maio 30, 2006

A História da Copa do Mundo Capítulo XIII - A Copa de 1982

Os capítulos anteriores estão abaixo deste, em ordem decrescente, como sói acontecer em blogs. Leia lááááá de baixo, desde o começo, e acompanhe o fascinante painel histórico com a evolução da mentalidade e da tática do futebol.


A COPA DE 1982 - DEZ DIAS QUE ABALARAM O MUNDO

"O futebol italiano está muito atrasado taticamente em relação ao brasileiro".
A frase foi de Falcão. Depois de uma temporada inicial irregular o genial volante começava a se tornar um astro também na Itália. Apesar de jogar no exterior, o que até então acabava com as chances no time canarinho, ele era o titular indiscutível da seleção. Ele tinha sido deixado no Brasil durante a Copa de 1978 e em seu lugar foi o violento Chicão. Em 1979, Falcão liderou o Internacional para o único campeonato brasileiro invicto da história. Ele foi para a Europa numa época em que os meios de comunicação começavam a tornar-se onipresentes. Era possível ver seus gols e suas jogadas no Globo Esporte e ler sobre suas atuações na Gazzetta dello Sport que vendia nas bancas brasileiras (com alguns dias de atraso). O Brasil voltava a ter um maestro clássico como na época de Gérson.
No meio-campo, à frente dele, estava Zico. O Galinho era o astro do Flamengo desde o começo dos anos 70. A nação rubro-negra o idolatrava e ele era seguidamente o artilheiro do Carioca, embora os títulos não viessem desde que Paulo César fora embora. Os flamenguistas e a imprensa carioca acreditavam que ele começaria seu estrelato na Copa de 1978. E ela não poderia ter sido pior.
Tímido, escorregando seguidamente num gramado de várzea e inseguro, Zico acabou na reserva, ofuscado por Dirceu e Roberto. Jorge Mendonça ganhou sua posição por ser mais forte. Treinadores diziam que a era de jogadores tão franzinos acabara. A imprensa paulista achava que ele só jogava no Maracanã. No entanto, Coutinho acreditava nele e o escalou ao lado de Roberto, uma dupla que mostrou excepcional entendimento nas vezes em que jogou, para o jogo contra a Polônia. Com cinco minutos ele sofreu uma distensão. E distensões são contusões típicas de pessoas estressadas, seja por nervosismo ou por excesso de esforço físico.
Seu momento de glória não viera. A recuperação da distensão levou meses, lembrando Pelé em 1962. Mas o Zico que emergiu daquelas provações era um jogdor muito mais maduro e consciente. Jogando mais para o time, assumindo a liderança da equipe, o Galinho seria o campeão carioca, começando naquele ano a arrancada que tornaria o Flamengo de sua época uma lenda como o Expresso da Vitória e o Santos de Pelé. Entre 1978 e 1983 os rubro-negros ganhariam 3 títulos cariocas, 1 especial, 3 campeonatos brasileiros, 1 sul-americano e 1 mundial, fora diversos torneios e taças. O Galinho estava pronto para a seleção. Até os paulistas começavam a admirá-lo. Embora as simpatias bandeirantes recaíssem no outro brilhante maestro da linha média, Sócrates.
Jogador objetivo, capaz de economizar meia dúzia de dribles com um toque de calcanhar, sua marca registrada, Sócrates ressuscitou a camisa 8 do Brasil, o volante ofensivo, a posição de Didi. Esplêndido driblador, capaz de num relance achar alguém desmarcado e fazer um lançamento longo, fazia jus ao apelido de "doutor", mesmo que fosse originalmente conhecido assim por ser formado em medicina.
A eles se juntavam Cerezo, volante bom na marcação e nos passes curtos e inteligentes que articulavam o meio-campo; Júnior, lateral-esquerdo só no nome, com extremo domínio de bola e forte em tabelas, toques curtos e enfiadas na entrada da área; Leandro, elegante e refinado; Oscar, zagueiro sério e forte no jogo aéreo; Éder, ponta-esquerda fraco no drible, mas com um chute tão potente e venenoso que qualquer falta depois da linha média era perigosa para o adversário; e Luisinho, um quarto-zagueiro que os mais velhos diziam ser o novo Domingos da Guia.
Essa veneração começou com um jogo contra a Argentina um ano e meio antes. Maradona arrancava driblando todo mundo até chegar em Luisinho. O zagueiro, parado na frente do baixinho genial, simplesmente esticava a ponta do pezinho e não só desarmava o brilhante atacante como ainda saía com a bola e armava o jogo. Ele não só era bom na defesa como ainda por cima sabia atacar. Parecia mais um craque a se juntar à constelação que Telê Santana começou a armar em 1980.
Aquela seleção começou a nascer logo depois da Copa de 1974. Preocupada com o defensivismo cada vez maior, a CBD instaurou uma nova regra no campeonato brasileiro. Na época a vitória valia dois pontos. O novo regulamento previa três pontos se fosse por dois gols de diferença ou mais. Além do mais, a fórmula de disputa, com mais de cem competidores, incluía muitos times fracos na defesa. Quem tivesse um ataque poderoso, capaz de atropelar adversários medíocres e retrancados levava grande vantagem.
E assim o Brasil estava na contramão da tendência mundial cada vez mais defensivista. Havia outros times ofensivos no certame - a França de Platini, Giresse e Tigana; a Polônia de Lato e Boniek e a Argentina de Ardilles, Kempes e Maradona. Mas a seleção canarinho era a queridinha dos analistas e críticos. E depois de duas preparações desorganizadas em 1974 e 1978, os brasileiros finalmente voltavam a planejar tudo cuidadosamente, nos mínimos detalhes, para dar a seus jogadores toda a tranquilidade necessária.
Em 1980 a CBD, a Confederação Brasileira de Desportos, tornou-se a Confederação Brasileira de Futebol, depois que todos os outros esportes dos quais ela cuidava criaram suas próprias federações. Para seu comando foi eleito Giulite Coutinho, com as bênçãos do governo militar, para reorganizar o futebol do país. Foi criado um calendário, o campeonato brasileiro foi limitado a 40 clubes e o técnico da seleção pela primeira vez na história passou a ser exclusivo, em vez de exercer o mesmo cargo também em clube. A idéia de convocar os craques uma vez no ano e excursionar ou disputar um torneio e depois desbandá-los foi descartada. O time canarinho disputaria pelo menos uma partida por mês. Era a seleção permanente, com um treinador dedicado somente a ela.
A fórmula de disputa mudara novamente para a Copa da Espanha. Pela primeira vez 24 países, em vez dos tradicionais 16, participariam do Mundial. Divididos em 6 grupos com 4 times, os dois primeiros colocados iam para a segunda fase. Os 12 competidores então eram agrupados em quatro chaves de três. Os vencedores ganhavam uma vaga nas semifinais. O Mundial, como em 1974 e 1978, incluía a possibilidade de empates e classificações por saldos de gols. Mas os espanhóis não jogariam depois de seus adversários, já sabendo o resultado de que precisavam.
O jogo de abertura pôs frente a frente a Argentina de Menotti, discípulo do futebol ofensivo, e a Bélgica, sensação das eliminatórias, de quem se dizia ser a nova "Laranja Mecânica". Não era. Era um time bem armado e bem fechado. Os argentinos desprezaram seus adversários, não conseguiram penetrar na área adversária e num contra-ataque tomaram o único gol da partida. Mau presságio para os campeões.
A França também começou mal. Perdeu de 3 x 1 para a Inglaterra, cujo astro, Kevin Keegan, estava contundido e mal jogou a Copa. O mesmo acontecia com a Alemanha: Rummenigge disputou todo o Mundial fora de condições físicas. E o seu jogador mais técnico e habilidoso, Schuster, abandonara a seleção depois de brigar com o treinador Jupp Derwall na Copa da Europa. Nunca mais voltaria. A Polônia empatou com a Itália e com o time estreante de Camarões. A coisa parecia ir bem para os brasileiros.
E os canarinhos estrearam contra a URSS, do excelente atacante Blokhin A expectativa era enorme. A TV Globo aproveitou um cochilo dos concorrentes e era a única rede a transmitir os jogos da Copa. As outras não quiseram comprar um pacote também com as Olimpíadas, que na época dava prejuízo. E o canal de Roberto Marinho, tendo em mãos um espetáculo com um potencial de lucro tão grande, fez uma enorme campanha publicitária. Criou inclusive um prêmio para a rua mais enfeitada para o Mundial, iniciando uma tradição que segue até hoje.
Cerezo estava suspenso e, por algum motivo, em seu lugar Telê pôs o Dirceu de 1974 e 1978, mesmo que ele nunca tivesse jogado sob seu comando. Mas mesmo assim o Brasil comandava as ações até que Bal deu um chute despretensioso de longe e o goleiro Valdir Peres falhou grotescamente. O gol não estava no roteiro esperado e os brasileiros se enervaram. Os soviéticos se retrancaram.
No segundo tempo voltou Paulo Isidoro, que jogara no lugar de Falcão durante as eliminatórias. Ele foi um dos melhores da partida e seguidamente cruzou para a área. As bolas que não foram interceptadas pelo esplêndido goleiro Dasaev foram ridiculamente desperdiçadas por Serginho, visivelmente nervoso. Inexplicavelmente Telê Santana deixou no banco o vascaíno Roberto Dinamite. O centroavante do São Paulo, bem mais limitado, era um jogador irritável e temperamental, que inclusive já havia sido suspenso por seis meses por agredir um bandeirinha. No ano anterior ele chutara o rosto de um goleiro adversário caído na final do Brasileirão.
Mas os brasileiros tinham um timaço e, aos 30 do segundo tempo Sócrates pegou um rebote de escanteio na intermediária, driblou dois soviéticos e, do bico esquerdo da área chutou no ângulo direito de Dasaev, que se esticou todo e ainda conseguiu tocar na bola, mas não pôde evitar o gol.
A pressão aumentou. Os soviéticos estavam cansados de correr atrás da bola. Aos 43 do segundo tempo Paulo Isidoro tocou para Falcão na entrada da área. O volante simplesmente abriu as pernas e deixou a bola passar entre elas, deixando a bola para Éder, na entrada da área. O atacante levantou a bola e soltou um míssil de 149 km/h. Dasaev desta vez nem se mexeu, apenas sacudiu a cabeça.
O jogo parecia terminado, mas nos três minutos restantes, Luisinho, que quase não teve trabalho, foi facilmente vencido por um russo e cometeu um pênalti desnecessário. O juiz não marcou. No minuto seguinte, em lance idêntico, ele fez nova infração e o árbitro continuou ignorando. Mau sinal para os brasileiros, mas, com a virada parecia confirmar que seu time era imbatível.
A Argentina disparou 4 x 1 sobre a Hungria e praticamente garantiu sua classificação, que viria com uma vitória sobre El Salvador. Tigana foi promovido a titular e a França passou a atuar muito melhor. A Alemanha, com Rummenigge capenga, protagonizou um dos grandes micos das Copas.
Na estréia os germânicos perderam da Argélia por 2 x 1. O placar não diz o quanto os africanos foram melhores. Tanto que entraram no jogo seguinte, contra a Áustria, achando que nem precisariam correr muito. Perderam de 2 x 0. Os austríacos somavam duas vitórias (e cada uma ainda valia apenas dois pontos). No outro jogo os alemães fizeram 4 x 1 num Chile extremamente confuso. Tanto que em certo lance um jogador bateu uma falta para ele mesmo.
Assim a Áustria tinha quatro pontos, contra dois de Argélia e Alemanha. Um empate eliminaria os alemães, uma vitória germânica por mais de 1 x 0 mandava os austríacos embora.
Então a Alemanha correu alucinadamente, imprensou a Áustria, em dez minutos fez 1 x 0 e parou de jogar.
Parou mesmo. Não é que tenha parado de correr, nem que tenha se fechado na defesa. Simplesmente ficou tocando a bola em seu próprio campo, sem cruzar a linha média. Os austríacos nem tentavam pegá-la. Foram 80 minutos dessa palhaçada. Ridículo. Os argelinos foram embora muito irritados. Muito mesmo.
O outro mico foi da Itália. Caiu na chave de Polônia, Peru e Camarões. O único jogo nesse grupo que não foi empate foi um 5 x 1 dos poloneses em cima de Quiroga e seus companheiros peruanos. Os camaroneses tinham como destaque o atacante Milla e o esplêndido goleiro N´kono, o melhor arqueiro da história da África. No final os italianos se classificaram porque tinham feito e sofrido dois gols, enquanto os africanos contavam um gol e a favor e um contra.
Empatar contra Camarões e o horroroso time do Peru era demais. A imprensa italiana caiu em cima da seleção. Principalmente de Paolo Rossi. O atacante voltava de uma longa suspensão de dois anos, por envolvimento com apostas ilegais e manipulação de resultados. Antes da Copa fizera apenas três jogos, todos ruins. E apesar de marcar muitos gols, não era um grande craque. Ninguém entendia por que Bearzot, o treinador da Azzurra, insistia com ele. E tanto os jornalistas criticavam as péssimas atuações do time que os jogadores se irritaram e entraram em greve. Não dariam mais entrevistas até o fim do Mundial. Isso costuma ser um péssimo sinal, mostrando que a equipe está com os nervos à flor da pele.
Cerezo voltou ao time e participou da goleada de 4 x 1 sobre a Escócia, que também saiu na frente. Mas a virada desta vez veio no começo do segundo tempo. E Éder marcou mais um belíssimo gol, por cobertura, do bico da área. Fazer 4 x 0 sobre a Nova Zelândia foi apenas uma formalidade.
Itália e Argentina ficaram em segundo em seus grupos e caíram na chave do Brasil, fazendo o primeiro jogo. Gentile perseguiu Maradona aonde quer que ele fosse em campo, abusando da força física e fazendo as faltas necessárias para detê-lo. Os argentinos saíram na frente, mas os italianos viraram e venceram por 2 x 1. Isso obrigava os portenhos a ganhar dos canarinhos por um placar dilatado, torcer por eles contra a Azzurra e esperar que o saldo de gols os favorecesse ao final. Ou seja, eles tinham pouquíssimas chances.
E para aumentá-las entraram pressionando. O Brasil mal viu a bola nos primeiros 10 minutos. Aos 12 os argentinos fazem uma falta lá longe, quase no meio-campo. Éder cobra. A bola bate no travessão e Zico surge como um raio para mandar para a rede. A Argentina começa a dar adeus ao bicampeonato. E toma um baile.
Teve de tudo. Falcão desarmou Maradona com um toque de calcanhar dentro da área. Depois driblou todo mundo pela direita e encobriu o goleiro Fillol para botar a bola na cabeça de Serginho. Zico dá um toque entre cinco argentinos que só Júnior consegue alcançar, já na cara do gol. Depois os brasileiros ficam trocando passes. Ramón Díaz marca no finalzinho e nem comemora. A seleção faz 3 x 1, em sua melhor exibição. Maradona fica tão irritado com o show adversário que entra feito um búfalo em Batista e é expulso. Com um saldo melhor, os brasileiros só precisam do empate contra a Itália, mas ninguém, absolutamente ninguém no Brasil, espera menos do que uma vitória contra aquele time que em quatro partidas só marcou três gols e teve uma vitória. O lendário jornalista Sandro Moreyra comenta em sua coluna que só o Brasil pode se dar ao luxo de ter um Zico na ponta-direita (ignorando que, na prática, não havia extremas na equipe e Zico jovava no meio de campo).
O jogo foi três dias depois. Os italianos folgaram uma semana depois da vitória sobre a Argentina. Inexplicavelmente, depois de apenas 3 minutos, o locutor da única tevê transmitindo a Copa, Márcio Guedes, comenta que "a Itália parece cansada". Dois minutos depois um chuveirinho lá do bico da área encontra Paolo Rossi na quina da pequena área. A Itália já saía desfazendo a vantagem do Brasil.
Mas sair atrás não era problema para os canarinhos. Já tinha acontecido contra a URSS e a Escócia. Zico dribla seu marcador e vai entrar livre na área. Serginho o atropela, toma sua frente, e, cara a cara com o goleiro Dino Zoff, manda para fora. Sandro Moreyra diria que se fosse o juiz, marcaria escanteio.
Mas aos 12 minutos Zico se livra novamente do implacável Gentile e dá um lançamento para Sócrates na ponta-direita. O doutor invade a área e quando Zoff sai para cortar o cruzamento, chuta entre ele e a trave. Lembrando Gigghia.
O jogo estava novamente nos eixos. Era o script a que a torcida estava acostumada. Já, já, dispararíamos a goleada. Era só uma questão de tempo. A defesa contém todos os ataques italianos e sai tocando a bola com categoria. Uma beleza. Cerezo sai trocando passes lá de trás e... entrega no pé de Paolo Rossi?
Isso não estava no roteiro. Não era para os italianos reagirem de novo. Mas eles reagiam. Depois de 4 jogos sem fazer nada em campo, Paolo Rossi faz dois no Brasil em menos de meia hora. Mas não importa! A seleção tem muitos recursos. Eles que esperassem.
Eles não esperaram. Anteciparam-se em todas as bolas. A semana de descanso deu-lhes mais fôlego que os canarinhos. Depois de parar Maradona, Gentile persegue Zico como um cão de guarda. Numa jogada dentro da área segura o brasileiro pela camisa. Zico mostra o uniforme grotescamente rasgado para o juiz, mas ele não marca pênalti. Em outro momento o árbitro marca infração dentro da área, mas diz que a cobrança é em dois toques, é um tiro livre indireto. A Azzurra bota todo mundo na frente do gol e o lance não dá em nada. Fim do primeiro tempo.
Começa o segundo tempo. A torcida brasileira ainda está plenamente confiante. Mas as jogadas não saem. Serginho se enerva e atrapalha o ataque brasileiro. Roberto continua no banco. Luisinho falha na defesa e na frente. A péssima exibição na Copa acabaria com sua carreira. O grande líbero Edinho, capitão e alma do Fluminense, só seria aproveitado por Telê em 1982.
Mas o mais completo jogador do mundo na época veste a amarelinha. Falcão recebe a bola na entrada da área, escapa da marcação e chuta forte no gol. O Brasil finalmente empata, aos 22 do segundo tempo. Agora só falta disparar a goleada. Os italianos vão ter que abandonar a defesa e partir para o tudo ou nada. Finalmente os brasileiros vão ter espaço para jogar. Dois minutos depois Éder só tem pela frente um zagueiro. Ao seu lado, completamente livre, está Sócrates. Éder tenta driblar o defensor e perde o lance. Mas ninguém se preocupa. A Azzurra ataca desesperadamente e logo haverá outra chance de contra-ataque.
Mas Luisinho não está bem e cede um escanteio. Na escolinha se aprende que nunca se rebate um cruzamento para a entrada da área, mas é o que a zaga brasileira faz. Um atacante italiano na meia-lua chuta para o gol. No caminho a bola encontra o pé de Paolo Rossi, que desvia de Valdir Peres. Na linha de gol, Júnior levanta pateticamente a mão, pedindo impedimento do artilheiro. Por não ter saído lá de trás, o próprio lateral é quem dá condições de jogo para o Bambino d'Oro.
Só faltam 16 minutos e tinha sido um sufoco até então. Os brasileiros subitamente se apercebem de que podem mesmo perder aquele jogo. E quem parte para frente desesperada e desorganizadamente são eles. Os italianos organizam bem seus contra-ataques e marcam mais um gol. O juiz anula erradamente. Ainda há alguma chance. Aos 46 minutos Oscar cabeceia para o chão da quina da pequena área. Zoff, aos 41 anos, se estica todo e segura a bola pelo rabo em cima da linha. Sócrates, que estava pronto para pegar o rebote, tenta convencer o árbitro de que Zoff tirou a bola de dentro do gol. Não funciona. Fim de jogo. Fim de papo.
Os brasileiros não conseguem acreditar. Alguns ficam parados esperando pelo terceiro tempo. Outros acham que a tevê dará um jeito, "calma, amigos da Globo, já vamos resolver este pequeno problema". Outros ainda têm certeza de que o jogo vai ser anulado. Corre nas ruas o rumor de que Paolo Rossi foi pego no exame anti-doping. Puro boato, completamente infundado. Depois de toda a longa e bem-cuidada preparação, a melhor desde 1970, a seleção, em perfeita forma física e técnica, jogando pelo empate, perdeu.
O Brasil é obrigado a confrontar uma verdade: se em 1966, 1974 e 1978 foramos eliminados por causa da desorganização, pelo menos ainda conseguíamos chegar em 3o. ou 4o. lugar. Mas em 1982 tínhamos nos preparado longamente, com um cuidadoso planejamento e craques no auge da carreira. O futebol brasileiro tinha dado o melhor de si e perdera.
Em 1982 o Brasil faliu e entrou na recessão que faria os anos 80 serem conhecidos como "a década perdida". Em 1982 houve pela primeira vez em quase 20 anos eleições diretas para governador. Foi uma festa. Muitos dos inimigos da ditadura foram reconduzidos à política. Com a volta do voto a crise seria superada.
Não foi.
Começou então uma longa e negra era para o orgulho brasileiro. A sensação de que qualquer coisa que se fizesse seria inútil tomou conta do país. O sentimento de impotência e insignificância pode ser medido em versos como o da música "Inútil", do Ultraje a Rigor: "a gente não sabemos nem escovar o dente/ a gente não sabemos escolher presidente/ a gente joga bola e não consegue ganhar/ Inútil/ a gente somos inútil".
Aquela seleção engrossou a galeria dos times que jogavam bonito e não ganhavam nada: Hungria, Holanda, Áustria... os técnicos retranqueiros imediatamente culparam a sanha ofensiva de Telê Santana. Depois do gol de empate o Brasil deveria ter recuado. Não adiantou lembrar que foi de um escanteio que veio a derrota, quando a defesa toda estava lá atrás. Sandro Moreyra vociferava em sua coluna que os adversários deviam ficar satisfeitos em ver Zico na ponta-direita, tão longe do gol. "Zé da Galera", um personagem humorístico de Jô Soares, avisava que faltavam ponteiros na seleção.
Criou-se a mentalidade no Brasil de que o segredo da vitória era a retranca. O Flamengo de Zico se desmanchou e o próximo time dominante foi o Fluminense de Romerito, em que até os pontas ajudavam na defesa. Os técnicos rechearam o time de cabeças-de-área. Mesmo que quisessem escalar meias mais ofensivos, não os tinham à disposição. Depois da Copa a Itália vitoriosa começou a contratar os craques do resto do mundo para jogar seu campeonato. Zico, Cerezo, Sócrates e Júnior foram se juntar a Edinho e Falcão. Por aqui ficaram apenas jovens promessas e jogadores problemáticos que não gostavam de correr e defender. Os treinadores escalavam então mais gente de marcação no time, para que esses sujeitos preguiçosos tivessem "liberdade para criar". Começavam os anos negros do futebol brasileiro.
Ah, sim, a Copa continuou. A Alemanha e a França fizeram uma semifinal. Empataram em 1 x 1. Aos 7 minutos da prorrogação os franceses fizeram 2 x 0. Parecia que pelo menos uma seleção que jogava bonito chegaria à final. O técnico alemão botou o contundido Rummenigge em campo no desespero. Ele fez um gol e a jogada do outro, igualando o placar em 3 x 3. Nos pênaltis os germânicos bateram os gauleses. Defesa e futebol feio é que ganham jogo.
Na outra partida Paolo Rossi fez os 2 gols da vitória sobre a Polônia e virava o artilheiro da Copa em 3 dias e 2 jogos. Na final os alemães estavam cansados da prorrogação e com seu maior craque fora de condições. Foi uma moleza. Rossi fez mais um e acabou 3 x 1.
O mundo inteiro voltou a respeitar a Itália. O catenaccio era capaz de eliminar Maradona, Zico, Sócrates, Kempes, Falcão, Maradona, Boniek e Ardilles. Aquela era a fórmula do sucesso. Todos começaram a copiar as retrancas italianas.
Depois de tomar o Brasil, as trevas defensivistas engolfavam todo o globo.

