janeiro 24, 2010

Relação Falida

Semana passada, na sexta, encontrei o Paulinho na festa do Dudu. Perguntei pra ele se estava animado que o campeonato carioca iria começar no dia seguinte, ao que ele respondeu, "putz, é mesmo... estavam tão boas essas férias do Botafogo". Segundo ele, tudo que ele queria era não ir à final.

Comentei no dia seguinte com o Serginho Trazoshort, enquanto víamos os Vikings trucidar os Cowboys, e ele disse a mesma coisa: "nem tanto assim, mas até que essa folga do Fluminense foi bem relaxante".

Isso é pior que ser mulher de malandro...

janeiro 23, 2010

Vício Frenético (Bad Lieutenant), de Werner Herzog

Crítica publicada originalmente durante o Festival do Rio 2009

O total e completo desespero é o primeiro passo para a verdadeira fé. Não me lembro de quem disse isto, mas os personagens do Abel Ferrara estão sempre próximos de dar esse primeiro passo. Desde seu longa de estreia, “O Assassino da Furadeira”, o diretor povoa a tela com sujeitos que de sua vida em meio à jornada acharam-se em selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada, desde a supracitada criatura com a ferramenta mortífera - que busca a redenção pela arte e, falhando, pela morte (a princípio dos outros) - até o tenente mau do filme cult de 92, que tem uma epifania e acaba dando mesmo o primeiro passo e encontrando finalmente a tal da fé.

Contando a saga de um policial tão perdido em seus vícios e instintos que nem nome tem, insensibilizado pela sua profissão e tentando preencher seu vazio com todos os tipos de drogas, abusos e comportamentos autodestrutivos, Abel Ferrara concatenou provavelmente a fita americana religiosa mais surpreendentemente sincera desde “Barrabás”. A estrada para a redenção do tenente mau começa quando ele encontra uma bela e jovem freira, estuprada (até com um crucifixo) por dois rapazes. Ela sabe quem eles são, mas não dirá seus nomes porque os compreende e perdoa. Daí que Herzog refilmar esta história deixou todo mundo embatucado: além da aparente desnecessidade de uma nova versão pruma produção recente, cult, visceral e pessoal, e de estar trabalhando com um roteiro alheio, o alemão sempre esteve mais para o lado dos ateus, embora não necessariamente materialista. O que ele ia fazer com essa história de salvação nas mãos?

Bem, diz o Herzog que sua obra não é uma refilmagem ou adaptação da anterior. Que por ele o filme se chamaria só “Port of call: New Orleans”, mas alguém na produção detinha os direitos pro título “Bad Lieutenant” e queria meio que começar uma franquia. Tá bom. Vai ver esse alguém na produção viu que estava trabalhando numa história sobre um tenente de polícia drogadão, que assedia sexualmente menores, que tem problemas com apostas e que até mesmo trafica drogas e disse, “ei, eu já vi isso antes!”

Só que ele teve a vantagem de ver com o Harvey Keitel. O tira perdido da vez é o Nicolas Cage. Que começa o filme já no meio de um monte de referências bíblicas: uma serpente e um dilúvio. Ele é apenas mais um tira corrupto e cruel como seu parceiro Val Kilmer (Val Kilmer num Herzog?), mas em vez de levar a sério uma aposta sobre quando um prisioneiro vai se afogar na cela trancada durante a enchente do Katrina, ele acaba mergulhando na inundação pra salvar o vivente. Garante seu lugar no recomeço pós-diluviana, promovido a tenente, mas ganha em consequência um problema crônico de coluna.

Com a sutileza que lhe é característica, Nicolas Cage passa o filme todo torto e com as omoplatas encolhidas, num andar que rapidamente destruiria qualquer resquício de coluna vertebral. Tudo bem que não tem ele chorando nu e crucificado como fez o Harvey Keitel 17 anos atrás, mas com uma postura que imediatamente lhe garantiria dispensa até de um emprego de testador de colchões, é muito estranho que um bando de argutos policiais não perceba a óbvia metáfora para o peso do mundo que ele parece carregar. Como o tenente sem nome do filme do Abel Ferrara, o tira de Nova Orleans se afoga em drogas, descarrega sua frustração com abusos de poder, e frequenta prostitutas. Na verdade, não, namora uma prostituta de luxo. Mas a diferença entre os dois tiras e os dois cineastas fica clara logo na primeira sequência: o do Herzog tem um nome.

