(Este artigo pressupõe conhecimento dos filmes TOMMY, baseado na ópera-rock de Pete Townshend e The Who, e THE WALL, que segue o álbum conceitual de Roger Waters e Pink Floyd. Ambos estão disponíveis em DVD).
Estive de folga semana passada e acabei revendo TOMMY e THE WALL, dois disquinhos ótimos pra se brincar de home-theater, com suas imagens esfuziantes e excelente música em 5 canais. Vê-los lado a lado ressalta o que eles têm de comum além de serem, senão as únicas, as mais importantes óperas-rock da história do cinema (tá, eu sei, The Wall não é exatamente uma ópera-rock, mas não conheço outro adjetivo tão curto para "longa-metragem em que a história é narrada através de canções de rock'n'roll"). Os dois filmes contam praticamente a mesma história e explicam a ascensão (e queda) do rock'n'roll e da swinging London, sob a ótica de quem estava à frente do movimento, fazendo aquilo tudo acontecer, só para desacontecer nos anos 70.
TOMMY foi escrita por um moleque bagunceiro de 23 anos; THE WALL o foi por um balzaquiano melancólico e não tão talentoso. Os sintomas da idade estão presente em ambas as óperas: a primeira é mal-comportada, caricatural e simbólica. A juventude de Pete Townshend não só não tem ainda maturidade emocional para lidar com seus problemas de forma sutil como também precisa disfarçar seus dados autobiográficos, com medo de se expor tão completa e abertamente. Em compensação tem ainda toda a energia da adolescência, com sua busca incansável de revolucionar, exibindo uma originalidade e uma inventividade arrebatadoras. Mesmo com o distanciamento resultante da pouca complexidade das personagens, a intensidade e sinceridade dos sentimentos de Tonwshend conseguem atravessar as alegorias e conquistar-nos com sua pungência, como no recorrente pedido de Tommy (“see me, feel me”) ou no emocionante final.
THE WALL demonstra que seu autor possui muito mais domínio da linguagem artística e é populada por personagens muito mais reais do que quase todas as que povoam TOMMY, o que nos deixa muito mais próximos de seus problemas, criando uma empatia mais profunda do que na obra de Townshend. Em compensação, Roger Waters não é tão brilhante quanto o moleque do THE WHO. Sua madura técnica de poeta do rock está a serviço das mesmas angústias e preocupações adolescentes que afligiam Townshend, mas sem a sinceridade juvenil deste. Aos 35, 36 anos, Waters já deixara aquela fase da vida bem para trás e escrevia sobre ela de memória e não como um correspondente etário enviando seus despachos diretamente para o mundo exterior. No lugar da intensidade emotiva do rapazola Townshend, ele exibia a autocomplacência e autoindulgência típicas de uma crise de meia-idade, muito mais próxima à sua condição balzaquiana.
Mas mesmo com essa separação de mais de dez anos no tempo, tanto real quanto psicológico de seus autores, as duas óperas contam aproximadamente a mesma história. Um garoto nasce na Segunda Guerra e nem chega a conhecer seu pai, que morre no conflito. No mundo caótico do pós-guerra é criado com sacrifícios pela mãe, desenvolvendo uma relação fortemente edipiana e isolando-se do exterior – Tommy fica cego, surdo e mudo; Pink constrói um muro à sua volta. Por causa disto, suas relações com mulheres são problemáticas e centradas na relação sexual: Tommy com a rainha do ácido, Pink com a groupie e sua esposa, com quem não consegue se comunicar.
Desesperadamente solitários e carentes, os dois garotos só conseguem se expressar artisticamente, Pink com o microfone e Tommy com a máquina de flipper, cujos predicados – diversão juvenil, coisa de quem não tem o que fazer, de marginais, sem importância – revelam-na uma metáfora para o rock'n'roll como enxergado pelo establishment na época.