PAOLO ROSSI

Paolo Rossi vendeu a mãe e não entregou.
Foi por isso que o atacante franzino, o "Bambino d'Oro" (garoto de ouro), quase não foi à Copa em 1982. Envolvido com uma máfia de apostadores, ele recebeu uma grana não tão boa assim para armar o resultado de um jogo, embolsou o tutu e não fez o combinado. Os mafiosos, em vez de ficarem quietos, resolveram entregar todo mundo. Chocou a Itália que o suborno que Rossi recebeu fosse muito inferior ao seu salário. A cobiça não é lá o mais inteligente dos pecados.
Rossi foi suspenso por três anos. Até 1983. A seleção italiana começou a ir muito mal. Nós dissemos três anos? Desculpe, foi engano, queríamos dizer dois anos. Nossa, que coincidência, dá certinho tempo dele voltar a jogar e se preparar para a Copa.
Mas por que o técnico Enzo Bearzot o achava tão fundamental? Ele não era forte, rápido, excepcionalmente habilidoso ou alto para disputar cruzamentos com os zagueiros. Com 1,74m e 66 quilos, baixo para um europeu, ele se valia de excepcional colocação, intuição para prever os movimentos dos defensores (será que a Força estava com ele?) e sua regularidade em todos os fundamentos de ataque: cabeceava bem, chutava com as duas pernas e tinha boa técnica.
Nascido em 1956, sua vocação para o gol levou-o a ser descoberto pelos olheiros da Juventus ainda aos 16 anos, mas, aos 17, seguidas contusões nos joelhos levaram-no a ser liberado para o Vicenzia, da segunda divisão. Rossi marcou um caminhão de gols e o Vicenzia subiu para a Liga dos grandões. Rossi marcou outro montão de gols e o clube recém-promovido chegou em segundo, atrás só da Juventus.
Tais feitos não passaram desapercebidos e Bearzot o levou para a Copa da Argentina, onde ele teve boas atuações, principalmente contra os alemães. Apesar de franzino perto dos germânicos, sabia como fugir das faltas e das divididas. Na decisão do terceiro lugar, contra o Brasil, fez o cruzamento para o gol italiano.
O garoto de ouro teve então seu pequeno entrevero com a justiça italiana. E eles pegam no pé mesmo, até Zico teve seus problemas com o Fisco de lá. Mas frente às derrotas da Azzurra, os juízes resolveram ser clementes e diminuir a pena do Bambino. E lá foi ele para a Espanha com a seleção, mesmo tendo jogado só 3 vezes no ano.
Ele passou em branco nos 3 primeiros jogos. A Itália se classificou em segundo na chave sem uma única vitória, empatada com Camarões em pontos e saldo de gols: os italianos se classificaram porque tinham marcado um gol a mais. Com tais resultados, a Azzurra caiu na chave de Brasil e Argentina. A coisa não parecia boa. A imprensa pedia a barração do Bambino d'Oro.
Mas a Itália se superou contra a Argentina. Gentile anulou Maradona e Rossi teve sua primeira atuação legalzinha no Mundial. E aí os italianos pegaram aquele timaço brasileiro precisando vencer.
Rossi fez um de cabeça numa bola cruzada despretensiosa. Outro depois de roubar um raríssimo passe errado de Cerezo. Um terceiro quando uma rebatida de escanteio caiu nos seus pés. Nenhuma brilhante jogada individual. A bola parecia procurá-lo, como a Túlio em seus bons tempos. Um engraçadinho sugeriu que ele tinha vendido a alma ao Diabo.
Sim, porque não parou aí. Depois dos três contra mais uma "seleção-que-joga-bonito-mas-é-eliminada-num-jogo-histórico-e-vira-lenda", ele resolveu a semifinal com mais dois gols e mais um na final. Depois de mais de dois anos de provações, Paolo Rossi em dez dias, da partida contra o Brasil até a final, inscreveu seu nome na história do futebol.
Depois da Copa ele se juntou à Juventus novamente, num time que contava ainda com Platini e Boniek e ganhou a Liga dos Campeões e a italiana, mas sua carreira começava a declinar. O Diabo deve ter vindo cobrar a alma dele. Suas atuações começaram a empalidecer e, apesar de convocado para a Copa da Colômbia, digo, México, nem jogou. Encerrou a carreira no ano seguinte, com apenas 31 anos, e foi se dedicar à pesca em alto-mar, sua outra paixão. Rossi ganha dinheiro com construção civil, abandonou o mundo do futebol e raramente se ouve falar dele. Dá quase para pensar que é séria aquela história do pacto...