É porque o alemão é mais humanista do que teísta e a estrada para a salvação de Terence McDonugh começa quando ele investiga a morte de uma família africana com três crianças, inclusive uma assassinada logo depois de escrever um poema sobre seu amigo peixe, que olha para ele enquanto ele dorme. Torto, sem dormir, sentindo-se dimunuído frente aos clientes ricos de sua namorada, consumindo drogas à vista dos espectadores o tempo todo, o tenente mau ainda assim mostra inesperada perícia em seu trabalho. Pois ele acredita que solucionar o crime e levar o mais mau ainda chefão das drogas local à cadeia irá redimi-lo.

Herzog bota a fita de pé sem muito de suas costumeiras imagens líricas, mas quando estas aparecem, botam pra quebrar, como no assassinato dos capangas que acaba num espetáculo de street dance (não pergunte). Infelizmente, um tom corriqueiro num thriller policial não é o mesmo que um tom corriqueiro numa trama sobre uma expedição ao Amazonas no século XVI – é o que as séries de tevê gringas gostam fazem desde os anos 70. Mas o Werner é um cineasta que sabe tudo do ofício e rola a história com fluência e naturalidade sem precisar, graças aos céus, usar uma câmera tremendo como se segura por um atacante brasileiro na véspera da final contra a França em 98. Com toda a estabilização de imagem eletrônica, aparelhos cada vez mais leves e até mesmo a maior familiaridade de todo mundo com as cada vez mais onipresentes câmeras de vídeo, as únicas criaturas que ainda filmam tremendo como se estivessem com mal de Parkinson são os diretores de fotografia americanos (e alguns brasileiros).

E assim, sob esta sólida cinematografia, o corrupto Terry vai se afundando cada vez mais na mediocridade, assumindo mais e mais responsabilidades – a certa hora ele tem o carro cheio com um cachorro, uma prostituta e uma testemunha jogadas sobre suas frágeis costas - sem esboçar uma reação, apenas se deixando levar pelos acontecimentos. Até que eles fogem completamente de seu controle. E é aí que surge a diferença entre os dois cineastas de tenentes maus. O tira do Herzog vai tomar a tenebrosa estrada para o inferno e, como num livro de autoajuda às avessas, tenta reassumir o controle de sua vida – e sua identidade – quebrando até mesmo seu controvertido código de ética e desprezando todas as convenções. Este é o caminho para a excepcionalidade, a fuga a todas as trivialidades e futilidades burguesas que povoam a eternidade inútil do Nosferatu do cineasta. Associando-se aos assassinos da família africana, armando resultados de jogos, participando até de assassinatos, o homem, que a um ponto aceitou que sua namorada desse pra dois capangas pra se livrar de uma enrascada, consegue finalmente a solução para suas dívidas, para seus casos pendentes e para a promiscuidade de sua garota (Eva Mendes! Uau!).

Novamente de posse de sua vida – e de sua arma, uma Magnum 357, o revólver do Dirty Harry, o óbvio símbolo de sua masculinidade, que ele deixa o tempo todo à vista mal enfiada em sua virilha - ele consegue uma promoção, uma casinha com jardim e uma namorada grávida, uma prostituta casta. O sonho americano. Mas, escondido de todos, ele continua achacando menores e cheirando adoidado, até reencontrar o prisioneiro que salvou no começo da fita e os dois vão parar no aquário municipal. Apesar de tudo, Terry continua procurando alguém que olhe por ele enquanto ele dorme. Por um instante, parece que Herzog andou abraçando se não alguma religião, pelo menos um pensamento místico oriental. Até que Nicolas Cage, sutil como sempre, sorri, como se percebendo que nada daquilo faz sentido. E fade. Fim. Para Herzog, vem para todos.

janeiro 22, 2010

Kernel

Café descafeinado
Cerveja sem álcool
Maionese sem colesterol
Sexo sem gravidez

janeiro 18, 2010

"Você não consegue comer uma mulher sem levá-la a um restaurante chique?"
(Nicole Kidman, com desprezo, a Anthony Hopkins, em REVELAÇÕES)

Retrospectiva do Blogue: O Poema Bipolar

Playground e balões e começo de noite
Primeiro aniversário do filho de minha prima
Andando um pouco se chega à escada e as paredes
Estão nuas
E sem balões

No canto dos olhos, na fresta da visão,
no limiar do que se enxerga sob a luz
Sombras de outras eras passam,
Rápidas demais, indetectadas, inobservadas
Ignoradas por todos os outros