Aí a história difere. Mas nem tanto assim. Tommy consegue superar seu narcisismo, atravessando simbolicamente o espelho onde conseguia se enxergar. Cura-se de sua cegueira-surdez-mudez elevando-se espiritualmente, preocupando-se com o mundo em volta. Supera, pelo menos em parte, seus conflitos edipianos (não por coincidência, o espelho é quebrado quando a mãe o empurra violentamente para longe), e está pronto para usar sua arte para levar a iluminação ao mundo, surgindo como um messias com uma mensagem de paz e amor. Pink é traído pela esposa e mergulha de vez num edípico poço profundo de autopiedade e carência. E ressurge, não como o salvador Tommy, mas como o anticristo nazista. Ao seguir para o palco, a mensagem que leva é de ódio e amargura, rancor e ressentimento contra o mundo que não o fez feliz mesmo depois de transformá-lo em superstar rico e casado com uma bela mulher.
E as duas óperas apresentam o público, aquele povo que estava comprando os discos de seus autores, fazendo suas fortunas e fornecendo-lhes uma agitada vida sexual, pois é, justamente aquela galera, como um bando de retardados sem ideologia, alienados e manobráveis, cheios de rancor e ódio. Tommy ascendeu espiritualmente e não consegue se comunicar mais com seus seguidores, o que os leva a atacá-los. Pink desceu de vez ao inferno edipiano e leva junto sua platéia num surto infantil de destruição, exibindo todo o ressentimento e rancor contra o mundo normal.
TOMMY é muito mais metafórico. Além da máquina de pinball, metáfora do rock, temos a cegueira-surdez-mudez do garoto, alegoria para seu isolamento emocional, o correspondente ao muro na história de Waters. O assassinato acidental do pai pelo namorado da esposa (1), o evento que deixa Tommy cego, surdo e mudo, também não deve ser tomado literalmente, mas como o jeito que Townshend encontrou para retratar como um menino entenderia a mãe na cama com outro sujeito que não seu progenitor, morto como herói defendendo o país na guerra.
O filme TOMMY foi feito no auge do glam rock, do glitter rock, quando os roqueiros todos usavam paetês e lantejoulas e casacos angorá e coletes com plumas e afins. Um exagero só. E Ken Russell, cineasta visualmente esfuziante, embarca vigorosamente nessa onda. A película é sobrecarregada por todos os lados. Começa calmamente, é verdade, quase pastoral, mostrando um casal namorando num cenário lindíssimo – tão lindo, na verdade, que John Boorman o usou em ZARDOZ e EXCALIBUR. O casal volta à cidade e um pesado e antigo lustre pairando sobre eles, enquanto dançam sozinhos, as expressões bem mais carregadas, pressagia o peso do destino prestes a atingi-los. O homem embarca em seu bombardeiro para uma missão de guerra. A mulher volta a seu trabalho – encher granadas de artilharia com shrapnel, balins de aço, arma antipessoal.
Está armado pela guerra o cenário que deflagraria a imensa carência dos garotos das duas óperas e do mundo do rock'n'roll. O pai ausente lutando – e morrendo – na guerra e a mãe na rua, trabalhando. A rainha do lar, a dona de casa, começaria a desaparecer nessa época e as crianças, num mundo de guerra fria, avanços tecnológicos que aumentavam a transmissão de informação, acabando com uma era de certa inocência analfabeta, iriam se transformar nos delinquentes juvenis, adolescentes-problema ou juventude liberada dos anos 50 (2). Nora está no trabalho – uma linha de montagem somente com mulheres, que na geração anterior estariam todas em casa – quando chega uma motociclista militar com uma mensagem. A motociclista também é uma jovem, e a fuligem em seu rosto desenha os óculos de proteção que ela estava usando para dirigir – dando a aparência de que ela tem um bigode! Ken Russell também sabe criar sutis metáforas visuais! A mensagem é um telegrama informando a Nora que seu marido morreu.