ZICO

O maior ídolo do clube mais querido do Brasil só não tem no seu armário de troféus a medalhinha da Copa do Mundo. Tem um bronze de 1978, que certamente mal deve aparecer ofuscado por todo aquele ouro minerado com a camisa do Flamengo. Ao contrário de Puskas e Cruyff, que só disputaram um Mundial, Zico jogou 3, ficando de fora em 1974 e 1990 por opção dos técnicos. Aliás, o ponta-de-lança decidiu encerrar sua carreira nos gramados logo após Lazaroni definir seu grupo para a malfadada campanha na Itália. Talvez o resultado fosse melhor se tivesse levado o Galinho de Quintino.
Zico era rápido, chutava bem com os dois pés, ótimo driblador e tinha excepcional visão de jogo, sendo talvez sua jogada mais característica a enfiada curta da entrada da área para um companheiro que estivesse entrando, tão bem colocada que só ele conseguiria alcançar a bola no meio de toda a defesa. Também era excelente cabeceador, apesar da baixa estatura, sendo famosa a tabela que fez de cabeça com Luisinho das Arábias no meio da alta defesa do Vasco. Também era capaz de perfeitos lançamentos longos, como aquele para Nunes no primeiro gol do título do Mundial Interclubes de 1981.
Em suma, Zico era excelente em todos os fundamentos do ataque. Para não dizer que ele era perfeito, ele não ajudava no combate, como seu companheiro Tita, por exemplo. E não porque lhe faltasse disposição para tanto. Carlos Imperial conta que certa vez foi à Gávea tratar de negócios quando já quase anoitecia e encontrou o Galinho sozinho no campo de treinamento batendo numas bolas. O produtor e figuraça foi até ele e perguntou por que ele estava ali sozinho até aquela hora e obteve a seguinte resposta: "é que eu percebi que meu chute de esquerda na corrida não estava muito bom e resolvi treinar um pouco para aprimorar".
Arthur Antunes Coimbra, apelidado Arturzico e depois só Zico, nasceu em 1953 numa família de classe média baixa de Quintino, subúrbio do Rio de Janeiro. Seu irmão Edu consagrou-se no América, mas o jornalista Celso Garcia ouviu que na família tinha um garoto que jogava ainda mais bola. Ele foi ver uma partida do time de peladas de Zico, para garotos de 11 a 13 anos, e o Galinho fez 10 dos 14 gols na vitória por 14 x 4.
Assim Zico acabou no Flamengo, mas como era muito franzino, foi obrigado a fazer um trabalho especial de musculação e dieta para ganhar massa muscular, altura e potência, cujo resultado foi um absoluto sucesso, apesar das acusações que ele ouviria durante anos e anos de que não tinha força para o futebol moderno.
O êxito do trabalho dependeu de muito esforço do Galinho, mas Zico já tinha dois outros jogadores na família e sabia que a vida no futebol não era só meter bola debaixo das pernas dos beques. E com tanta dedicação em 1971 o técnico Fleitas Solich foi buscá-lo nos juvenis para estrear no time titular contra o Vasco. Também fez parte da seleção que venceu o torneio pré-olímpico, mas acabou ficando de fora do povo que foi para a Olimpíada. Injustiça com o artilheiro, melhor para o Flamengo, que o tem à disposição para seu primeiro título carioca.
Em 1974 Zico se firma no time titular do Flamengo, fazendo muitos e belos gols e levantando o campeonato carioca. Zagallo ignora o jovem artilheiro em sua confusa lista para a Copa da Alemanha. É a primeira chance do Galinho que se vai. Sua estréia na seleção se dá em 1976, debaixo de grande expectativa. Muita gente fica decepcionada com ele, tanto quanto parte da torcida ficou com Ronaldo Fenômeno no Mundial de 1998. Mas sua atuação contra a Itália no torneio que os americanos organizam para comemorar o bicentenário da Independência é esplêndida e o Brasil, com um jogador a menos, faz 4 x 1 na Azzurra.
Entre 1976 e 1978 seu prestígio sobe, mas ele não ganha nenhum título. A imprensa paulista e os torcedores de outros times acusam-no de faltar-lhe garra de campeão e que só joga no Maracanã. Na verdade, outros grandes esquadrões dominam o futebol brasileiro - o Internacional de Falcão, o Cruzeiro de Dirceu Lopes, o Fluminense de Rivellino - e seu estilo de jogo está à frente de seu tempo. Atacante de alta movimentação, sempre se deslocando no campo atrás do espaço para jogar, desnorteando as defesas, Zico não se encaixava no 4-2-4 ou no 4-3-3 de transição que a maioria dos treinadores dos anos 70 usava. Mas isso mudou quando Coutinho assumiu o Flamengo - e a seleção brasileira.
Inicialmente tímido, Coutinho não soube impor seus conceitos à seleção brasileira e acabou aceitando a interferência do presidente da CBD, Heleno Nunes. Zico, que não teve grandes atuações, acabou no banco, e quando teve nova chance, contra a Polônia, saiu com 5 minutos de jogo, com uma distensão, o tipo de contusão que normalmente aponta um atleta sob tensão e estresse psicológico.
Durante o longo período de convalescença, enquanto fazia novo trabalho de preparação física e avaliava sua atuação na Copa, Zico ganhou nova maturidade e finalmente assumiu o papel de líder na Gávea. Naquele ano, vencendo os 2 turnos do campeonato carioca, o Flamengo começaria o maior período de sua história, sempre capitaneado pelo Galinho.
Tricampeão carioca, Bicampeão brasileiro, campeão sul-americano, campeão mundial interclubes, Zico era o grande candidato a estrela da Copa de 1982, na seleção de Telê, ao lado de Falcão, Sócrates, Cerezo, Júnior e Leandro. E nos primeiros jogos, finalmente confirmou as expectativas. Até trombar com Paolo Rossi. E seus sonhos de vencer no maior palco mundial do futebol serem adiados por mais quatro anos.
Zico ainda foi campeão brasileiro em 1983, quase por inércia. O Flamengo não venceu um único jogo fora de casa, mas era um time tão superior que levou o título para a Gávea com uma facilidade impressionante. Na decisão a torcida rubro-negra já sabia que o Galinho estava se mudando para a Itália, para jogar na Udinese ao lado de Edinho. Só não sabia, embora provavelmente desconfiasse, que sua saída desarticularia completamente a equipe.
Mesmo com Júnior, Leandro, Tita, Lico, Mozer e outros craques, o Flamengo sofreu derrotas incompreensíveis e parou de ganhar títulos. Perdera seu ponto de referência, o homem que todos esperavam que a qualquer momento resolveria tudo. O naufrágio foi total. Presidentes renunciaram, contratações completamente equivocadas foram feitas, teve de tudo. Até um tricampeonato do Fluminense.
O jejum de títulos só foi acabar quando Zico voltou. Em 1985, com problemas com a Justiça italiana e com os dirigentes da Udinese e com o patrocínio de um pool de empresas, o Galinho conseguiu voltar à Gávea, sob o declarado intuito de jogar a Copa de 1986 e conseguir o título que já lhe escapara 2 vezes. E tudo parecia correr bem até ele encontrar o pezinho de Márcio Nunes, zagueiro do Bangu, numa dividida.
Zico foi obrigado a se submeter a uma cirurgia e no dia 30 de abril voltou à seleção num amistoso contra a Iugoslávia, fazendo 3 gols, num deles driblando a defesa inteira. Parece que agora a coisa vai, mas o joelho volta a piorar e ele é obrigado a mais e mais fisioterapia.
Zico foi poupado nos primeiros jogos da Copa de 1986. Telê o põe no final de alguns jogos, na esperança de tê-lo na hora da decisão. Mas a França empata e com a partida difícil, o treinador o lança mais cedo do que de costume.
Com o Galinho ainda frio o resto do time, em respeito, pede que ele bata o pênalti contra a França que saiu de um lançamento seu. Zico cobra e o goleiro Bats pega. Acaba aí sua participação em Copas do Mundo.
Com sua dedicação costumeira, Zico se submeteu a uma segunda cirurgia e após um longo período finalmente consegue voltar a jogar futebol, mesmo aos 34 anos, sem problemas. Comanda o Flamengo em mais um título brasileiro, em 1987 e, sem a mobilidade e velocidade da juventude, fixa-se mais atrás, articulando o time com sua visão de jogo, ainda melhor com a experiência, seus toques de primeira e seus lançamentos. Ainda tem esperança de ser convocado para a seleção brasileira, ainda mais que o esquema de Lazaroni pede justamente alguém exatamente com essas capacidades.
Mas Lazaroni tinha um grupo fechado e o Galinho ficou de fora.
Zico resolveu pendurar as chuteiras em 1990, ao ficar claro que não teria uma chance no escrete. Collor o chama para ser Secretário de Esportes e ele aceita, desenvolvendo um projeto de lei que seria aproveitado em quase sua totalidade na Lei Pelé. Mas desentende-se com o governo e o deixa. E, como Pelé, aceita um convite para jogar num mercado distante, o Japão.
No Japão Zico se tornou um grande ídolo e ajudou a desenvolver o esporte. Seu carisma e seu talento atraem o interesse da garotada de tal forma que, aos 41 anos, quando ele decide abandonar de vez os gramados, os japoneses patrocinam seu projeto do Centro de Futebol Zico e o contratam primeiro como consultor e depois como treinador.
Quando Zagallo começou a ter problemas de relacionamento com a seleção, em 1998, Zico foi lembrado para o papel de diretor-técnico, que abandonou logo depois da Copa. Quatro anos depois, após o fracasso do Japão no Mundial disputado em casa, o técnico francês Phillipe Troussier foi dispensado. Em quem mais eles poderiam confiar então?
Zico atualmente é o treinador da seleção japonesa, classificada para o Mundial e terceiro adversário do Brasil na Copa de 2006. E seu coração certamente estará dividido nesse jogo, justamente no único palco que nunca lhe foi grato em toda sua carreira.

FALCÃO

Alto, longilíneo, com a bola sob absoluto controle, a cabeça erguida procurando a melhor alternativa, dominando toda a meia-cancha e subindo ao ataque no momento certo para o gol decisivo, Falcão foi um dos melhores jogadores do meio-campo brasileiro, o último volante clássico, antes da posição passar a exigir muito mais capacidade de marcação do que de organização. Com o campo de jogo desenrolando-se à sua frente como um mapa de batalha, a simples presença dele na meia-cancha dava solidez e fluidez a qualquer time, tornando-o sólido na defesa e decidido no ataque.
Entre os grandes momentos de Falcão na seleção estão uma antecipação na área brasileira, em que tira a bola de Maradona com um charles, e o belo gol de empate contra a Itália, quando parecia que todo aquele sufoco ficaria para trás e finalmente avançaríamos para as semi-finais. Ledo engano. Mais outros grandes momentos são raros, porque por algum motivo absolutamente incompreensível, ele só foi se tornar titular em 1979. Aliás, incompreensível não: jogando no Rio Grande do Sul, longe dos principais centros econômicos e de administração esportiva, sem ampla cobertura e pressões da imprensa, o elegantíssimo volante viu seu lugar na Copa de 1978 ser ocupado por Chicão, que ficou famoso ao quebrar grotescamente a perna de um adversário na final do Brasileirão de 1977.
Em 1979/80, aliás, Falcão atravessava fase tão esplendorosa que foi o primeiro jogador brasileiro contratado após o mercado italiano voltar a permitir estrangeiros. Ele comandou o desacreditado Internacional a um inédito terceiro título nacional - e invicto, façanha nunca repetida - eliminando no caminho o Palmeiras, que todos consideravam a melhor equipe brasileira. Em pleno Morumbi Falcão fez 2 gols e comandou a vitória por 3 x 2. O técnico palmeirense, Telê Santana, foi para a seleção e manteve o volante como seu titular mesmo depois que ele foi para a Itália. Todos no Brasil sempre souberam que qualquer um escalado ao lado de Cerezo, Zico e Sócrates só estava guardando a vaga do volante.
Falcão era técnico, habilidoso e inteligente, com um senso de colocação que sempre o punha no caminho do meia adversário. Mesmo jogando como volante, sempre marcou gols decisivos e sua primeira temporada na Itália foi algo decepcionante justamente porque seus empregadores pensavam que ele seria o artilheiro do time. Em pouco tempo perceberam que tinham adquirido um jogador muito mais importante.
Falcão capitaneou em 1984 o único título da Roma conquistado sem a "sugestão" de Mussolini, torcedor da agremiação, de que aquele time deveria ser campeão. Entre seus momentos antológicos, um que define sua elegância e inteligência: num contra-ataque que vem da direita, ele corre pelo meio e recebe o passe: abre as pernas e deixa passar para o companheiro que corre pela esquerda e continua avançando. O jogador da esquerda toca de novo para Falcão, que novamente abre as pernas e deixa a bola para aquele que vinha pela direita, que, obviamente, entra sozinho para fazer o gol, depois dos dois corta-luzes do apoiador. Economia de gestos, elegância, inteligência, efeito. Esse era o futebol de Falcão.
Paulo Roberto Falcão nasceu de família humilde em 1953. Aos 11 anos catava garrafas vazias para pagar a passagem para treinar no Internacional. Aos 18 anos Dino Sani o pôs como titular na equipe. Em 1972 chegou às semi-finais das Olimpíadas, atrás apenas de 3 times comunistas, que escalavam seus times principais dizendo que todos os atletas num governo socialista eram "amadores" (esse conceito de que o futebol olímpico deveria ser "amador" prevaleceria até 1984).
Em 1975 e 1976 foi bicampeão brasileiro. Em 1979 conseguiria o único título invicto da história da competição. Após sua temporada vitoriosa na Roma, em 1985 teve um problema nos meniscos e os italianos acabaram dispensando-o, sendo contratado pelo São Paulo, onde ainda conseguiu ser campeão paulista. Foi convocado para a Copa de 1986, mas os problemas no joelho o deixaram a maior parte do tempo no banco, e, quando em campo, decepcionou. Encerrou a carreira logo depois, tornando-se comentarista, levando para a tevê a mesma elegância e inteligência que sempre demonstrara nos gramados, o que acabou lhe valendo um convite para dirigir a seleção após o fracasso em 1990.
Falcão dirigiu o escrete canarinho numa época confusa, em que novamente se achava que faltava "amor à camisa" e "espírito de seleção" aos jogadores, principalmente aqueles que atuavam no exterior. Sem poder contar com os maiores craques brasileiros, teve uma sequência de maus resultados e acabou dando lugar a Carlos Alberto Parreira. Mas a experiência não empanou seu prestígio e até hoje ele continua dando suas opiniões, sempre econômicas e elegantes, na Tv Globo, onde será o principal comentarista durante a Copa da Alemanha.