Um homem comenta comigo sobre travestis e homossexualidade
E que ele jamais seria homossexual porque tem pêlos, muitos pêlos
É tudo genética, ele explica, por isso travestis são lisinhos
(Eles não se depilam?)
Pergunto se todos os índios são gays
E ele diz que índios são diferentes

Miles Davis e Gil Evans e o concerto de Aranjuez
Somos todos profissionais aqui
Pais, mães e avós e tios
E perto da escada tudo permanece vazio

Sombras passam nas frestas, nas brechas
Nos cantos dos envolventes sorrisos quentes
Um amigo meu que morreu de overdose dois anos atrás
Passa incólume e indiferente como sempre
frente a essa gente

Os balões estouram
E as crianças devem se assustar
Mas os pais, os pais todos riem
Uma jovem de belos seios tira um deles para amamentar
Somos todos profissionais aqui

Economistas neoliberais de botequim explicam
A incerteza e a prisão do cooperativismo
Eleitores de Lula culpam os tucanos de tudo
Tudo posto assim em preto e branco
As sombras que passam são negras
E ao caminhar em direção à luz você encontra seus parentes mortos

A verdade, afinal, qual é a verdade?
Abracem-me, dúvidas, destruam meus profundos conhecimentos
Faça-me gargalhar
(para espanto geral)
Com o teatro de fantoches
Pelo qual o pai pagou tão caro
Distraia-me dos belos seios da mãe amamentando
(Será que ela não queria chamar a atenção de ninguém)

Perto da escada
Fumando um cigarro
Uma última moça de blusa e saia curte o cigarro
(Não se deve fumar perto de tanta criança)
Ela sorri quando eu chego perto
Como uma amiga minha internada
Que também não me reconhece
Mas sempre sorri feliz quando chego

Não falo nada
Meu amigo morto de overdose já teria puxado conversa

Ela se vai
Sombra luminosa em paredes sem balões
(Como já as outras vão ficando enquanto vão estourando)

Advogada e poetisa,
Minha prima explica depois
Uma história triste, você não ouviu?
O pai largou a mãe, a mãe ligou o gás
Com ela e a irmã em casa
Mas mudou de idéia ao ver as filhas vomitando

Que ela vote no PSDB
Que ela coma nos restaurantes indicados pelo RioShow
E veja filmes búlgaros que o bonequinhos aplaudiu de pé
Pode fingir gostar de filmes que pessoas inteligentes gostam
Pode fingir apreciar jazz e Marisa Monte e Miles Davis e Gil Evans
Porque ela talvez ao fim
Até goste
Ela já esteve lá
Ela já viu nem que fosse por um momento
Ela já esteve lá
Ela já esteve aqui
Comigo

Comigo

Comigo

Na fronteira da sensação de impotência

E onipotência

Onde na periferia da visão as sombras caminham em um
fugidio instante de tempo

Como nós
vivemos num fugidio instante do tempo

E mais balões estouram ao som de risadas

(E eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo)

janeiro 13, 2010

A Crise da Imprensa Escrita

Algumas postagens abaixo, linquei uns artigos dos anos 40 com conselhos pros americanos que estavam comprando sua primeira tevê, que então deveria parecer quase um aparelho milagroso. Quem sabe inglês vai se divertir porque as dúvidas dos consumidores eram exatamente as mesmas que os compradores em potencial das telas finas de hoje: qual o tamanho de tela mais indicado? Vou precisar de um conversor? Se eu comprar agora, não vai ficar logo obsoleta? Não é melhor esperar os preços baixarem um pouco? Qual modelo tem melhor taxa de contraste?

Clique na imagem para ampliar. Infográfico para mostrar quantas pessoas podem ver uma tevê, desde o modelo de 3 polegadas até o de 12 e o de RETROPROJEÇÃO de 16 polegadas (menos do que o monitor mais vendido para computadores hoje em dia). Retroprojeção era aquela tecnologia pra telas grandes antes do plasma e do cristal líquido, que deixava as imagens sem contraste e nitidez. Note também que já se usavam bonequinhos estilizados engraçadinhos.