E nasce Tommy, e Nora conhece seu namorado numa colônia de férias e se muda com ele. Até aí o longa desenvolve-se de forma relativamente convencional. É a partir da cegueira-surdez-mudez de Tommy que ele se transforma numa caricatura, numa enorme alegoria. Talvez para que experimentemos a realidade distorcida onde Tommy mergulha. Seu isolamento do mundo exterior aguça seu universo interior e desenvolve seus dotes artísticos, subentendemos. É o que nos narra a música AMAZING JOURNEY (Sickness takes his mind to places where it usually doesnLt go – a doença leva sua mente a lugares aonde usualmente elas não vão. Venha, siga esta surpreendente jornada e aprenda tudo que há para saber). Nem tudo, aliás. Ele terá depois que vencer o isolamento que despertou sua consciência artística, para realmente amadurecer e ter o que dizer.
De qualquer forma, é depois do assassinato do pai que o filme se torna caótico e esfuziante até demais. As personagens se tornam caricaturas. É difícil imaginar que a apaixonada Nora do começo do filme vire aquela mulher vã que sai com o amante e deixa o garoto indefeso nas mãos de um tio que abusa dele sexualmente e de um primo valentão da escola que abusa dele fisica e psicologicamente. A ainda gostosa Ann-Margret se defende bem no microfone, mas Oliver Reed canta desagradavelmente e fere nossos ouvidos. TOMMY, o filme, é falho, anacrônico e representa apenas superficialmente sua época. Apesar de contar com trama e música superiores, THE WALL funciona melhor como cinema.
Alan Parker, ótimo diretor, contou com a ajuda do desenhista Gerald Scarfe para iconografar a ópera-rock autopiedosa de Roger Waters. Graças à incisividade dois dois primeiros, a platéia não fica o tempo inteiro pensando durante a fita “por que esse sujeito rico, bem-sucedido, astro do rock e jovem está chorando tanto por ser tão infeliz?”. Parker também contou com os novos negativos que surgiram no final dos anos 70 e início dos 80, capazes de uma maior riqueza de tons e superior sensibilidade à luz (3), para criar uma atmosfera de claro-escuro e luzes constrastantes que dá ao longa uma aparência muito mais atual do que a iluminação plana de TOMMY, que lhe dá aquele visual obsoleto e barato.
A edição de videoclipe, à frente de seu tempo, a riqueza da direção de arte, e a intensidade da raiva de Parker resgatam THE WALL. Apesar de toda a obviedade de sua trama e sua letra, o filme é visualmente hipnótico. Um então desconhecido Bob Geldorf, antes de orquestrar o Live Aid e virar Sir, empresta seu rosto (à época) anônimo para a crise do roqueiro Pink. Sem pai e sem família além da mãe, ele se isola num infernal paraíso edipiano, tornando-se um poço de profunda carência, a mesma carência de afeto que leva Tommy a implorar atenção recorrentemente (“see me, feel me, touch me, heal me”). Mas como Pink não ultrapassa seu narcisismo, seu pedido por atenção é a ameaça de suicídio (“good-bye, cruel world” e todo o subtexto de grande parte das letras).
As flores que viram uma piroca e uma boceta, sendo que esta devora a primeira, é tão pouco sutil quanto qualquer coisa na fita de Ken Russell, mas a beleza dos desenhos animados de Gerald Scarfe, antes dos computadores, faz-nos perdoar sua pretensão. A marcha dos martelos é simplesmente inesquecível. Todo o ressentimento reprimido de Pink irá explodir quando sua esposa o trair, afastada que foi pela incapacidade de Pink de se preocupar com alguém além dele mesmo, e levá-lo depois definitivamente à loucura, ao contrário da iluminação que Tommy alcança, mesmo quando todos seus seguidores o abandonam.
