos que levariam o povo a seu trabalho e às suas compras, em centros comerciais. Bem-vindos a Brasília e à Barra da Tijuca. Ou aos famosos “suburbs” americanos (1).

A Jane afirmava que esse tipo de urbanismo é típico de alguém que ODIAVA cidades. Pois o bom da cidade é justamente a mistura. A convivência com pessoas de outras camadas sociais, com outros objetivos na vida, com outro tipo de pensamento. Pra vocês entenderem, aquela coisa do jornaleiro que tomava conta pra você se o encanador ia chegar, o coroa dono do bazar/papelaria/loja de material de construção/armarinho/loja de brinquedos (sim, antigamente tinha muitas e muitas dessas lojinhas) que trocava seu cheque e por aí vai. É exatamente essa vivência que é o objetivo da cidade. O pessoal ia pra ela pra arrumar trabalho, aprender um ofício, abrir as ideias. Já que falamos de Paris, os pintores, escritores e afins iam todos pra lá no começo do século XX justamente pra ter contato com o pensamento de toda essa turma onde tudo estava acontecendo agora.

Não demorou muito pras pessoas descobrirem o que podia dar errado com esse urbanismo: grandes engarrafamentos, dificuldade pra sair do bairro pra fazer qualquer coisa e voltar (Barra, estou falando com você), tédio e degradação. Já em 1965 essa mulher (http://blog.modernmechanix.com/one-womans-confession-i-hate-suburbia/) reclamava de tudo: acabavam não indo para o sonhado clube ou golfe por falta de tempo, gasto nos congestionamentos; falta de entretenimento; falta de vida social ou cultural, porque ninguém tinha disposição pra ir até o centro: e, finalmente, voltando lá pro assunto inicial, sua preocupação com a sua filha adolescente atraída pelo filho do vizinho, que a mãe julgava superficial e materialista – mas com quem mais ela iria se enrabichar, se não conhecia ninguém, ou pelo menos ninguém diferente? (2)

A Constituição de 1988 acabou com esses limites de idade por causa de sua vocação antidiscriminatória. Ninguém deveria ser prejudicado por problemas físicos, religião, ideologia, orientação sexual ou... idade. Pra cima ou pra baixo. Afinal de contas, porque vedar acesso à magistratura de gente que já com 20 anos poderia passar num concurso pra juiz? Por falta de vivência, talvez.

Certo, certo, não vamos discordar que existem aqueles gênios superdotados que aos 14 anos já estão na faculdade (o que, aliás, costuma levar a gente que aos 30 anos não sabe o que quer na vida, conforme um documentário que vi há alguns anos, mas cujo linque não consegui achar). Mas Direito não é uma ciência exata. Leis não se aplicam com manuais, apesar do que possam querer fazer os leigos acreditar. E o Estado de Direito é muito mais complexo e exigente do que nós, nos inexperientes 20 anos, poderíamos pensar.

Um juiz tem que saber como a sociedade funciona e os limites de seus poderes e entendimento. O que é um conhecimento que 10 anos de advocacia ajudariam bastante a adquirir (ou piorar, mas aí são casos perdidos mesmo). Aceitar garotada de 20 e poucos anos que nunca trabalhou de verdade na vida e saiu da faculdade pra ficar em casa estudando prum concurso é como querer botar na magistratura astros do rock que gostam de demolir quartos de hotel enquanto cheiram todas ou jogadores de futebol que acham que craque é só o sujeito que faz muito gol ou dribla todo o mundo.

Descobrir como sentenças afetam as vidas de seus clientes, ser reprimido ou intimidado por juízes e funcionários, aprender a lidar com as pessoas e seus sentimentos, isso é um capital que não se adquire lendo livros ou aprendendo teorias. Até porque, na verdade, Direito é como História. O historiador não é aquele sujeito que decora todas as datas, até porque isso basta ver na enciclopédia. É na verdade o cara que entende como as coisas se desenrolam, a vida e a morte das civilizações, e pode até mesmo descobrir analogias que nos permitam prever o futuro. Do mesmo modo, o bom advogado – ou juiz - não é necessariamente aquele que sabe todos os artigos da Lei, mas que entende o que é justo e é legal e usa a lógica para aplicar esses conhecimentos a casos concretos. E só colecionando um monte de experiências e interações é que se pode chegar a uma verdadeira compreensão do que é justo e legal.

Também não vale nem a pena levar em conta que garotada tem mais tempo e concentração pra estudar. Passar num concurso tão jovem também pode levar a criatura a perder o hábito de aprender – sim, porque isso é um dos maiores problemas com nosso sistema educacional, quando realmente começamos a entender e a apreciar o que é aprender, somos jogados no mercado de trabalho, sem tempo pra isso. Gente que estuda o tempo inteiro, às vezes anos (1 ou 2 anos parecem uma eternidade quando se tem 20, lembram?), passa no que quer e depois pronto, não quer mais ver aquilo. Cristaliza seu conhecimento e não quer mais saber de nada.

As nossas bolhas chegaram à Justiça e criaram gente que chegou ao pináculo da profissão (3) ainda muito jovens. Não conhecem restrições, não têm ideia das consequências dos seus atos e não conhecem as pessoas. É assim que formamos gente que condena porque tem convicção, mas não provas, que acha justo que ninguém sequer investigue se algo assustou um policial e ele matou o cara, e que acha que qualquer um que queira, basta estudar e chega lá. Um amigo meu definiu bem, nós inventamos os juízes criados em cativeiro.



  1. Não vou traduzir porque o que chamamos de subúrbio é outra coisa completamente diferente. O dos americanos é aquela coisa que vemos em filme, um monte de casinhas com quintal, longe do centro, longe de tudo.
  2. Pra dar um pouco de tempero ao texto, vou contar que justamente esse isolamento e falta de entretenimento teriam dado origem à cultura do “swing” - a popular troca de esposas. Juntando-se a isso o tédio das mulheres, ainda não inseridas no mercado de trabalho e passando as tardes sozinhas em casa, com suas tarefas reduzidas por causa dos eletrodomésticos e refeições industrializadas (restos de refeição envolvidos em gelatina instantânea viraram um fundamento da culinária dos anos 50!, e começou a era das infidelidades, dos divórcios, e das festas da chave. Essa modorra existencial levando a sexo casual foi o tema de vários filmes eróticos (não pornográficos, até porque nem rolava na época) de Joe Sarno, hoje em dia um cultuado diretor, considerado um autor cinematográfico. Confira a sua obra-prima, “Sin in the Suburbs”. Pode começar com esse trecho no VocêTubo, pra depois ver se tem coragem de me dizer que o Kubrick não assistiu a essa fita.
  3. Na verdade, um advogado realmente bem-sucedido ganha mais – e pode amealhar bem mais poder – do que um juiz. O que causa muitas rivalidades quando dois grandes egos se encontram, um de cada lado da tribuna.