Mas estive pensando um pouco mais sobre o assunto e me toquei de outra coisa: a linguagem dos artigos, fosse falando sobre como a tevê agora vai mesmo, o que você precisa saber pra comprar uma, ou o que a sua família precisa saber sobre ela. Eles foram escritos HÁ MAIS DE SESSENTA ANOS e ainda assim parecem um guia da VEJA pra aquisição de sua primeira tela grande. Até os infográficos têm funções e intenções parecidas.

Desde essa época, a tevê explodiu, a Internet explodiu, surgiu o vídeo-cassete, que libertou a gente da programação dos canais, a tevê a cabo, e as outras mídias, como cinema, rádio e literatura, mudaram e experimentaram radicalmente com sua linguagem. Mas a imprensa escrita ainda escreve artigos como há seis décadas. A tecnologia permitiu gráficos mais vivos, mas o design básico da página permanece o mesmo. Será que em 1889, sessenta anos antes de 1949, as revistas pareciam com as desses artigos?

O público mudou radicalmente de 1949 pra cá, mas os textos de revistas e de jornais permaneceram os mesmos. Não é só concorrência justamente da televisão e da Internet que está acabando com os periódicos impressos. Ou eles não sabem mais se renovar, ou sua forma atingiu a perfeição e, como todos sabemos, depois do apogeu vem a queda. Será que não temos respostas para a modernização da linguagem da imprensa escrita além de diminuir o texto ou botar espaços para comentários em sua versão internauta?

Essa decadência vem sendo acelerada pela Internet, mas esse fantástico fenômeno que visto daqui parece ter sido o único avanço tecnológico nesses sessenta anos comparável à revolução televisiva (o VHS, que nos libertou do jugo dos programadores, não chegou a tanto) nao é a única causa. Lá nos anos 80, adolescentes do São Bento, onde eu estudava, o melhor colégio do Brasil segundo o Enem, já não liam jornais. Na Escola de Comunicação da UFRJ, a melhor do Rio de Janeiro, teoricamente com a elite dos estudantes da área, quando os professores perguntavam quem lia jornal todo dia, menos de metade dizia sim. A Cláudia, poeta de primeira, texto ótimo, inteligente, leitora voraz de romances clássicos, frequentadora de sebos, por exemplo, não lia, e eu não entendia como. Na época dizia-se que a responsável era a tevê e seus telejornais. Talvez hoje, como então, estejamos todos enganados. É a falta de verdadeira renovação de uma forma aperfeiçoada quase já há um século e que se mostra incapaz de arrebanhar um público formado de maneira completamente diferente.

Só pra constar: em minha humilde opinião, quem mais está fazendo para renovar a linguagem jornalística impressa hoje em dia são os jornais populares. Ao contrário da crença da classe média, alguns são muito bem escritos num formato mais dinâmico, numa tentativa que vai muito além de simplesmente diminuir o tamanho do texto pra não afugentar o leitor.

janeiro 09, 2010

O Melhor Avião de Todos os Tempos



Se em 2009 voei até o Uruguay por 200 reais, é tudo por causa desta máquina voadora. Nos anos 70 passar pelo Santos Dumont garantia a vista de montes desse modelo e ainda tinha um aposentado no Aterro, exposto na Cidade das Crianças justamente pras crianças brincarem nele. E ainda hoje incontáveis desses aparelhos trabalham, e trabalham de verdade, fazendo muito mais do que voos nostálgicos e panorâmicos pra turistas. O Douglas DC-3 foi quem tornou o transporte de passageiros economicamente viável e deitou as fundações pra todas as companhias aéreas e, principalmente, pro desenho de aeroplanos comerciais até mesmo pra era do jato.


Isso é fácilmente comprovável. Basta olhar pra ele. Um único relance e você o reconhece imediatamente como um avião de passageiros. A mesma forma básica que até os mais modernos Airbus usam. Fuselagem cilíndrica, nariz curto, asas com corda curta (ou seja, estreita), bordo de ataque reto das asas, do leme e da empenagem, trens de pouso escamoteáveis. Ele tem até mesmo asas enflechadas, inclinadas pra trás, embora por razões completamente diferentes do jato – para equilibrar o centro de gravidade, enquanto as máquinas turbinadas de hoje as usam pra evitar problemas de compressibilidade, o fluxo do ar em velocidades transônicas.

