Meio de semana de férias, meio de verão em meio de caminho de viagem, meio de noite, noite de meio de fim de caso para David, apto e inepto, abrindo seu coração para as cervejas e cachaças e manjubinhas fritas no trailer esvaziado dominando do alto da grama a praia deserta.
A falta de Ana, a falta de gente da praia, mas o calor da noite de Lua cheia e ligeira tonteira de álcool e limão sobre peixe. Cálida melancolia em hora de abrigo, para David não era o melhor e nem o pior dos tempos.
Um homem, uma estranha figura que bebera apenas cachaça - ou teria sido água - o tempo todo desde o anoitecer, uma mesa um passo acima na grama e na mesa inclinada, cumprimentou o jovem a pensar na vida e na desamada e no que fazer nas noites desocupadas do restante das férias.
- Boa noite.
- Boa.
E silenciaram de novo.
- Comendo peixe?
- Adoro.
- Os peixes também.
- É mesmo? Aqui eles não costumam comer.
- Mas fazem na ponta da minha vara.
"Prefiro que o façam as mulheres"
- Você pesca?
- E caço. Adoro animais.
- Ainda bem que você não adora judeus.
- Mas onde mais você poderia ser tão animal a não ser caçando um bicho? A caçada é a coisa mais natural do mundo. E a pesca. Seus sentidos estão alertas. Seu corpo está alerta. Você sente a pulsação da terra e com isso sente todos os viventes que caminham sobre ela.
- Ou nadam.
- Ou nadam.
- Ou voam.
- Ou voam. E quando você pega um desses bichos, você está sendo ele, nem que por um minúsculo instante. Você pega o peixe e você é um tubarão nadando como um bólido. Um golfinho violento e irascível. Você captura o pombo e você é uma águia sobrevoando o chão lá em baixo. Um falcão impiedoso afundando-se em sangue e universo.
- Então você não deveria caçar falcões, tubarões e golfinhos?
- Não. Nós matamos para nos tornar os animais que queremos ser. Todos nós, todos temos um bicho que admiramos. O cachorro de estimação, o gato da casa. Todos queremos ser animais. Nós também somos viventes. Parte da terra.
Vivente. Ana. Vivendo por aí, vivendo mais do que ele, andando não com desconhecidos, mas com prestes a conhecê-la, ele cada vez menor no corpo e alma dela.
Mas o homem não o pensar, não o deixa lembrar, não o deixa afundar em pena de si mesmo (gostoso, ótimo de fazer em praia deserta e calma à noite) e pergunta, indaga, insiste.
- Se você fosse um bicho, que bicho você seria?
- Um homem.
A estranha figura levantou os olhos - escleróticas brilhantes no azulado da Lua - por baixo de sua cabeleira e sorriu - esmalte brilhante entre os lábios acinzentados pela noite - contente e desarmado.
Cada vez mais, até rir.
Uma (e somente uma) quase gargalhada. Gostosa e sonora.
- Um homem? Ha Ha!
E o David sorriu também.
- Uma coisa difícil. Conheci poucos que conseguiram.
e
- Afinal são poucos os que tentam. E menos ainda os que conseguem.
- Eu nunca disse que ia conseguir - o David.
E outra vez, o sujeito levanta a cabeça e sorri.
- Ha ha!
E olha David e
- E nem eu. - põe-lhe a mão no ombro. - Não poderia lhe dizer o que fazer. - Pára e
- E nem saberia - Termina enquanto já andando. A mão já pesa menos no ombro do David até que se solta quando ele já começa a deixá-lo para trás.
David se volta e vê a figura caminhando para o mato deixando rastros leves pela areia - rastros de alguém sem pressa, de passos curtos e tranquilos, rastros de animal saciado que não quer deixar pistas para outros.
E aí o David se cansa e vai caminhar mais um pouco pela brisa noturna.
O mar bate.
Os peixes acham que é uma superfície sólida e imutável.
Como bons animais que são.
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outubro 31, 2006
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