A História da Copa do Mundo XII - A Copa da Argentina

Os capítulos anteriores estão abaixo deste. Role o blog para baixo para lê-los. Leia desde o começo e acompanhe o fascinante painel histórico sobre a evolução tática e as Copas do Mundo.

A COPA DE 1978 - 6 x 0, O NÚMERO DA BESTA

Em 1976, Isabelita, a outra esposa de Juan Perón, aquela que não era a Madonna, presidia a Argentina, depois da morte de seu marido. Terroristas, comandos paramilitares, caçadores de comunistas e amigos praticavam atentados e matavam pessoas. A economia ia mal. Então, quando parecia que nada poderia ser pior, os militares deram um golpe e tomaram o governo. E, como os argentinos iriam sediar a próxima Copa, decidiram que, para se tornarem populares, nada melhor do que ganhar o título mundial perseguido desde a final de 1930. Era o mesmo raciocínio que Mussolini teve em 1934, Hitler em 1938 e o governo húngaro em 1954.
Mas para os portenhos a coisa não correu tão suavemente. O presidente do comitê organizador foi assassinado por opositores do regime. Já existia a Anistia Internacional e eles ficaram perturbando a FIFA com relatórios mostrando que tinham desaparecido cerca de 10 mil pessoas desde o golpe. E assim como na Alemanha nazista, eles não tinham sido abduzidos por extraterrestres (nem pelo Garrincha).
Mas a FIFA manteve a palavra. E, para mostrar a importância do futebol no país, a oposição fez um acordo com o governo para que não houvesse atentados. E realmente não houve. A nação ficou em paz durante todo o Mundial. Repetindo o gesto de Mussolini, o presidente militar Videla chamou os jogadores da seleção e lhes fez um discurso apelando ao seu patriotismo para vencer o torneio. Eles deveriam fazer todo o possível dentro de campo. Fora das quatro linhas, insinuou Videla, ficaria a cargo dele.
E o Brasil também estava sob regime militar. Ainda. Só que com as crises econômicas do petróleo, os milicos estavam se tornando rapidamente impopulares. João Havelange, fora eleito para comandar a FIFA em 1974. Um almirante, Heleno Nunes, foi indicado presidente da CBD, com o intuito declarado de usá-la com fins políticos. Ficou famosa sua frase "onde a Arena vai mal, um clube no nacional". Onde o partido do governo, a Arena, fosse mal votado, era posto um time do local no Campeonato Brasileiro. Para se ver a quantas andava o prestígio dos arenistas, basta dizer que o "Brasileirão" chegou a ter 104 clubes disputando-o (!!!).
O técnico para a Copa era Cláudio Coutinho. Seu primeiro título com o Flamengo só viria em 1978, depois do Mundial. A lendária equipe de Zico & cia. ainda não havia sido montada. No entanto, Coutinho, que mal começara sua carreira de treinador, estava no comando da seleção desde 1977. Ele foi escolhido por trabalhar há muito com a CBD - era o preparador físico na Copa do México - e porque era... capitão do exército. No final dos anos 60 o presidente Médici, entusiasmado com o trabalho de João Saldanha, chegou a pensar em oferecer-lhe a presidência da CBD e Coutinho foi o encarregado de contar que João era comunista.
Assim, com uma patente inferior à do Almirante, Coutinho aceitou todas suas interferências, mesmo sendo um treinador brilhante, estudioso de teoria e, ao contrário de Zagallo em 1974, atualizado com as concepções mais modernas do jogo. Sendo, porém, um treinador jovem e inexperiente, não conseguiu transmitir grande parte de suas idéias aos jogadores. Usava expressões estranhas ("polivalente", "overlapping", "ponto futuro") e insistiu em experiências descabidas, tais como usar o brilhante quarto-zagueiro Edinho como lateral-esquerdo e o lateral Toninho como ponta-direita! Também cometeu equívocos como deixar Falcão no Brasil e levar o violento cabeça-de-área Chicão.
E assim, mais uma vez o Brasil chegava na Copa sem ter um time titular. As duas primeiras partidas foram medíocres, disputadas num estádio recém-construído, em que o gramado se desmanchava com os jogadores passando por cima. O Brasil empatou em 1 x 1 com a Suécia e 0 x 0. As duas promessas do time, Zico e Reinaldo, não conseguiam mostrar seu jogo, escorregando toda hora. Foi quando o almirante resolveu interferir e sugeriu a escalação do time "pesado", isto é, jogadores menos leves e ágeis, porém mais capazes de enfrentar as defesas fisicamente.
Zico perdeu a vaga para Jorge Mendonça. Reinaldo para Roberto Dinamite. No decorrer do torneio, Cerezo seria substituído por Chicão. E com essa nova formação o Brasil entrou para enfrentar a Áustria. Os austríacos haviam vencido seus dois jogos. Se o Brasil não ganhasse seria eliminado.
A partida foi dura e muito física. Os austríacos se fecharam na defesa. Estavam classificados, mas se perdessem por mais de um gol de diferença, ficariam em segundo na chave. O Brasil conseguiu marcar aos 40 minutos, num lance típico de "centroavante trombador". O brilhante atacante Roberto Dinamite, do Vasco, recebeu um cruzamento de Gil, dominou a bola entre dois zagueiros e chutou para a rede. Os dois times voltaram para o segundo tempo menos dispostos. A Áustria estava satisfeita com o resultado. O Brasil também. Não deveria.
A Argentina também ficou em segundo em sua chave. Seus resultados vinham sendo bem estranhos. Na estréia os portenhos jogaram mal e só viraram o placar contra a Hungria depois que o juiz expulsou dois magiares. Contra a França um pênalti duvidoso providenciou o primeiro gol. Mas a Itália venceu por 1 x 0 e assegurou o primeiro lugar. Assim argentinos e brasileiros integrariam o mesmo grupo na segunda fase. Ia voar pena para todo lado.

BOX

Contra a Hungria os franceses usaram um estranhíssimo uniforme branco com listras verdes verticais. Na verdade as duas seleções haviam ido para o estádio somente com as mesmas cores e não haviam levado trajes reservas. A solução foi fazer um sorteio. O perdedor usou a camisa do clube dono do estádio, disponível nos vestiários.

No grupo 4 estava a sensação da Copa passada, a Holanda. Mas Cruyff não viera. Alegou que não queria ser conivente com a ditadura argentina. Seus companheiros de time espalharam que ele pedira um prêmio em dinheiro. Sem o craque o carrossel não conseguia rodar e a "Laranja" apresentou um futebol bem mais convencional. Quem chegou em primeiro na chave foram os surpreendentes peruanos, com 2 vitórias e 1 empate, 7 gols a favor e 1 contra. Os holandeses só conseguiram a vaga no saldo de gols. Alemanha e Polônia completavam os grupos da segunda fase.
Sem Beckenbauer e Gerd Muller os alemães perderam o brilhantismo. Seu jogo marca-lança-corre-cruza-gol os deixou com chances até a última rodada. Contra os holandeses saíram na frente, mas a "Laranja" partiu para cima no desespero e conseguiu o empate a sete minutos do fim. Van der Kerkhof fez um gol contra e outro a favor. A Holanda também venceu a Itália, o time mais regular da competição, e ganhou a vaga na final.
Do outro lado as coisas foram mais complicadas. O Brasil começaria contra o Peru. O técnico peruano não resistiu a se vangloriar de como seu time era melhor do que os tricampeões mundiais, seu ataque bem melhor e seus jogadores mais habilidosos. Em meia hora a seleção canarinho já tinha feito 2 x 0 em dois chutes de Dirceu, um deles um frango de Quiroga. Os peruanos continuavam com um goleiro tão fraco como em 1970. E olha que eles tinham naturalizado um argentino para ficar debaixo dos paus. Pelo jeito não tinha adiantado muito. Roberto sofreu um pênalti no final e Zico bateu. Placar final, 3 x 0. No outro jogo os argentinos enfim tinham jogado bem e feito 2 x 0 nos poloneses.
A próxima partida já era Brasil x Argentina.
A seleção canarinho entrou assustada, mas logo tomou conta do jogo. Roberto se contundira no pênalti contra o Peru e estava fora de condições. Perdeu gols que normalmente não perdia. Zico entrou no final e também desperdiçou sua chance. O Brasil inteiro acompanhou a partida vendo-a por detrás do gol, já que só havia duas câmeras no estádio, uma atrás de cada meta. A torcida cobria o gramado com confete e rolos de papel higiênico para atrapalhar o adversário. Coutinho achou que o 0 x 0 era bom, já que os brasileiros tinham saldo de gol melhor.
PEEEEEEEEENNNNNNN!!!!!! Erroooooooooooo!!!!!!!
Preocupados em que todos os argentinos vissem como os militares tinham armado uma grande seleção, os organizadores da Copa tinham arrumado para que a Argentina jogasse num horário próprio. Na última rodada eles entrariam depois do Brasil.
Os brasileiros enfrentavam a Polônia, que ainda tinha remotas chances. Os canarinhos saíram na frente, a Polônia empatou aos 44 do primeiro tempo e exibindo em dez minutos mais futebol do que em todo o resto da Copa, o Brasil fez 3 x 1, aos 12 e aos 17 da etapa final. Antes do segundo gol a bola bateu três vezes na trave. A Argentina entrou em campo duas horas depois. Sabia que precisava fazer pelo menos 4 x 0 nos peruanos. Seus jogadores estavam visivelmente nervosos e apressados. Mau sinal.
Para os brasileiros.
O argentino naturalizado peruano Quiroga deve ter se confundido. Provavelmente entrou em campo, viu que a camisa dele não era igual à de nenhum dos dois times, mas como um monte de argentinos estava do outro lado então era com eles que ele deveria jogar!
Quiroga falhou feio em vários lances. Com 5 minutos do segundo tempo o jogo já estava 4 x 0. Terminou 6 x 0. A Argentina estava na final.
Quiroga concedeu recentemente entrevistas dizendo que fora instruído pelo comando da delegação a facilitar as coisas em nome da amizade entre os dois países. Que os dois governos estariam envolvidos. Mas desde aquela noite não só os brasileiros como o mundo inteiro já achava a história toda suspeita. Criaturas mais isentas (provavelmente com sangue de barata) lembravam que o arqueiro peruano tinha falhado grotescamente num gol de Dirceu e que sua seleção entrou em campo eliminada, sem nenhuma motivação. Não funcionou. O jogo ficou conhecido como a maior suspeita de "marmelada" das Copas. Coutinho declarou que o Brasil era o campeão moral da competição, saindo como o único invicto e com mais pontos. Depois da confissão de Quiroga esse título já não parece tão patético e ridículo como a imprensa fez questão de frisar na época.
A final começou catimbada. Como já dizia um engraçadinho, juiz que apita jogo da Argentina merece ganhar adicional de insalubridade. O capitão Passarella, líder e alma daquela equipe, implicou com o gesso que van der Kerkhof usava na mão desde o início do torneio. O jogo atrasou enquanto se discutia o que fazer. O holandês ficou algum tempo debaixo da torneira para amolecer a proteção ortopédica.
Os argentinos jogaram melhor no primeiro tempo e fizeram o primeiro gol aos 38 minutos. No segundo voltaram para segurar o resultado e a "Laranja" apertou, mostrando o brilhantismo de 1974 em alguns momentos. Empataram aos 38 do segundo tempo. No último minuto Resenbrink entrou livre na área, deslocou o goleiro Fillol com um toque e viu a bola bater na trave. A partida iria para a prorrogação.
E nela só deu Argentina. Os holandeses pareciam sem condições físicas. Os portenhos, cheios de fervor patriótico e empurrados pela torcida, correram muito mais e fizeram 3 x 1. A "Laranja" faria companhia à Hungria e ao Wunderteam no rol de seleções brilhantes e sem título. Provavelmente aqueles jogadores andam por aí até hoje dando entrevisttas na tevê holandesa de como o futebol era mais bonito no tempo deles. Na disputa pelo terceiro lugar o Brasil bateu a Itália por 2 x 1, com uma bomba de Nelinho da lateral que fez uma curva de virtualmente 90 graus antes de entrar na rede, um dos mais belos chutes da história. O gol italiano veio de uma jogada de um certo Paolo Rossi.
Foi a Copa mais equilibrada da era moderna. A maioria dos times estava recheada de atletas velhos demais misturados com outros inexperientes demais. Todos tentavam imitar pelo menos algumas idéias do carrossel holandês, mas a maior parte de seus jogadores já estavam na ativa bem antes de 1974 e não compreendiam bem os conceitos de alta movimentação. O técnico da Argentina era César Menotti, que se advogava defensor do futebol ofensivo e utilizou um 4-3-3 com pontas abertos. Com o apoio dos laterais e do zagueiro Passarella em certos momentos os argentinos reviviam o 2-3-5 da Pirâmide do século XIX!
César Menotti, num gesto bem mais significativo do que a ausência de Cruyff, recusou-se a cumprimentar os militares na festa da vitória.