A história do DC-3 começou quando a Boeing criou um avião de passageiros todo de metal, o modelo 247. Ele tinha asas cantiléver, ou seja, sem montantes, cabos de sustentação ou suportes, tornando o desenho bem mais limpo. Seus dois potentes motores podiam manter o aparelho no ar mesmo se um deles falhasse. No entanto, tinha alguns problemas. Em primeiro lugar, era pequeno demais – carregava 10 passageiros. Depois, tinha a asa grande demais. Os pilotos temiam que uma asa menor pudesse ser subdimensionada, fazendo a máquina perder sustentação mesmo em velocidades relativamente altas, transformando em pesadelo as aterrissagens nas pistas pequenas e rústicas da época (basta lembrar que grande parte do transporte de passageiros usava hidroaviões justamente por isso). E a asa atravessava a cabine de passageiros, tornando-a canhestra e pouco confortável.

Ainda assim o Boeing 247 era um salto quântico em relação ao que se usava na época. Veja abaixo o monstrengo lançado em 1930, o Handley Page 42, da Imperial Airways. Quatro motores, cordas suficientes pra estender toda a roupa da bagagem dos passageiros, e uma aparência completamente insegura. Eu não embarcaria nesse troço aí nem que me pagassem. O 247 foi projetado apenas um ano depois que essa coisa começou a realmente carregar gente de um lado pro outro e parecia tão promissor que ainda na prancheta foi encomendado pela United Airlines. A TWA também ficou interessadíssima, mas por contrato, só depois que a United recebesse toda a sua encomenda a Boeing poderia atender outras companhias, e naquele tempo a construção aeronáutica não era tão rápida. Assim, a TWA convidou algumas empresas a desenharem um avião de passageiros tão moderno quanto o da Boeing. A Douglas quase não entrou na briga porque não acreditava que houvesse mercado para 100 desses aparelhos, o custo calculado para o desenvolvimento do projeto. Mas acabou mudando de ideia e mudando o mundo simultaneamente.

O DC-1 carregava 12 passageiros e já tinha a cara do DC-3. Excedia todas as especificações exigidas pela TWA e galgou os ares na mesma época que o 247, em 1933. Mas era um aparelho tão bom que a TWA pediu à Douglas pra dar uma esticada no bicho pra carregar 14 passageiros. Ela o fez e em 1934 foi a vez do DC-2 alçar voo. A TWA pediu uma esticada final pra acomodar poltronas reclináveis e assim surgiu o DST – Douglas Sleeper Transport, em razão das poltronas reclináveis, também conhecido como DC-3.

O DC-3 tinha motores mais potentes. As hélices de passo variável aproveitavam melhor essa potência do que as usadas por modelos mais antigos como o HP-42. Perceba a diferença. As asas mais estreitas do que as do Boeing 247 geravam menos arrasto, tornando a máquina aerodinamicamente mais eficiente, o que se traduzia em mais capacidade de carga, mais alcance, mais velocidade e menor consumo de combustível. E tudo isso sem precisar de pistas enormes para aterrar por ter alta velocidade de estol (1), graças novamente à força daqueles motores.

Fora isso, o DC-3 ainda era exclusivamente para passageiros. Não que ele não fosse usado como cargueiro, mas é que nessa época, os custos de um voo eram tão grandes que a passagem era cara, pouca gente voava e o lucro dos operadores vinha de contratos do governo para transportar correio (lembram dos envelopes com o “via aérea”?). Numa afronta ao neoliberalismo, o Estado pagava as notas superfaturadas como forma de subsídio pra indústria aérea, considerada estratégica tanto militar quanto tecnologicamente. Assim, tudo que era aeronave comercial vivia basicamente de levar carta de um lado pro outro, e no espaço que sobrasse, os corajosos viventes que encaravam aquela viagem desconfortável e barulhenta.

Tudo mudou com a entrada em cena do DC-3. Moderno e robusto, ele precisava de pouca manutenção. Queimava pouco querosene, barateando as passagens e ainda oferecia aos clientes coisas como uma cozinha de bordo funcional, aquecimento e isolamento acústico. E aquelas formas arrojadíssimas para a época. Comparem-se-as com as de seu congênere, o 247. O Boeing parece uma caricatura, com seu narigão e suas asas superdimensionadas. Repare na forma bem mais arredondada de sua cauda e suas asas. As do DC-3, em vez de atravessarem a cabine, juntavam-se à fuselagem numa interseção quadrada, formando uma “caixa”, numa solução usada até hoje nas aeronaves comerciais.