Assim, os dois filmes narram a formação do zeitgeist da Swinging London. Explica por que aquele povo todo aderiu à rebeldia do rock'n'roll. São, a seu modo, um TERRA EM TRANSE britânico, mostrando as preocupações e a educação sentimental dos poetas do país e a encruzilhada em que se encontravam, bem como por que a turma dos anos 60 simplesmente acabou um dia e deu lugar à galera dançante dos anos 80, preocupada em resgatar a simplicidade do rockabilly da década de 50, e depois à música eletrônica. Iluminados e resolvidos, ou loucos, talvez até mortos de overdose, os roqueiros da contracultura haviam se esgotado. Eles não conseguiam mais se comunicar com seu público. Sua música dependia da juventude para não se mostrar uma patética exibição de autopiedosa crise de meia-idade. Não sobreviveria à idade, a não ser sob o preço de um messianismo fascista. Como Townshend já dizia bem antes de compor TOMMY, sua ideologia pressupunha morrer antes de envelhecer. Muito tempo depois, já quase cinquentão, perguntaram ao velho Pete, “mas e aí, cara, você não preferia morrer a envelhecer?” e o coroa respondeu, inteligentemente, “mas eu AINDA quero morrer antes de ficar velho”.
(1) Na ópera-rock original, o pai voltava e acabava matando, junto com a esposa e sem intenção, o namorado dela. O pai voltando e acabando assassinado sem querer foi detalhe original do filme. A montagem teatral da Broadway dos anos 90 retoma a trama do álbum e mantém o pai vivo, matando o amante.
(2) Confira a obra-prima da década de 40 de William Wyler, OS MELHORES ANOS DE NOSSAS VIDAS, quando Fredric March, voltando ao lar depois de anos na guerra, vê surpresa a filha que não viu crescer saindo para a rua à noite sob o olhar complacente da mãe, Jane Wyman. Quando March pergunta que independência é essa da adolescente, Wyman explica que a garota trabalhou como enfermeira voluntária e já viu no hospital mais coisas até do que eles mesmos, deixando subentendido que talvez ela sequer seja mais virgem – e a mãe nem liga!!!! O já citado John Boorman, em seu filme dos anos 80, ESPERANÇA E GLÓRIA, também mostra uma mãe conformando-se com a precoce e solteira vida sexual da filha. Afinal, explica ela, talvez a garota nem esteja viva amanhã. É melhor aproveitar enquanto é tempo.
(3) No final dos anos 60, o sistema de cor Technicolor, que dava maior riqueza de tons e saturação de cores, foi abandonado por sistemas muito mais baratos e de cores muito mais chapadas. Filmar a cores também exigia intrinsecamente mais luz do que com película monocromática. Guardo como lembrança o fotômetro de meu falecido pai, que tem marcações diferentes para fotografar a cores ou em preto-e-branco, mesmo quando a sensibilidade nominal é a mesma. Como resultado disso tudo, o cinema dos anos 70 tem aquele indisfarçável sabor de produção para a tevê ou de seriado, com uma iluminação plana, sem subtons, sem contrastes, sem contraluzes. Filmes como O PODEROSO CHEFÃO apresentam maior textura e riqueza de cor, mas graças a uma técnica desenvolvida por Vittorio Storaro e outros diretores de fotografia: expor rapidamente o negativo, para velá-lo parcialmente, antes de começar a filmar. A imagem final ficava mais rica e texturizada, com muito mais subtons, mas em compensação tinha uma granulação bem maior, perdendo bastante nitidez. Se você acha que não, é porque assistir ao longa numa tela de tevê, bem menor que a de cinema, resolve em parte o problema. A outra parte foi resolvida na transcrição para DVD, quando os grandes estúdios normalmente “limpam” digitalmente qualquer ruído desagradável da fita. No final dos anos 70 foram introduzidas novas emulsões coloridas, com maior sensibilidade e riqueza de detalhes. Os cineastas imediatamente começaram a brincar com elas, resgatando o filme noir e o claro-escuro e dando aos anos 80 aquele ar dark e gótico.
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1 comentário:
👏👏👏👏👏👏
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