MARIO KEMPES

Kempes foi em 1978 o artilheiro da Argentina e da Copa, com 6 gols. Rápido e ciscador, com chute forte e preciso, foi o coração do ataque portenho no Mundial. "Ele é forte, tem excelente técnica, cria os espaços e tem um tiro poderoso. Jogadores como ele podem decidir uma partida", definiu-o César Menotti.
Kempes era extremamente disciplinado. Nunca levou um cartão amarelo jogando pela Argentina e talvez por isso tenha jogado apenas 48 vezes pela sua seleção, embora já integrasse o time na Copa de 1974, com apenas 20 anos. Possivelmente os outros jogadores não viam com bons olhos aquele certinho. Quem ele pensava que era? Será que ele achava que era melhor do que eles?
Brincadeiras à parte, Kempes realmente terminou cedo sua carreira com a camisa azul e branca. Com apenas 28 anos cedeu a camisa 10 a Maradona e o novo técnico, Billardo, não se preocupou em tentar pô-los para jogar juntos. Sua estratégia era liberar o baixinho para jogar, com os outros 10 defendendo e correndo.
Kempes fez os dois gols que decidiram a Copa de 1978. Presente no 4 x 1 que a Holanda aplicou na Argentina em 1974, ele credita boa parte da raça que demonstrou em campo à vontade de vingar aquela humilhação (e foi um banho de bola mesmo, o melhor jogo do carrossel holandês).
Ainda em 1978 Kempes foi contratado pelo Valencia, um dos primeiros do grande êxodo de jogadores para a Europa que ocorreria no final dos anos 70. Jogou por um ano no River Plate, em 1981/2, e voltou para o Velho Mundo. Pendurou as chuteiras somente em 1996, aos 41 anos, tornando-se técnico. Sobrte sua relativamente curta carreira no selecionado argentino, certa vez declarou, com seu tradicional cavalheirismo, que "meu país deu a sorte de produzir extraordinários jogadores um atrás do outro".

maio 29, 2006

A História da Copa do Mundo - Capítulo XI - O Carrossel e a Roda da Fortuna giram com a Holanda

Os capítulos anteriores estão embaixo deste, em ordem decrescente, como sói acontecer em blogs. Leia tudo desde lá do começo e leia a fascinante história da evolução tática e da origem do futebol.


A EVOLUÇÃO TÁTICA - O FUTEBOL TOTAL

Em 1970, ano do tricampeonato brasileiro, o vencedor da Liga dos Campeões foi um time sem nenhuma tradição, de um país que só profissionalizara seu futebol nos anos 60. O Feyenoord, da Holanda. E não foi um feito isolado. O Ajax de Amsterdam foi tricampeão em seguinda, em 1971, 1972 e 1973. E a seleção holandesa se classificou pela primeira vez para a Copa. O que estava acontecendo nos Países Baixos?
O futebol total.
Não era um novo esquema tático como o WM ou o 4-3-3 e nem uma filosofia de auto-ajuda para o atleta medíocre, como o futebol-força. Era uma nova concepção de jogo. Era a evolução lógica e final da revolução que os brasileiros desencadearam com o 4-2-4. Era tão inovador que seus conceitos dominam o jogo até hoje, mas ninguém nunca mais conseguiu repeti-lo em campo como fazia a seleção holandesa. Ou melhor, a "Laranja Mecânica", apelido que ganhou pela cor de sua camisa e pela impressão que passava de que seus jogadores se multiplicavam em campo.
Os brasileiros haviam mostrado que atacantes podiam defender, defensores podiam atacar e apoiadores podiam fazer ambos. As idéias de Raoul Mollet levaram os jogadores a serem capazes de correr o campo todo. Os holandeses juntaram os dois. Todo mundo fazia tudo. Com exceção daquele sujeito com a camisa diferente do resto do time, o goleiro, é claro.
Se um beque achava que era uma boa hora, avançava junto com seu ataque e podia acabar participando como centroavante. Ele não se preocupava em deixar um buraco na defesa porque alguém do meio-campo assumiria seu lugar e outro sujeito iria para o lugar daquele apoiador. Aliás, tais definições, "centroavante", "beque", "apoiador", eram bastante inexatas. O time inteiro acompanhava a bola e se distribuía em campo com a necessidade da jogada. Um atacante adversário podia ter um marcador diferente cada vez que pegasse na bola. Um defensor do outro time tinha pela frente um sujeito diferente a cada ataque. A marcação homem-a-homem enlouquecia e deixava buracos enormes. A marcação por zona estava sempre em inferioridade numérica.
Na defesa os holandeses criaram a marcação sob pressão. Com tantos jogadores capazes de trocar de posição com tanta facilidade, eles levaram para o futebol profissional a pelada: todos corriam atrás da bola. Quem a recebe tem quase imediatamente dois ou três marcadores. Teoricamente isso deixa dois sujeitos livres em algum lugar, mas ninguém tem tempo de procurá-los. Buracos defensivos são cobertos pelo atleta disponível que estiver mais perto.
E no ataque eles aumentaram a velocidade do toque de bola. Deixaram de lado os dribles desnecessários e a insistência em prosseguir quando há um bloqueio defensivo na frente. Se um holandês estivesse na grande área adversária, mas não visse espaço para o chute, ele não hesitava em voltar a bola para o meio, para que o ataque recomeçasse imediatamente. Talvez com o jogador que estava cruzando da lateral-esquerda para a ponta-direita, talvez para o apoiador se infiltrando pela meia-esquerda, talvez simplesmente uma corrida com a bola dominada. Ninguém ficava parado esperando o passe. O futebol total dava muitas opções ofensivas. Com toda essa movimentação de bola ganhou o apelido de "carrossel holandês". As defesas ficavam desnorteadas, tendo que correr de um lado para o outro o tempo todo.
Tal filosofia de jogo exige jogadores que sejam habilidosos tanto na marcação quanto na armação. Que saibam defender e chutar a gol. Que sejam inteligentes e tenham visão de jogo, para perceber que posição ocupar em cada momento do jogo. E os holandeses tinham esses jogadores, comandado por um dos 5 maiores nomes da história do futebol, Johann Cruyff.
Mas mesmo com Cruyff, Rep, Resenbrink, Neeskens e Krol, um time se movendo em bloco o tempo inteiro mais cedo ou mais tarde vai sofrer um contra-ataque numa bola longa quando não tiver ninguém na defesa. Para evitar isso, a "Laranja" ressuscitou uma tática de uma época anterior ao WM: a linha de impedimento.
Movendo-se como uma única unidade perfeitamente coordenada, se os jogadores que estivessem funcionando como defensores percebessem que alguém ia lançar um sujeito por trás deles, se adiantavam todos ao mesmo tempo e o atacante estava impedido na hora do passe. Era mais um truque do surpreendente repertório holandês, que deixava os adversários atônitos e frustrados. Era uma nova concepção de futebol, que iria passar por cima de todo mundo. Até a derrota na final, com o futebol nem tão total, mas que usava alguns desses conceitos, da Alemanha. O "futebol parcial", digamos assim.
E é esse "futebol parcial" que se joga até hoje. Espera-se intensa movimentação de qualquer time, mas nunca mais se juntou numa equipe tantos jogadores capazes da perfeição holandesa. A linha do impedimento foi copiada no mundo todo, mas em poucos anos os atacantes aprenderam a evitá-la partindo de trás dos defensores e só equipes que precisam atacar de qualquer maneira a utilizam como recurso desesperado. A marcação sob pressão é usada para paralisar equipes muito técnicas, mas é preciso marcar um ou mais gols na primeira meia hora. Após esse período os jogadores ficam exaustos e entregam o controle da partida para o adversário.
O carrossel holandês foi também a última verdadeira inovação tática no futebol, apesar da vida curta. Até hoje se usa quase universalmente o 4-4-2 e suas variações: varia a distribuição entre cabeças-de-área e meias-atacantes na linha média; os laterais brasileiros atacam, enquanto os europeus são mais contidos; um cabeça-de-área pode ser recuado para jogar como líbero atrás da defesa. O mundo ainda não estava preparado para o futebol total. Em 1986 a Dinamarca tentaria algo parecido aumentando a quantidade de apoiadores e lançaria o último esquema novo a surgir: O 3-5-2.

A COPA DE 1974

A Alemanha ganhou o direito de sediar a Copa pelo mesmo motivo que o México: organizaria uma Olimpíada dois anos antes e teria toda a infra-estrutura necessária prontinha. Os brasileiros levaram a taça Jules Rimet definitivamente e um novo troféu foi feito. Para parecer mais moderninho deixaram o troço com cara de inacabado. E acabaram os jogos eliminatórios. Os 16 times continuavam divididos em 4 grupos, com os dois primeiros colocados passando para a próxima fase, em que eram distribuídos em duas chaves com 4 equipes. Os vencedores da chave jogavam a final. Os segundos colocados disputavam o terceiro lugar. E o Brasil era o favorito.
Em 1973 uma longa excursão pela Europa trouxe a primeira derrota para a seleção brasileira em anos (para a Suécia), além de alguns bons resultados (1 x 0 sobre a Alemanha, por exemplo). Mas os empates e os placares magros irritaram o público e a imprensa. A culpa era do defensivismo de Zagallo.
Não era. Pelé largou a seleção. Seu herdeiro Tostão abandonou o futebol com um sério problema na vista. Gérson pendurou as chuteiras. Zagallo perdera a coluna dorsal da equipe. Não era fácil substituí-los. Para piorar, Jairzinho, aos 30 anos, não tinha mais a mesma explosão, Clodoaldo e Carlos Alberto se contundiram e o reserva deste, Zé Maria, também! Paulo César Lima, o camisa 10, fora vendido ao Olympique de Marselha e jogou o Mundial preocupado com sua carreira na Europa. Olhando retroativamente é de surpreender que os brasileiros tenham ido tão longe. Parecia 1966. Os brasileiros estrearam sem ter um time titular.
E a estréia foi péssima. Num jogo chatíssimo o Brasil empatou em 0 x 0 com a Iugoslávia. O goleiro Leão foi o melhor brasileiro em campo. A partida seguinte foi contra o medíocre time escocês. Outro 0 x 0 e outra grande atuação de Leão. A seleção estava em terceiro lugar no grupo, à frente apenas do fraquíssimo Zaire e para se classificar precisava vencer os africanos por três gols.
Jairzinho fez 1 x 0 logo aos 13 minutos. Foi tudo no primeiro tempo. Só aos 22 Rivellino aumentaria. O ponta-direita Valdomiro faria o terceiro aos 31 quando errou um cruzamento e o goleiro africano falhou incrivelmente. Valdomiro, aliás, entrara na equipe naquele jogo, pois a torcida e a imprensa pressionavam por um autêntico ponteiro para resolver os problemas de ataque.
Os problemas eram muito maiores. O Brasil ainda usava um 4-2-4 disfarçado de 4-3-3, mas não tinha mais jogadores tão brilhantes para fazê-lo funcionar. Havia sempre uma quantidade maior de adversários no meio-campo e assim a seleção simplesmente não conseguia armar os ataques. Jairzinho não tinha mais a mesma força física e perdia constantemente as divididas. Por estar sempre caindo, engraçadinhos começaram a chamá-lo de "Fura-chão da Copa" E num tempo sem Internet, tevê a cabo e transmissão de campeonatos europeus, Zagallo simplesmente desconhecia os avanços táticos no resto do mundo!
Frente ao lento e pouco produtivo jogo brasileiro a Holanda parecia vir do futuro. Com seus jogadores rodando pelo campo o tempo todo, centroavantes viravam zagueiros e vice-versa. O lateral-direito virava ponta-esquerda. O cabeça-de-área virava ponta-direita. E todo mundo estava sempre perto do adversário que estivesse carregando a bola. Era o carrossel holandês, a sensação da Copa, capitaneado pelo fantástico Cruyff.
Os anfitriães alemães também tinham seu rodízio. O genial Beckenbauer, perto dos trinta anos, jogava então de líbero, mas confundia a marcação adversária aparecendo constantemente no ataque. Breitner, nominalmente um lateral, passava a maior parte do tempo no meio-campo. E na frente eles tinham Gerd Muller, o maior artilheiro da história das Copas (Ronaldo Fenômeno tem excelentes chances de ultrapassá-lo em 2006). O outro grande time da Copa era a Polônia, que contava com Lato, Deyna, Zmuda e Szarmach.
Assim como em 1954, o técnico alemão, Helmut Schoen, incluiu uma derrota em seu planejamento para o título. Disputando o primeiro lugar do grupo com a Alemanha Oriental comunista, numa época em que o país ainda estava dividido pelo Muro de Berlim, preferiu perder o jogo por 1 x 0 a enfrentar os holandeses e os brasileiros na próxima fase. Pela frente teria de perigosa apenas a Polônia.
A Alemanha Oriental, crente que estava abafando, estreou na segunda fase contra os decadentes campeões, os brasileiros. Zagallo havia substituído Piazza por Carpeggiani e o atacante Leivinha pelo apoiador Dirceu, atletas de pensamento mais moderno, com maior mobilidade e poder de marcação, escalando o time praticamente em 4-4-2. O Brasil apresentou uma melhora, mas a vitória só saiu numa jogada ensaiada em cobrança de falta: Jairzinho ficou no meio da barreira e se abaixou quando Rivellino chutou. A bola passou exatamente por ali, surpreendendo o goleiro. Na outra partida da chave a Holanda jogou sua melhor partida e fez 4 x 0 numa Argentina cujos únicos destaques eram Perfumo e Kempes.
Mas Argentina x Brasil é clássico e clássico não tem favorito. Os brasileiros tiveram sua melhor exibição e fizeram 1 x 0 aos 32. Os portenhos empataram em cobrança de falta dois minutos depois, mas Jairzinho desempatou aos 3 do segundo tempo. Os holandeses fizeram 2 x 0 nos alemães falsificados. Mesmo jogando mal, com um time confuso e sem brilho, os brasileiros iriam disputar um lugar na final com a Holanda na última rodada. A "Laranja" teria a vantagem do empate por ter um saldo de gols melhor. No outro grupo Alemanha e Polônia decidiriam a vaga.
Nos anos 90 um torcedor holandês diria que o uniforme canarinho, com suas corres berrantes, seria brega em qualquer outro time. Vestindo a seleção que veste parecia avisar que lá vinham os brasileiros. Ninguém ousaria criticar o gosto daquela seleção. E os holandeses dos anos 70 também pensavam assim. Mesmo com todas as dificuldades que o Brasil enfrentava, a Holanda entrou cautelosa, jogando um futebol mais convencional.
A linha de impedimento falhou e Paulo César entrou sozinho na cara do goleiro. Chutou para fora. Jairzinho também ficaria sozinho na frente do arqueiro holandês e desperdiçaria. Mas depois dessas chances os holandeses foram se tranquilizando e o carrossel começou a rodar. Depois da primeira meia hora os brasileiros passariam o jogo correndo atrás da Holanda. No segundo tempo a "Laranja" faria 2 x 0. O grande Cruyff marcaria o segundo em impedimento, mas a superioridade de seu time era indiscutível. Acabava uma invencibilidade brasileira de 11 jogos em Copas.
Os alemães entraram contra a Polônia também com a vantagem do empate por saldo de gols e aproveitaram-na bem para vencer por 1 x 0, gol de Muller aos 31 minutos. Restava a eles mostrar o que podia parar a Holanda.
E parecia que nada mesmo. A primeira vez que os germânicos tocaran na bola na final foi para dar uma nova saída. A "Laranja" já vencia por 1 x 0, em cobrança de pênalti sobre Cruyff, depois de rodar a pelota por 14 jogadores! Os holandeses, certos de sua invencibilidade, passaram a ficar tocando a bola sem se preocupar muito em atacar. Afinal, era óbvio que ninguém podia detê-los. Sem dúvida, em pouco tempo eles aumentariam.
Eles estavam agindo exatamente como os húngaros em 1954.
Os alemães eram mais experientes. Tinham um craque tão excepcional quanto Cruyff, Beckenbauer, disputando sua terceira Copa, assim como Overath. Muller jogava sua segunda e já era o maior artilheiro de sua história. Maier e Vogts também jogaram em 1970. Eles não se assustaram com a vantagem adversária e aproveitaram o relaxamento holandês para empatar aos 25 minutos. E Muller fez o segundo aos 43.
Foi quando os holandeses se perderam completamente.
Vogts perseguiu Cruyff pelo campo inteiro, com rodízio ou não. Anulou o craque da "Laranja". O restante do time, muito nervoso, errava constantemente. O lendário goleiro alemão, Sepp Maier, não precisou trabalhar muito. E, pela segunda vez em vinte anos, os alemães derrotaram uma equipe revolucionária e favorita absoluta.
Pela primeira vez em Mundiais todos os times sul-americanos foram uma decepção. O Uruguai de Pedro Rocha não venceu um jogo. A Argentina foi goleada e acabou em oitava. O Brasil chegou em quarto, depois de outra péssima exibição e derrota para a Polônia. Parece uma boa colocaçaõ, mas a seleção não jogou bem em nenhum momento. A Alemanha mantivera a tradição européia de um jogo sólido e eficiente, mas o futebol mais vistoso viera de dois países sem tradição no esporte, Polônia e Holanda. O mundo inteiro começou a experimentar com trocas constantes de posição, linhas de impedimento e marcação sob pressão. Sem ter um Cruyff ninguém conseguiu igualar a "Laranja Mecânica". E em 1978 acabaria sendo disputada a mais equilibrada e taticamente confusa Copa da história.

