Blade Runner
Raríssimos filmes conseguem ser tão a cara da década quanto este. Woodstock era documentário e Sem Destino tinha um fatalismo pouco hippie. Embora a escola Memphis já estivesse em andamento e os New Wave já favorecessem calças de pregas de cós alto, foi este filme quem levou às massas (está bem, à garotada cabeça bem-nascida e afins) os figurinos dos anos 40, o art-decó, o film noir e até o jazz.
É bem verdade que na fita tudo é de segunda mão - embora os exteriores abusem de sombras e formas recortando a cena, Scott abusa de closes e teleobjetivas e PVs normais, ao contrário dos ângulos inusitados, iluminação de alto contraste e planos gerais dos noirs de verdade. A trilha de Vangelis é de música eletrônica sugerindo jazz. Os figurinos de anos 40 ganham tinturas punk. Mas isso é que foram os anos 80!
Comerciais de qualquer coisa tocavam jazz. Calças de cós alto deixavam as meninas com aparência mais gordinha (mais condizente com o visual hiperbombado de malhação da época, ao contrário dos definidos finos de hoje em dia). E a volta do film noir (conjugada com a popularização do VHS) acabou trazendo à moda o cinema americano clássico - até então a nouvelle vague reinava. Ford, Hawks e Huston voltaram à tona e substituiram os então mortos e inativos Godard, Truffaut e Pasolini, que aos poucos foram perdendo sua preponderância. Parte infalível da programação da TV Globo era o clássico americano preto e branco legendado de sexta à noite - às vezes em sessão dupla, no Sessão de Gala e Classe A, em seguida. Num gesto impensável atualmente, quando até o Telecine Cult ignora películas monocromáticas e canais por assinatura de cinema alardeiam que são totalmente dublados, a então Bandeirantes e a Manchete também investiram no filão com longas antigos e com subtítulos!
Mas nem aí acaba a influência de Blade Runner. A direção de arte mudaria para sempre a cara dos filmes de ficção científica. Compare-se o visual que Ridley Scott engendrou para a fita e os do cult "No Mundo de 2020", que também retrata um tira cínico num futuro superpopulado. Escuridão, sujeira, anúncios luminosos, figurinos pós-punk, androginia, até Matrix rende homenagem ao mundo pós-industrial e globalizado do Caçador de Androides. Que, como em toda boa película futurista, está cada vez mais parecida com o nosso dia a dia.
E, last but not least, depois de anos com os heróis brutais e cínicos (quando não amorais) em voga desde o sucesso do grande Sérgio Leone, Rick Deckard (segundo um amigo meu, neto do Rick Blaine) trouxe de volta o romantismo idealista dos anos 40. A versão do diretor, cortando o final feliz, incluiria também o fatalismo. Curiosamente, embora da primeira vez em que tenha visto a fita, tenha achado o fim completamente incoerente com o resto da película, ele acabou se tornando parte tão indissolúvel da história que o corte de Ridley Scott é que acabou virando uma decepção (1) - a negação do "felizes para sempre" acaba soando a uma traição não só ao nosso investimento emocional no ultrarromântico personagem como também ao sacrifício de Rutger Hauer alguns momentos antes.
Quando estreou, Blade Runner deixou muita gente sem entender direito. Até hoje, o povo que tinha mais de uns 25 anos na época não o considera essa coca-cola toda. A Veja e a IstoÉ, na época em que faziam longas resenhas de filmes, praticamente o ignoraram, e o JB o classificou como três estrelas em cinco; somente o Globo pôs o bonequinho de pé batendo palmas. A fita realmente é um tanto desencontrada, com um romance um tanto arbitrário, um protagonista demasiadamente passivo e cenas algo constrangedoras, como Harrison Ford se passando por um inspetor de voyeurs quando visita a replicante stripper. O excesso de estilo disfarça essas falhas e pode predispor gente sem o zeitgeist da era a considerá-lo um pegatrouxa (como o blogueiro considera por exemplo, o patético CORAÇÃO SELVAGEM, de David Lynch). Mas o estilo no Caçador de Androides é muito mais do que o glacê. É ele quem torna o ambiente tão opressor que deixa claro ao espectador que chegou-se a um mundo onde não é mais necessária a repressão política - a perda de liberdade tornou-se muito mais econômica, e aí fica a grande diferença entre o algo semelhante (e igualmente brilhante) "Alphaville" de Godard. O risco à democracia não é mais a ditadura, nem o ostensivo poder econômico das multinacionais, mas sim a despersonalização da sociedade de consumo. Tudo isso faz da película um clássico do cinema e imperdível pra quem quer ter a mínima ideia do que foi a década de 80.
(1) Outros detalhes que atestam contra o corte do diretor, na opinião do blogueiro, é a falta da narração em off. Sim, ela é mal escrita; sim, ela não informa nada que não saibamos pelo filme, com exceção do estado civil de Deckard e que aquela língua que o Edward James Olmos fala é um dialeto - que ele também entende, mas é fundamental na criação da atmosfera noir. E também a controversa sugestão (obscuríssima pra quem não ler nada sobre ela) de que Deckard é um replicante - o que, segundo o roteirista, é a completa negação de todo o roteiro!
junho 06, 2011
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