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Pois é, aquele sujeito que hoje em dia faz aqueles vilões grotescos sem maquiagem já foi símbolo sexual. Ele também aparentemente tinha algum problema na garganta que o impedia de falar mais alto do que um sussurro, problema que pelo menos hoje já foi solucionado. Mas se ele parece tão convincente em “O Lutador” falando que os anos noventa foram uma merda e os oitenta é que mandavam, é porque não é só o personagem se manifestando ali. A década de 80 foi a década de Mickey Rourke e ele reinava supremo entre o povo cabeça. E aqui, em “O Selvagem da Motocicleta”, começa seu pontificado. Aqui é o marco zero do epíteto ultracool do personagem típico oitentista. Rick Deckard pode tê-lo trazido à tona, mas é aqui que ele é definitivamente formatado. Tão exageradamente hipercool que obviamente não duraria muito tempo sem se tornar uma autocaricatura - mas, enquanto o ridículo de seu superlativismo não se tornava claro, reinou supremo.
“Rumble Fish”, como também era conhecido, não tinha só o galã da década a seu favor. A aparição inicial de seu personagem era cópia da icônica foto de Marlon Brando em “O Selvagem”, remetendo a fita aos filmes clássicos dos anos 50 e aos rebeldes sem causa de então - sutileza não era o forte do longa. Pra não dar nome pro Mickey Rourke, ele era conhecido como “Motorcycle boy”, um apelido realmente curtinho, que todo mundo com certeza iria preferir usar ao nome dele. Quem fazia o papel do pai dele era Dennis Hopper - outro sujeito que ficou famoso nas telas numa motocicleta, também como um alienado da sociedade em busca de algo indefinível. O irmão do garoto da moto, Enferrujado - digo, Rusty - James, começa a história com uma briga de gangues claramente remetendo à juventude transviada de “West Side Story”. E, se o espectador ainda não tiver alcançado qual o tema do longa, ainda tem um dono de lanchonete meio figura paterna interpretado por Tom Waits, aquele músico com toda uma atmosfera marginal em volta.
Essas referências todas com certeza já localizariam firmemente “O Selvagem da Motocicleta” na década de 80. Foi quando, pelo menos no Brasil, a garotada que cresceu realmente bombardeada pela televisão chegou à adolescência e início da idade adulta. Pela primeira vez uma geração tinha uma visão de mundo forjada de alto a baixo por uma cultura de massa globalizada e globalizante. Nos anos 70 o Rio de Janeiro ainda não era uma metrópole cosmopolita: quem era criança nessa época ainda conheceu mesmo na Zona Sul o comércio de bairro, o leiteiro que deixava o leite na porta de casa, as portarias e garagens abertas a todo mundo, as mães que ainda queriam que as filhas casassem virgens, essas coisas todas que hoje em dia a gente relaciona com o universo de Nelson Rodrigues. Mas a televisão daria uma cabeça diferente a essa criançada. E não à toa tanto vivente dessa geração não ficou deslumbrado e passou a se sentir acima dessa brasileirice terceiro-mundista toda - o famoso e típico sentimento “eu não sou estrangeiro, eu não sou brasileiro, sou de lugar nenhum, sou de nenhum lugar”, que explicavelmente predominou mais em São Paulo do que no Rio. Somado isso ao fracasso do milagre econômico, que encheu na infância esse povo de sonhos de grandeza só pra frustrá-los depois, à perda da Copa de 82 - não dá pra exagerar o golpe que isso deu na autoestima brasileira na época - e à decepção com as primeiras eleições diretas pra governador, criou-se o ambiente pedante que marcou a era, o de que o Brasil não tinha jeito, a única saída era o aeroporto, tudo no Brasil funcionava errado... o Ultraje a Rigor capturou bem isso com “Inútil”.
A frustração em “Rumble Fish” era mais com a falência das ideologias mesmo, dos hippies, da contracultura, e com a vitória do consumismo, mas serviu direitinho pra juventude oitentista projetar seus próprios sentimentos. E ainda tinha o estilo! Era em preto e branco, o que, como já vimos, era relativamente popular nos anos 80. Tinha peixes de briga coloridos (realmente não era nada sutil). Tinha ângulos estranhos. Tinha uma edição tão cool quanto Mickey Rourke. E o Mickey Rourke, daltônico e meio surdo, mais uma metáfora nada sutil para a alienação do sujeito em busca de algo indefinível. Depois de largar seu papel como líder de gangue (uma das falhas da fita - não dá pra acreditar em nenhum momento em Rourke como um chefe de bando de adolescentes marginais), ele sai em busca da mãe, não tendo nenhuma revelação ao encontrá-la e (spoiler adiante) morrendo na sarjeta tentando libertar aqueles peixes de briga coloridos porque, se eles tiverem mais espaço, talvez não lutem até a morte.
Entre as outras sutilezas da produção há um relógio elétrico em primeiro plano avançando enquanto Tom Waits faz um monólogo como um dia você se descobre com trinta anos - trinta verões, caramba, quanta coisa! - e um jovem Nicolas Cage traindo um igualmente jovem Matt Dilon pra ficar com a namorada dele e depois explicando ao sujeito que ele é um mané e que o mundo é assim mesmo, dos mais espertos. Mas tudo isso com uma fotografia lindíssima, direção de arte hiperelegante e a grife Coppola, em seu último filme relevante. Em suma, um hit irresistível entre a galera cabeça e sua indefinível busca por algo mais, enquanto o resto do universo permanece insensível e sem sentido. Sei, isso parece mensagem de fita do Woody Allen, mas serve direitinho aqui também.
Na verdade, todo esse estilo cenográfico já tinha sido experimentado muito mais radicalmente em “O Fundo do Coração”, o filme que afundou a carreira do Coppola, mas cuja direção de arte e concepção foram extremamente influentes na década. Está tudo lá: a vida percebida como referências da cultura pop, a direção de arte artificial, a emulação da Hollywood clássica (e os valores americanos pré-guerra) como um ideal perdido, a banalidade da existência... só que os espectadores tiveram muita dificuldade em se projetar nos medíocres personagens interpretados sem inspiração e carisma por Teri Gar e Frederic Forest. Todo mundo preferia o ultracool ultraelegante claramente superior Garoto da Motocicleta. Mas não se pode negar que “One from the Heart” desbravou um dos principais caminhos que o cinema da década seguiria, deixando sua influência em coisas de “Querelle” a “E la Nave Va”.
Mas todo esse artificialismo proposital tinha data de validade. O próprio superlativismo do gênero acabou relegando-o ao esquecimento alguns anos depois. levando junto o título que epitomizou a tendência. Se existe uma fita “datada” é “Rumble Fish”. Assim como o estilo de atuar de Mickey Rourke, que ainda renderia alguns relativos sucessos, principalmente em um longa que misturava um monte de ingredientes irresistíveis para a época: film noir, o demônio, Robert de Niro e o então conceituadíssimo Alan Parker numa trama misteriosa com uma solução óbvia de doer. Mas obviedade era o forte dessa turma, talvez por isso mesmo eles tivessem tanto seguidores. Até que, como diz Randy “The Ram” Robinson em “The Wrestler” chegaram os anos 90, muito mais sujos, deselegantes e sem pretensões cool intelectualoides e sumiram com Mickey Rourke, filmes preto e branco e românticos alienados em busca de um paraíso edipiano uterino perdido.
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