CRUYFF

Na falta de tevê a cabo, internet e VHS, para alguém conhecer um grande craque estrangeiro só na Copa do Mundo ou indo ver ao vivo. Um jornalista brasileiro de férias pela Europa resolveu conferir aquele tal Cruyff de quem todos falavam tanto, ainda mais depois que se transferiu para o Barcelona.
A impressão inicial foi a de que o holandês era meio apático e peladeiro. Durante todo o primeiro tempo ele apareceu na meia-direita, na meia-esquerda, na ponta-direita, na ponta-esquerda, sem fazer nada de realmente útil para o time. “Mais uma invenção européia”, pensou nosso conterrâneo. Porém, no segundo tempo, Cruyff se fixou entre a meia-direita e a ponta-direita e acabou com o jogo, marcando gols e dando passes para outros. Só então o jornalista se tocou do que acontecera: ele passara o primeiro tempo procurando o ponto fraco do adversário, o melhor lugar para jogar!
Foi essa capacidade de não só visualizar o campo de jogo como um mapa de batalha (característica que, de resto, Gérson, Falcão, Didi e Beckenbauer também demonstravam) como também criar para o futebol o equivalente da blitzkrieg alemã, que tanto rebuceteio causou nas linhas aliadas durante a II Guerra Mundial, que o levou a integrar todas as listas de melhores jogadores de todos os tempos. Com uma movimentação incessante e orientando os companheiros para fazer o mesmo, ele seria o cérebro e a alma por trás do Carrossel Holandês, o estilo de jogo que assombrou o mundo.
Cruyff nasceu em 1947 e desde que se lembra sempre quis se tornar jogador profissional. Aos 7 anos já estava na escolinha. Aos 12 seu pai faleceu vítima de um ataque cardíaco e aos 13, para consternação de sua mãe, largou a escola para dedicar-se inteiramente ao futebol. A educação formal não lhe fez falta e sua inteligente e original abordagem do eterno problema “como marcar um gol no adversário?” logo chamou a atenção do treinador Rinus Michels, que indicou um trabalho de desenvolvimento muscular para aquele jovem cerebral e franzino.
Aos 19 anos Cruyff já era titular do Ajax e destacava-se como armador, ponta e centroavante, sem nunca cometer uma falta. Também chegou à seleção nessa idade, atuando com a camisa laranja até 1977. Para o resto do mundo, entretanto, aquele inovador atacante só começaria a chamar atenção quando seu clube, até então desconhecido, foi bicampeão da Liga dos Campeões, em 1971/1972, sucedendo a conquista de outro time holandês, o Feyenoord, em 1970.
Esses títulos iriam se refletir na seleção holandesa da Copa de 1974. Com Cruyff movimentando-se o campo todo, seus companheiros acompanhando-o enquanto outros se deslocavam para manter sempre alguém ocupando as posições essenciais, o mundo foi apresentado ao “futebol total”, o carrossel holandês, o rodízio de jogadores que hoje faz parte do repertório de qualquer equipe, embora em escala muitíssimo mais reduzida.
A “Laranja Mecânica”, como ficou conhecido o time da Holanda, chegou até a final. Quando foi dada a saída Cruyff tocou para um colega e a bola rodou por 14 holandeses antes de voltar para o atacante franzino, que arrancou do meio-campo, driblou dois jogadores e foi derrubado na área. Pênalti que Neeskens cobrou. A Alemanha, aos 3 minutos, perdia por 1 x 0 e ainda não tinha conseguido tocar na bola. Infelizmente para os amantes do bom futebol, a seleção holandesa se desinteressou do jogo, achando que já era vitoriosa, e deixou Beckenbauer comandar a virada.
A aguda inteligência de Cruyff, sem ter sido padronizada por uma educação normal, refletia-se em sua gramática aberrante, seus longos monólogos para provar um ponto (depois reunidos em um livro, Ensaios em sua Forma Mais Pura) e seu espírito de liderança. Também espraiava-se em declarações arrogantes (“antes de cometer um erro, eu não cometo o erro” ou “não creio que haverá um dia em que se falará de Cruyff e alguém não saberá do que está se falando”) que lhe custaram inimizades e o cargo de capitão do Ajax. Por isso - e pelo dinheiro, é claro - transferiu-se em 1973 para o Barcelona.
Depois de 1977, quando só participou dos jogos mais importantes das eliminatórias, não mais jogou pela seleção. Cruyff terminou sua carreira jogando na Liga Americana, na segunda divisão espanhola e pelo Feyenoord, pelo qual foi campeão holandês mais duas vezes, em 1983 e 1984. Passando a treinador, tem uma carreira brilhante e foi graças a ele que Romário foi parar no Barcelona e retirado da semi-obscuridade do PSV Eindhoven.
Apesar de nunca ter conquistado um título com a seleção holandesa, pela qual só jogou 48 vezes, Cruyff conseguiu ser eleito o melhor jogador da Copa de 1974 e é unanimemente considerado um dos melhores jogadores de todos os tempos, ao lado de craques como Maradona, Beckenbauer e Zico. Uma honraria mais do que merecida para um dos jogadores que mais inovou no futebol mundial.

BECKENBAUER

Se a Holanda tinha Cruyff se movendo pelo campo todo, a Alemanha tinha Beckenbauer. Foi o "kaiser" (ou "imperador") Franz quem pegou aquela posição defensiva criada por Helenio Herrera, e, com seu soberbo senso de colocação, estratégia e visão de jogo, percebeu que poderia transformá-la no cérebro do time.
O líbero originalmente era um defensor que ficava atrás da defesa, para cobrir qualquer zagueiro. Assim, não tendo nenhuma obrigação defensiva fixa, Beckenbauer partia lá de trás com a bola dominada e a carregava, em seu modo característico, com a cabeça levantada estudando o gramado à sua frente como se fora um campo de batalha, até às vezes a área adversária. Ou à intermediária, onde lançava um companheiro com seus passes e lançamentos precisos. Ou à meia-lua, onde a chutava com força e endereçamento certo. Sempre confundindo a marcação adversária, que não entendia o que aquele zagueiro estava fazendo organizando todo o jogo do time.
Beckenbauer era um estilista, elegante e inteligente. Nascido no ano da derrota alemã na II Guerra Mundial, 1945, aos 14 anos estava nos juvenis do Bayern de Munique. Em 1964 era o ponta-esquerda recuado (a posição que Zagallo inventou) do time titular e aos 20 anos, em 1965, estreou na seleção germânica. Com 21 anos estava no Mundial de 1966, onde marcou 2 gols e foi um destaque da campanha teutônica, que os levou à final e à derrota para a anfitriã Inglaterra com o famoso gol que não entrou (ou entrou?). Beckenbauer declararia mais tarde que "ser vice-campeão da Copa não é tão ruim para um jogador jovem".
Em 1970 ele já era a estrela maior do time alemão, mesmo que Gerd Muller fosse o maior artilheiro da história dos Mundiais. A Alemanha só saiu da disputa nas semifinais, numa empolgante prorrogação vencida pela Itália por 4 x 3 (1 x 1 no tempo normal!!!). O Kaiser Franz protagonizou uma cena que ficou imortalizada: após deslocar o ombro, voltou a campo com o braço enfaixado, numa desesperada tentativa de manter os germânicos na corrida para o título. Não deu daquela vez. Ele ainda teria que esperar 4 anos.
Jogando em casa e na posição que revolucionou, o líbero que avançava e organizava o time, desarrumando a marcação adversária, Beckenbauer finalmente conquistou o título que tão perto estivera de suas mãos por duas vezes. Na final entrou como azarão, mas venceu o jogo de virada. Se em 1966, como ele disse, a Inglaterra foi campeã porque Bobby Charlton foi melhor do que ele, em 1974, sem dúvida a Alemanha venceu porque ele foi melhor do que Cruyff, que ele disse ser o maior jogador que jamais enfrentou (ele nunca teve Pelé pela frente).
Depois desse título, foi tricampeão da Liga dos Campeões com o Bayern de Munique. Não jogou a Copa de 1978, apesar de ter apenas 31 anos. Transferiu-se para o futebol americano e voltou para a Alemanha em 1982, aos 35 anos, jogando pelo Hamburg. Foi campeão mais uma vez. Em 1983 retornou aos EUA e pendurou as chuteiras no Cosmos.
Apenas um ano depois de parar de jogar, Beckenbauer tornou-se o técnico da seleção alemã. Já em 1986 leva a Alemanha à final, quando vai atrás de um placar desfavorável de 2 x 0, apenas para perder em (mais) uma jogada genial de Maradona. Mas em 1990 ele vai à forra e vence a Argentina por 1 x 0, para se tornar o segundo homem a ser campeão mundial como jogador e técnico - o primeiro foi Zagallo.
Beckenbauer é o presidente do comitê organizador da Copa de 2006. O que garante que ela pelo menos será elegante.

maio 28, 2006

A História da Copa do Mundo Capítulo X - 1970: A Jules Rimet é nossa

Os capítulos anteriores encontram-se embaixo deste. Desça láááááá pra baixo e acompanhe a origem do futebol e a evolução tática passo a passo. A história vai fazer muito mais sentido com a visão geral.

O BRASIL EM 1970: 4-2-4, 4-3-3 OU 4-4-2?