Assim, o DC-3 parece a epítome do art-deco, com suas linhas limpas e retas sugerindo velocidade. Em relação ao quadrimotor da Handley-Page, ele levava mais viventes, mais longe e mais rápido. Ao lado do Junkers Ju-52, seu correspondente alemão, então é covardia. Trimotor, sem carenagem pros motores radiais, sem trem de pouso escamoteável, o transportador germânico podia ser considerado inferior por qualquer pessoa que não entendesse nada de aviação só de se olhar pros dois. O americano era quase 150 quilômetros por hora mais veloz. Frente ao Modelo 247, seu maior adversário, ele era 61 km/h mais rápido, sem contar sua flexibilidade. O Boeing tinha velocidade de cruzeiro de 304 km/h e máxima de 320, ou seja, praticamente só tinha UMA velocidade. Já o Douglas cruzeirava a 240 por hora e acelerava até 381.

Quando você pensa que o DC-3, ainda em sua forma menor de DC-1, decolou em 1933, mesmo ano em que a Curtiss lançou o Condor abaixo, ainda biplano, você sente a diferença. Durante a guerra, sua versão militar, o C-47 tornou-se o esteio da força aérea aliada como cargueiro, transporte, bombardeiro de patrulha, transporte de paraquedistas e muitos outros papéis, incluindo rebocador de planador. Na verdade, chegaram a tirar os motores dele pra experimentá-lo como planador e descobriu-se que ele tinha excelente desempenho, graças à sua avançada aerodinâmica. Tão confiável ele era que, desenhado para transportar no máximo 32 soldados, chegou a decolar com 73 passageiros - e pousar com 74, pois um bebê nasceu durante o caminho -, 228 por cento acima do limite recomendado!

Até a era do jato, a Douglas viveu às custas desse aparelho, já que os seus modelos maiores e intercontinentas, os DC-4, 5 e 6 são visíveis versões maiores do melhor avião de todos os tempos. Duvida? Olha o DC-6 aí embaixo.

Sendo tão versátil, dizia-se do DC-3 que seu único substituto era outro DC-3. Mais de 10.000 unidades foram fabricadas, fazendo dele figurinha fácil em vários aeroportos ou na Cidade das Crianças, em display estático. Só no Museu Aeroespacial de Campo dos Afonsos tem três, além de um quarto em que se pode entrar. Mas esse não é seu único uso. Várias companhias aéreas o usam para voos turísticos e panorâmicos, mas ele ainda trabalha de verdade mesmo em vários papeis – pulverização, transporte particular, transporte de cargas e passageiros, enfim, ainda é um avião de verdade. Nas minhas férias de 2007, encontrei esse aparelho aí embaixo no Aeroporto de Salvador. As antenas são para prospecção de minérios, conforme me foi explicado por um funcionário. Repare que os motores a pistão foram substituídos por modelos turboélice - o eixo da hélice não é girado por cilindros através de uma biela, mas ligado diretamente à turbina de um motor a jato. Como todo bom projeto, o DC-3 mostrou-se adaptável e atualizável para ser competitivo com a tecnologia 75 anos à sua frente.

Sem dúvida, o maior avião de todos os tempos.

1. Estol é quando as asas não conseguem sustentar o avião e ele subitamente cai como se morto. Acontece quando a velocidade é muito baixa e o ar passa lentamente demais pelas asas, ou quando a aeronave está em alto ângulo de ataque, ou seja, inclinado demais pra cima.

Outra Lua de Dezembro de 2009

Qual Tamanho de Tevê é o Mais Indicado pra Mim?

Você acha que tem problemas calculando se precisa de uma tevê de 32 polegadas, 42 ou 52? Problemas tinham os americanos quando ela apareceu, custava uma fortuna (pode botar pelo menos um zero no final de cada cifra pra ter uma ideia de quanto o aparelho custaria hoje) e era isso ou nada, ao contrário de hoje, quando você já tem um televisor e só está querendo uma imagem maior e/ou em alta definição. Interessante ver que como uma imensa tela de 16 polegadas poderia servir de atração pruma multidão. Fico imaginando como devia ser legal tentar ver a bola de beisebol em preto e branco na era da imagem borrada e da estática, nso primórdios da transmissão, com poucas e distantes câmeras. Segundo um outro artigo, você podia comparar a nitidez da nova tecnologia à de um filme em 16 mm. Com uma plasma de 60 polegadas, o autor do artigo provavelmente recomendaria uma por cidade (o repórter sugere que, em termos de preço do televisor, poder-se-ia calcular o gasto que o cidadão teria em aproximadamente 100 dólares da época por cabeça assistindo).

O artigo inteiro você pode ver aqui. O outro artigo, que posta fotos com o tamanho real do menor tudo de imagem disponível (3 polegadas) e o mais vendido (10 polegadas), está aqui. Curioso notar que muitas dúvidas da era da alta definição são as mesmas daquela era: qual o tamanho mais adequado pra minha sala? Do que vou precisar pra assistir aos programas? Vou precisar de um conversor? O aparelho não vai ficar obsoleto logo? E quais serão as tecnologias do futuro? Devo esperar o preço baixar?

Clique na imagem pra ampliar



P.S.: já li por aí que os fabricantes de televisão medem o tamanho da tela pela diagonal porque dá a maior medida possível. O segundo artigo, ao mostrar os tubos da época por dentro do aparelho, dão a verdadeira resposta: eles eram originalmente circulares, porque não havia tecnologia pra fazê-los retangulares (isso só começou a acontecer em 1951, segundo outra matéria retrô que não vou procurar agora pra vocês), logo a única maneira de se dar um tamanho era o raio do círculo. A imagem da transmissão, retangular, só batia com a forma circular na diagonal, daí...

P.S. 2: Neste artigo, o autor chega a discutir a taxa de contraste, avisando que ela em breve chegará a 15 por 1, enquanto a dos filmes é de 40 por 1. Engraçado como os fabricantes de LCD e Plasma alardeam taxas de 50.000:1 e até hoje ainda não conseguem empatar com os velhos tubos de imagem, o que dizer com os filmes...

Meus Filmes Favoritos da Década

Os filmes que eu achei os mais importantes estão em maiúsculas. Quanto aos outros a que faço referência, estão entre aspas.


A década começou mal – a família faliu, trabalho com teatro sumiu e eu e Vânia terminamos. Mal conseguíamos nos ver sem começar a brigar, mas ainda éramos muito ligados e a menina por quem eu tive ânimo pra largar aquela relação falida foi a Fernanda. Não que ela realmente me amasse, e tesão por mim, nem pensar, mas me ouvia, falava abobrinha e não me carregava com seus problemas, sem falar no par de coxas... e ainda tinha QI suficiente pra ir ver comigo QUERO SER JOHN MALKOVICH e se amarrar. Encontramos até o Bello e a namorada misteriosa na mesma sessão. Nem vou me estender muito porque já publiquei aqui no blogue neste linque um debate aqui em casa comigo, Marissa, Sílvio, Marquinhos e Bello. Divertido, engraçado, extremamente original e criativo e ainda com tempo pra sacanear novaiorquinos, pela primeira vez desde Joe Esterhaz após “Atração Fatal” um roteirista foi alçado ao estrelato. Os filmes que ele escreveu em seguida eram conhecidos pela intelligentsia como filmes de Charles Kaufman. “Adaptação” foi chato, mas BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS adicionou sentimento de verdade à receita e criou aquele tipo de fita que todo mundo gosta. O que é surpreendente, dado que a complicada trama contada de trás pra frente num universo mental estimulado eletronicamente aparentemente exigiria looongo conhecimento de histórias em quadrinhos e ficção científica barata. Parece que esses conceitos sci-fi já estão tão entranhados na cultura pop que até sua avó já os entende. O longa é carregado nas costas por Jim Carrey (!!), muito mais convincente do que em “O Show de Truman”, tem um estilo visual de videoclipe perfeitamente integrado à narrativa pseudofuturista e usa sua estrutura em reverso para mostrar não como um amor acaba, mas como ele começa – cada cena vai repondo um pedaço que se quebrou ou que faltava. E no final é aquilo, o amor que você leva é o amor que você tem.

Já que estamos falando de comédia romântica vale a pena citar um filme grosseiro, dirigido e editado meio nas coxas e, como toda boa produção do gênero, engraçado e sincero. O VIRGEM DE 40 ANOS foi o primeiro sucesso de Judd Apatow, que se tornou um mestre do gênero, a comédia romântica para homens, que andava sumida das telas desde que Howard Hawks se aposentou. Não que as mulheres não gostem – perguntem pra minha mãe, Lívia ou Suzy...