Os brasileiros consideram atacantes somente os indivíduos que ficam enfiados lá na frente e têm como única preocupação fazer o gol. Se o sujeito gosta mais de jogar a partir da intermediária ou volta para armar as jogadas de ataque, nós o consideramos um "meio-campista". Às vezes o chamamos de "número 1" como em 1998, ou de "meia-atacante" como em 2002.
Os europeus, entretanto, têm uma idéia diferente. Para eles a posição de "meio-campista" ou "apoiador" é aquela mesma de Zito e Didi em 1958 e 1962. Para ser considerado jogador de meio-campo o sujeito tem que ajudar a defender, fazer a saída de bola, ou seja, receber da defesa e dar prosseguimento à jogada, além, é claro de ajudar no ataque. Ele seria como o antigo centromédio atacante, mas muito mais rápido e capaz de correr para cima e para baixo, cobrindo a defesa e apoiando os atacantes, flutuando o tempo todo, quase voando. Por isso ele passou a ser conhecido como "volante". Zito, Didi, Gérson, Falcão, Ricardinho e Juninho Pernambucano são alguns que fizeram a fama nessa posição.
No entanto, jogadores como Zico, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho, que nós consideramos de meio-campo, são contados como atacantes na Europa. É por isso que os europeus juram que o Brasil de 1970 jogava em 4-2-4: Clodoaldo e Gérson no meio e Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivellino na frente. Zagallo até hoje diz que sua tática era o 4-3-3: Rivellino era um "ponta-esquerda recuado", assim como o técnico quando jogador. E vários analistas alinham aquela seleção em 4-4-2: Clodoaldo, Gérson, Rivellino e Pelé; Tostão e Jairzinho.
Nas laterais do ataque jogavam os pontas. Como consequência, os outros atacantes ficavam dentro da área. Era pouco espaço para dois jogadores e a tendência era que um ficasse entre os zagueiros disputando a bola com eles (o "centroavante trombador") e outro, mais habilidoso, ficasse um pouco mais atrás, partindo de trás com a bola dominada, como Ademir, ou armando a jogada. Na seleção de 70 era Pelé quem fazia isso. Este jogador, o "ponta-de-lança" recuou um pouco mais e passou a ser contado no meio-campo. É a posição em que Ronaldinho Gaúcho joga hoje.
Dois jogadores no meio-campo era muito pouco para marcar os apoiadores adversários e ajudar na defesa. Como consequência, um dos volantes passou a ter funções de defesa, inclusive ficando no lugar dos laterais quando eles atacavam. Assim nasceu o cabeça-de-área ou volante de contenção. Mas em 1970 o Brasil ainda tinha o técnico Clodoaldo para a posição.

A COPA DE 1970

Depois do fracasso de 1966 o Brasil teve uma sequência de maus resultados internacionais. Durante um tempo houve até um comitê para cuidar do escrete canarinho: a COSENA (Comissão Selecionadora Nacional), numa desesperada tentativa dos militares para recuperar o prestígio do time. Mas parecia que nada conseguia tirar a seleção da depressão pós-1966.
O comentarista João Saldanha, ex-técnico do Botafogo em 1957, era um dos mais articulados e inteligentes críticos aos técnicos do selecionado. Seu sucesso acabou levando-o ao cargo de treinador da seleção. Tão seguro ele estava de suas idéias que no momento em que aceitou o cargo imediatamente declinou seu time titular e os 11 reservas. "Vamos ter 11 feras", avisou.
E o Brasil passou pelas eliminatórias como um rolo compressor. Tostão finalmente desencantou com a amarelinha e foi o artilheiro. Saldanha queria um time agressivo dentro e fora das quatro linhas. Contra o Paraguai, houve uma confusão com a delegação no hotel. Saldanha mandou seus jogadores descerem para enfrentar os torcedores adversários e os pôs para correr. Eram as Feras do Saldanha.
A ditadura militar continuava e o Brasil era presidido por Médici, fã do atacante Dario. Numa entrevista perguntaram a Saldanha por que ele não convocava o favorito do presidente. "O presidente não me consultou para formar o ministério e eu não vou consultá-lo para formar a seleção", respondeu João, militante comunista. Assim que as Feras empataram com o Bangu num jogo-treino ele foi substituído por Zagallo, o ponta-esquerda bicampeão do mundo. Que começou chamando Dario.
Mas ele não fez só isso. Mudou a zaga, escalou o volante Piazza como zagueiro, tirou o autêntico ponta Edu, chamando Clodoaldo e Rivellino para compor o meio. Obviamente com essas mudanças ele foi chamado de retranqueiro e traidor do autêntico futebol brasileiro. As expectativas não eram boas.
O México organizou a Olimpíada de 1968 e a Copa de 1970. Ambos os eventos foram únicos, por disputados na altitude. Quanto mais longe do chão menos ar e, com menos oxigênio qualquer esforço é mais cansativo. A seleção chegou um mês antes para se adaptar a esse problema. Não haveria nenhuma chance de se repetir o desastre de 1966. O Brasil seria o time com melhor preparo físico do torneio.
Quem chama o grupo da Argentina para 2006 de "grupo da morte" precisava ver o do Brasil. Três dos últimos quatro finalistas estavam juntos: Brasil e Tcheco-Eslováquia, de 1962, e Inglaterra, de 1966. Ninguém esperava muito daquela equipe retrancada de Zagallo na estréia e quando os tchecos saíram na frente parecia que a coisa iria ser muito complicada. Mas, menos de 15 minutos depois, Rivellino cobraria uma falta certeira. E, no segundo tempo, quando os tchecos cansaram veio a goleada por 4 x 1.
O próximo jogo do Brasil pôs frente a frente os dois últimos campeões mundias. A seleção jogou sem seu organizador, Gérson. A defesa brasileira fez uma trapalhada que quase pôs os ingleses na frente. Jairzinho cruzou para Pelé dar uma esplêndida cabeçada e o goleiro inglês, Banks, fazer a melhor defesa da história das Copas. Os britânicos foram melhores no primeiro tempo, mas aos 23 Tostão viu que seria substituído - finalmente as substituições eram permitidas - e resolveu arriscar. Driblou quatro defensores e cruzou para Pelé, que abriu para Jairzinho. Brasil 1 x 0. Era a terceira vez que as duas equipes se enfrentavam em Mundiais. Nas duas primeiras o título ficou com os brasileiros. Na partida com a Romênia Zagallo poupou alguns jogadores, mas a vitória veio por 3 x 2.
No grupo 2 estavam os outros dois bicampeões, Itália e Uruguai. Ambos se classificaram. Os uruguaios eliminaram a Suécia no saldo de gols - um contra zero. Os mexicanos e soviéticos empataram entre si e ganharam os outros jogos em sua chave.
No grupo 4 a Alemanha ficou em primeiro. O Peru tinha a melhor seleção de sua história. Nas eliminatórias ganhou a vaga em cima da Argentina em Buenos Aires. Seu treinador era Didi, bicampeão pela seleção brasileira. Seu próximo adversário.
Tostão foi o grande nome do jogo. Fez dois gols e comandou a goleada por 4 x 2. Félix, o goleiro brasileiro, falhou num dos gols, com a bola entrando entre ele e a trave, lembrando a jogada do título de 1950. E era justamente o Uruguai o próximo adversário. Todos os campeões do mundo estavam nas semifinais. Nas quartas-de-final os alemães se vingaram da bola duvidosa de 1966 eliminando os ingleses por 3 x 2. Os italianos deram um passeio nos anfitriães: 4 x 1.
Os uruguaios garantiam que venceriam a semifinal. Repetiriam o feito de 1950. Continuavam tendo mais garra e raça. Gigghia foi convidado a assistir o jogo com a delegação. E quando a partida começou, as coisas começaram a dar certo para eles.
Bem-marcado, o meio-campo brasileiro ficava tocando a bola de um lado para o outro sem conseguir penetrar. Num chute fraco de Cubilla os uruguaios fizeram 1 x 0. Félix falhou novamente. O time brasileiro perdeu-se completamente em campo e não conseguia fazer nada. Foi quando Zagallo fez uma alteração tática: vendo Gérson bem marcado, mandou ele recuar; Clodoaldo deveria chegar mais no ataque. Funcionou. Os beques do Uruguai estavam preocupados com o Canhotinha de Ouro quando Clodoaldo entrou na área aos 44 do segundo tempo para completar cruzamento de Tostão. O Brasil foi para o vestiário mais aliviado com o empate. Mas levou uma bronca histórica de Zagallo.
Que levou mais de meia hora para surtir efeito. O jogo continuou feio de se ver e fechado. Só aos 31, depois de muitos toques para o lado é que os brasileiros conseguiram armar uma jogada sensacional, com passes perfeitos de Pelé para Tostão e deste para Jairzinho. O artilheiro ganhou na corrida da defesa e fuzilou o gol de Mazurkiewicz.
O Brasil ainda aumentaria com um gol de Rivellino, mas foram duas jogadas de Pelé que ficariam famosas nessa partida: um drible sem bola em Mazurkiewicz e uma cotovelada em seu marcador. A primeira não deu em nada - com o gol vazio, o Rei chutou para fora, mas a finta foi tão bonita que entrou para a história. A segunda foi fruto da experiência de uma longa carreira internacional: todo o estádio viu a falta, menos o juiz.

BOX

Ao lado de Gigghia, Jairzinho é o único jogador a marcar gols em todas as partidas possíveis numa Copa. De grande explosão e força física, ganhou o apelido de "Furacão da Copa", mas o artilheiro foi Gerd Muller, com 10 gols, maior marca depois dos 13 de Fontaine em 1958.

Todos os campeões do mundo estavam nas semifinais: a outra partida pôs Alemanha e Itália frente a frente. Nas quartas-de-final os alemães se vingaram da bola duvidosa de 1966 eliminando os ingleses por 3 x 2. Os italianos deram um passeio nos anfitriães: 4 x 1.
Foi um jogo extremamente emocionante. Os italianos fizeram 1 x 0 e se fecharam lá atrás. Beckenbauer não deixou seu time desistir e os alemães empataram aos 44 minutos do segundo tempo. Um placar de 1 x 1 não parece tãããããão empolgante assim. O detalhe é que a prorrogação teve cinco gols. Aos 4 Muller fez para os germânicos; aos 8, Burgnich empatou. Riva virou para a azzurra aos 13. Muller voltou a empatar aos 4 do segundo tempo, mas Rivera desempatou um minuto depois. Beckenbauer jogou o tempo extra com o braço direito enfaixado; a Alemanha já tinha feito as duas substituições permitidas. Hoje em dia cada time pode fazer três. O futebol continua sendo o único esporte com um número tão baixo de trocas.
Os italianos estavam cansados depois daquela correria toda. Os brasileiros estavam emocionalmente exaustos depois de espantar o fantasma de 1950. Quem vencesse levaria para casa definitivamente a Taça Jules Rimet. O Brasil era o favorito, mas a Itália estava invicta há 18 jogos e mais de dois anos. O melhor ataque e a melhor defesa estavam frente a frente. Um ditado americano diz que "o ataque leva o público aos estádios, mas é a defesa que ganha os campeonatos".
Mais uma vez choveu no dia da final. O bom técnico da azzurra, Valcareggi, ex-auxiliar e sucessor de Helenio Herrera, o criador do catenaccio, deixou o grande armador Rivera no banco. Acreditava que o campo molhado prejudicaria os jogadores mais habilidosos. Armou seu time na retranca e esperou. Pouco. Uma cabeçada de Pelé inaugurou o placar. Na verdade o jogo estava tão fácil que o Brasil começou a brincar desnecessariamente. Clodoaldo tentou um passe de calcanhar na frente do ataque italiano e Bonisegna empatou. O Brasil não precisava passar por isso. A Itália ganhou novo ânimo e se fechou mais ainda.
Mas o esforço de correr o tempo inteiro atrás dos brasileiros acabou pesando. Gérson desempatou aos 20 do segundo tempo chutando de fora da área. Rivellino aumentou cinco minutos depois. E aos 41 o Brasil fez o mais belo gol em jogada coletiva da história das Copas. O DVD oficial da FIFA descreve-o assim: "se você já viu esse gol, aproveite para rever. Se não viu, eis um alerta: isso realmente aconteceu". O lance começa com Clodoaldo driblando quatro na defesa brasileira e acaba com Carlos Alberto acertando uma bomba de primeira, depois de passar por Tostão, Rivelino, Jairzinho e Pelé. Brasil 4 x 1. Pela segunda vez a seleção canarinho dispara uma goleada em final de Mundial. Inacreditável.
A Copa de 1970 foi a primeira a ser televisionada em cores para a Europa. Para o Brasil e grande parte do mundo foi a primeira vista ao vivo, graças à transmissão por satélite. As imagens da conquista de Pelé e companheiros seriam vistas em todo o globo e criariam definitivamente a lenda do "beautiful game". A imprensa européia escolheu aquele time o melhor de todos os tempos. Os belos gols da campanha povoam canais e programas esportivos até hoje. Os jogadores daquela conquista se tornaram lendas. Mas a era do jogo de toque, com a bola rodando de um lado para o outro enquanto se esperava a chance de um lance de ataque se encerrava ali. Uma pequena nação, que só profissionalizara seu futebol nos anos 60, armava a próxima revolução no esporte. O carrossel holandês.

BOX

O time tricampeão: Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza (Fontana) e Everaldo (Marco Antônio); Clodoaldo (Edu) e Gérson (Paulo César); Jairzinho, Pelé, Tostão (Roberto) e Rivellino.

GÉRSON

Quer saber o que fazia de Gérson craque? Pega os vídeos da Copa de 1970. Vê o segundo gol do Brasil contra os tchecos. Ele levanta uma bola da meia-cancha que cai no peito de Pelé, cercado de adversários, na área. Vê também o gol de desempate contra a Itália, com o chute preciso depois de esconder a bola dos adversários. Nem precisa ver o resto, ele organizando e comandando a seleção dentro de campo. Se Pelé era a alma daquele time, Gérson era indiscutivelmente o cérebro. Não por acaso os jogos mais duros foram contra a Inglaterra, quando ele não jogou, e contra o Uruguai, que destacou implacável marcação sobre o maestro. Mostrando que além de jogar ele ainda sabia comandar, o careca canhoto avisou a Clodoaldo para se mandar para a frente, pois ele ficaria mais atrás, atraindo os marcadores. Não deu outra, o empate saiu justamente em gol de Clodoaldo, praticamente ignorado pela defesa.
A perna direita de Gérson só servia para ele subir no ônibus, daí ele ser o Canhotinha de Ouro. Criado na era do 4-2-4, era um apoiador que organizava o time e defendia como poucos, sendo capaz não só de um lançamento preciso de 40 metros como de um chutão para o lado quando necessário. No começo de sua carreira, seu técnico mandava-o ajudar na marcação. Gérson não sabia e perguntou como fazê-lo. O treinador lhe explicou que só ficar parado na frente do adversário já ajudava, pois ele perderia tempo tendo que circundá-lo, tempo que poderia arruinar o ataque ou permitir à defesa o desarme. O apoiador assim fez e com a prática acabou se tornando um dos grandes ladrões de bola do meio-campo.
Mas foi justamente ajudar na defesa que o tirou do Flamengo. Flávio Costa teimou de pô-lo para marcar Garrincha, justamente numa das últimas grandes atuações do genial ponta. Gérson levou um baile, desentendeu-se com o treinador e os dois, de forte personalidade, se tornaram inimigos. O Canhotinha foi para o Botafogo. O clube da estrela solitária agradece até hoje.
"No princípio ele era afoito, corria muito. Depois chegou à perfeição como jogador de meia-cancha". O comentário é de Didi, a quem ele substituiu no Botafogo e na seleção brasileira. Com esplêndido sentido de organização e estratégia, chutador fantástico e ótimo driblador, Gérson era um brilhante estilista, com tanta visão de jogo que dizia-se que era um "técnico dentro de campo". Mas nem por isso ele tirava o pé nas divididas. Pelo contrário, raramente perdia uma e quebrou a perna de 3 adversários em sua carreira, sendo que só a de Vaguinho, do Coríntians, em 1971, foi por acidente. Em 1962 foi num lance com o rubro-negro Mauro, num treino contra os juvenis. "Ele veio para quebrar; eu só escorei", justificou-se o apoiador. A outra vítima foi o peruano De La Torre, num amistoso contra o Peru, como conta o Canhotinha, "o De La Torre já havia batido numa porrada de gente. Pedi para o Pelé passar uma bola dividida e entrei com a sola".
Com tal espírito de liderança e agressividade, Gérson era um jogador polêmico, amado por uns e odiado por outros. Paraná, da seleção de 1966, por exemplo, estava entre os últimos, tendo acusado o apoiador de ter comido pasta de dente para ter indisposição e não jogar contra Portugal na Copa. O Canhotinha realmente não participou da partida, mas teve diagnosticado naquele ano pedra nos rins, depois de sérias crises renais.
Falador e disposto a defender os jogadores contra os dirigentes, Gérson ganhou o apelido de "Papagaio" e, como consequência lógica, tornou-se comentarista depois de pendurar as chuteiras em 1975, quando jogava pelo Fluminense, para infelicidade do presidente tricolor, Francisco Horta, que acabara de contratar Rivellino e pretendia reviver a fantástica dupla de meio de 1970. Ele teve vários convites para ser treinador, mas, segundo diz, prefere ganhar quinhentos para falar mal dos outros do que mil para os outros falarem mal dele.
Gérson nasceu em 1941 e jogou por Flamengo, Botafogo, São Paulo e Fluminense. Atuou nas Copas de 1966 e 1970 e hoje é comentarista de renome. Infelizmente, em 1976, fumante inveterado que era, fumando até em intervalos de jogos, emprestou sua imagem para um comercial de cigarros, o Villa Rica. O anúncio pregava que aquela marca barata teria o mesmo sabor das mais caras, sendo por isso sua preferida, e terminava com ele explicando a razão: "gosto de levar vantagem em tudo". Esta frase foi usada fora de contexto para definir aproveitadores, corruptos e outros tipos afins, o que não corresponde em absoluto à personalidade do jogador, e acabou se tornando a chamada "Lei de Gérson".

TOSTÃO

O Santos era pentacampeão da Taça Brasil quando enfrentou o Cruzeiro em Belo Horizonte, em 1966. O placar foi de absurdos 6 x 2 para os mineiros (!!!!) Depois de anos vencendo os duelos contra o Botafogo, Pelé e amigos tinham finalmente um adversário de verdade. O que foi provado no jogo de volta, em pleno Pacaembu, quando os cruzeirenses viraram um 2 x 0 no primeiro tempo para 3 x 2. Os grandes destaques naquela equipe foram Dirceu Lopes e um garoto de 19 anos chamado Eduardo Gonçalves. Tão franzino e pequeno em sua infância que foi apelidado de Tostão.
Tostão, como Pelé, já nasceu um cracaço. Em 1958, quando a seleção conquistou a Copa da Suécia, ele foi carregado em triunfo pelas ruas de Belo Horizonte. Para seus conhecidos, ele simbolizava o futuro do futebol brasileiro. Começou a carreira no América Mineiro, clube do qual seu pai era torcedor fanático. Marcando dois gols numa vitória de virada sobre o Cruzeiro por 2 x 1, aos 18 anos foi contratado pelos cruzeirenses a peso de ouro. E como valeu. Até 1971 seria pentacampeão mineiro (4 vezes artilheiro), conquistaria a Taça Brasil, o torneio Roberto Gomes Pedrosa (artilheiro) e inscreveria seu nome na história do futebol mundial.
Tostão não era um jogador esfuziante. Como Pelé, mesmo na adolescência mostrava maturidade e economia em campo. Não desperdiçava tempo com nenhum drible que não encurtasse o caminho para a meta adversária. Anos depois, diria que seu técnico no Cruzeiro sempre perguntava aos jogadores: "você acha que jogou bem? Fez gol? Deu passe para gol? Sofreu pênalti? É assim que se mede atacante". Leitor de James Joyce e Herman Hesse nas concentrações, sua inteligência e visão de jogo ajudavam-no a antecipar a jogada tanto do adversário quanto do companheiro. Profissional e correto, continuava treinando sozinho depois que acabava a sessão do time, tentando corrigir seus pontos fracos, como o chute de direita.
Aos 19 anos, além de fazer 6 no Santos de Gilmar, Zito, Carlos Alberto e Pelé, Tostão ainda foi para a Copa na Inglaterra. Foi um dos poucos que não se queimou. Depois dos anos apáticos e confusos que se seguiram ao fiasco de 1966, foi convocado em 1969 para integrar as "Feras do Saldanha", jogando ao lado de Pelé, o que muitos diziam ser impraticável, já que atuavam na mesma posição. Saldanha provou que ambos podiam ser escalados juntos, levando o baixinho mineiro a ser o artilheiro das Eliminatórias.
Até que, num jogo pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa em 1969, Ditão, zagueiro do Corinthians, resolveu, sem nenhuma má intenção além de afastar o perigo, dar um chutão para a frente. E na frente tinha o Tostão.
A bola bateu no rosto do mineirinho e descolou sua retina esquerda, ameaçando sua visão. O craque foi operado em Houston, onde clinicava o dr. Roberto Moura (o do colírio), grande autoridade mundial. Sua recuperação foi lenta e no ínterim, Zagallo assumiu a seleção e o pôs na reserva de Pelé. Não só havia o problema da posição como o do olho. Mas atuações decepcionantes do ataque acabaram levando à efetivação de Tostão e o resto é história. Marcou 2 gols na Copa, fez diversos cruzamentos da esquerda, lançamento para o segundo gol contra o Uruguai e sua inesquecível jogada contra a Inglaterra, com um charles, 3 dribles sobre ingleses, sendo um por debaixo das pernas, e o cruzamento perfeito para o peito de Pelé. Recentemente Tostão admitiria que só partiu para aquele lance de efeito porque viu que iria ser substituído e resolveu tentar resolver, mesmo que de forma espetacular.
Em 1971 Tostão brigou com a direção do Cruzeiro e foi vendido para o Vasco em 1972 pela maior quantia já paga por um jogador no Brasil. Ele não chegou a ter pelo clube cruzmaltino as mesmas grandes atuações da época da Raposa mineira e, em 1973, sua retina inflamou, afetando sua visão e ameaçando deixá-lo cego, o que o levou a abandonar o futebol aos 26 anos, quando a maioria dos craques está ainda chegando ao seu auge. Uma pena que na época não houvesse ainda os óculos de proteção que jogadores como Davids, que sofre de glaucoma, usam.
Tostão fez vestibular para Medicina, foi aprovado e desapareceu no anonimato durante 20 anos. Antes da Copa de 1994 foi convidado por Luciano do Valle para ser comentarista e, surpreendentemente, aceitou, depois de tanto tempo afastado do futebol. E, não satisfeito, mostrou ser um analista arguto, discorrendo sobre táticas, apontando detalhes significativos de modo muito mais articulado que a média dos locutores, tornando-se extremamente bem-sucedido, como em tudo que tentou na vida. Logo tinha uma coluna também nos principais jornais do país. Curiosamente, quando de sua "ressurreição", durante uma entrevista a uma revista, para fazer a foto foram procurar uma bola de futebol. Tiveram que procurar no vizinho.
Tostão jura que passou duas décadas afastadas do futebol para se dedicar à medicina e não por mágoa. Mas é difícil de acreditar, depois de sua volta espetacular. Por que negar esse talento ao mundo?

RIVELLINO

Roberto Rivellino nasceu em 1946. De família originária da Itália e craque no futebol de salão (hoje conhecido como futsal), em 1962 foi fazer teste no clube da colônia italiana, o Palmeiras, e foi recusado. Saiu dali, foi para o maior rival, o Coríntians, e foi aprovado. E já em 1965, com 19 anos, estava na seleção brasileira.
Do futebol de salão Rivellino trouxe para os gramados o esplêndido controle de bola, o chute forte, preciso e repentino e a capacidade de driblar em espaços mínimos. O raciocínio rápido desenvolvido na quadra pequena transformou-o em excelente armador. Também era ótimo lançador e foi o criador do drible do elástico, em que empurrava a bola com o lado externo do pé, passando-o por debaixo dela no percurso para trazê-la de volta e sair pelo outro lado. Romário volta e meia gostava de repetir esse lance.
Deslocado como ponta-esquerda recuado na Copa de 1970, foi um dos destaques do torneio e marcou 2 gols em potentes chutes, que lhe valeram o apelido de Patada Atômica. Depois que Pelé abandonou o escrete canarinho, herdou a camisa 10 sem que ninguém discutisse, bem como o status de maior craque do Brasil, e seu prestígio não foi abalado com a má campanha na Copa de 1974; pelo contrário, foi um dos poucos que se salvou aos olhos dos analistas e torcedores.
Com tanto prestígio, vários títulos pela seleção e sem nunca ter ganho um campeonato com o Coríntians, Rivellino começou a ser visto com inexplicável suspeita pela Fiel. Em 1974, depois de perder um título para o Palmeiras, o presidente Vicente Mateus o acusou de boicote e ele pediu para ser vendido, transferindo-se para o Fluminense, que à epoca montava uma equipe inesquecível, com Carlos Alberto, Doval, Paulo César, Dirceu e Marco Antônio, onde finalmente seria campeão por um clube. Campeão não, bicampeão.
Rivellino ainda disputaria a Copa de 1978, mas problemas físicos impediram que fosse titular da equipe. Encerrou sua carreira em Mundiais com um campeonato, um 3o. lugar e um 4o. lugar, uma excelente média. De volta ao Brasil, transferiu-se para o El Helal da Arábia Saudita, em busca dos dólares do petróleo, onde permaneceu até 1981.
Depois de discutir com a direção do El Helal, Rivellino tentou juntar-se ao São Paulo, mas o clube árabe não liberou seu passe e o apoiador encerrou a carreira, ainda em ótima forma. Tornou-se comentarista de futebol, não particularmente brilhante, e desde 2004 é dirigente do Coríntians.

JAIRZINHO

Em 1965 Garrincha foi vendido para o Coríntians. E os botafoguenses mal sentiram sua falta. Um garoto de 20 anos, recém-saído dos juvenis, herdou aquela mitológica e lendária camisa 7 listrada e começou a marcar gols sem parar. Foi perfeito para ambos. Nenhum outro atacante driblador poderia lutar contra a mística de Garrincha. Mas um rapaz grande, forte, rápido e excelente finalizador, típico jogador dos novos tempos de vigor e força física, não teria que lutar contra a lembrança das espetaculares jogadas do Anjo de Pernas Tortas. E ajudaria a conduzir o clube da estrela solitária na transição para o futebol moderno.
Jairzinho morava na rua General Severiano e acabou frequentando o clube, fazendo um teste e sendo contratado. Dispunha de boa técnica, mas não excepcional. Sua principal qualidade era a velocidade extraordinária para alguém tão forte. Quando arrancava era difícil pará-lo e os zagueiros eram levados de roldão. Com Gérson por trás para providenciar os lançamentos na corrida, ele fez tanto sucesso que foi convocado para a Copa de 1966, para a reserva de... Garrincha.
O semideus do futebol já começara sua decadência, e Jairzinho acabou jogando contra Portugal. Afundou junto com o time, mas o fracasso não atrapalhou sua carreira. De volta ao Botafogo ganhou a camisa 10 e o comando do ataque, fazendo parte da grande equipe bicampeã carioca em 1967/1968. Esteve entre as Feras do Saldanha nas eliminatórias de 1969 e foi como nome indiscutível para a Copa de 1970. Com seus chutes fortes e precisos, fez gols em todos os jogos até a final, totalizando 7. A velocidade de suas arrancadas trouxe-lhe o apelido de "Furacão da Copa".
Jairzinho era um atacante perigosíssimo, mas não era um jogador de soberba técnica. Dependia muito de seu vigor físico, num estilo mais europeu, tanto que na Europa ele é sempre lembrado como um dos destaques da seleção de 1970, na frente de outros craques mais lembrados aqui no Brasil, como Rivellino, Gérson e Tostão. Em 1974 ele era o centroavante canarinho na Copa de 1970, mas já beirando os 30 anos não dispunha da mesma força e não conseguia mais levar os zagueiros em suas arrancadas. Não teve boas atuações e, findo o torneio, seguiu para o Olympique de Marselha, para onde havia acertado sua transferência antes mesmo do Mundial.
Previsivelmente ele não foi bem e voltou depois de uma temporada para o Cruzeiro. Em 1976 sua experiência foi fundamental para a conquista da Libertadores, na época um torneio extremamente catimbado e violento, onde torcedores atiravam pedras e defensores marcavam atacantes usando alfinetes e estiletes (é sério!). Em seguida perambulou por clubes de menor expressão até encerrar a carreira.
Jairzinho nasceu em 1944 e atualmente é empresário, tendo sido um dos descobridores de Ronaldo Fenômeno.