Bem, mas como ia falando, Fernanda não era exatamente apaixonada por mim e logo também estava sozinho e abandonado, desanimado, família falida... rapaz, nem gosto de lembrar deste período. Pelo menos nessa época, na mesma semana vi A ESPINHA DO DIABO e AMOR À FLOR DA PELE. O primeiro era uma visão original da Guerra Civil Espanhola, a partir de um orfanato para os órfãos dos republicanos, no meio do nada, entre onde o vento perdeu as botas e a casa do Judas. Intelectuais (literalmente) impotentes, mulheres maduras escravas do desejo, mulheres jovens escravas de seus sonhos românticos e garotos numa guerra fria pra se tornarem o macho alfa do grupo, crescerem e se tornarem como o sujeito mau que come as criaturas de saia, criado ali apenas para semear o mal. No meio disso tudo, um feto com a espinha do diabo, um fantasma e uma bomba não explodida encravada nas entranhas do edifício. A direção conta a história com uma crueldade seca (possivelmente influenciada pelos quadrinhos da linha VERTIGO – uma das mortes é exatamente igual à de uma série de “Jonah Hex” dos anos 90; não duvide nada, já que o diretor Guillermo del Toro adora HQ) ausente das fitas pipoca Blade e Hellboy, mas felizmente de volta a todo vapor para O LABIRINTO DO FAUNO, que retoma o período e a maldade com o mesmo gosto.


AMOR À FLOR DA PELE certamente não tem influência de quadrinhos, mas sim indubitavelmente de Sergio Leone e Alan Pakula e sua abordagem indireta – lembra aqueles filmes americanos dos anos 70 com histórias cheias de elipses, personagens falando de fora da tela, longas sequências que só depois de longas convoluções chega ao que interessa, quando não o faz casualmente, sem dar muita importância, num pequeno trecho no meio da cena? Pois é, parece que Wong Kar Wai adora o estilo. Mas enquanto Leone era mitológico (e também politizado) e Pakula era só politizado, Wai é filosófico e romântico. Talvez politizado também, mas eu não tenho a menor ideia da situação em Hong Kong que serve como pano de fundo pra história de amor frustrada que transformou o chinês em megaestrela cult. Seu filme seguinte, “2046” mereceu destaque em tudo que era caderno cultural, mas parecia mais anúncio de moda dos anos 80, além de cheio de autoindulgência e autorreferências. Os belos cenários cheios de padrões estilosos e elegantes, a música clássica e o ar compungido dos personagens levava o espectador toda hora a ficar esperando “Imagine Jeans” ou “Ferreira Fernandes”. Mais anos 80, impossível.

Ainda naquela fase negra do começo da década, uma das poucas alegrias que um nerd como eu poderia ter tido foi X-MEN. Tim Burton deu direção de arte e valores de produção pras adaptações de quadrinhos, mas seus longas não se levavam a sério de verdade. Seus imitadores não se levavam nem um pouco a sério, simplesmente achavam que sujeitos de colante com capa combatendo o crime era demais pra suas formações intelectuais e tentavam logo fazer algo brega-chique como o Batman da tevê dos anos 60. Na verdade, o caminho estava muito mais pro Batman da tevê do desenho de Paul Dini e Bruce Timm, dos anos 90, como se pode comprovar pelo longa animado “A Máscara do Fantasma”, uma transcrição pra tela da série “Batman ano 2” e que talvez tenha sido até sua época a melhor versão cinematográfica do homem morcego.

Bryan Singer nunca tinha lido X-Men e entre seu clássico “Os Suspeitos” e o século XXI só tinha dirigido um filme, “Apt Pupil”, que eu só sei que existe porque acabei de consultar o IMDB. No entanto, como se por mágica, ele apreendeu perfeitamente o material e criou um universo fílmico que parecia naturalista e ao mesmo tempo comportava superpoderes sem parecer forçado ou ridículo. Na verdade, o primeiro longa da franquia tinha exatemente o clima de uma historinha do Stan Lee: rápido, com cenas bem construídas dramaticamente, com a preparação, a penetração e o clímax em cada sequência, ao invés do clímax sobre clímax do filme de ação medíocre típico – um monte de cenas grandiosas e barulhentas uma atrás da outra acaba literalmente monótono, samba de uma nota só, acaba tirando o impacto de todas elas. Em pouco mais de hora e meia, eram apresentados os personagens, os inimigos e a trama, tudo se resolvendo satisfatoriamente.

As cenas de ação, que deveriam ser o ponto alto, eram mediocremente coreografadas e editadas muito picadas, como nos Batman do Chris Nolan. Acabamos não entendendo nada do que está se passando. Mas o que importava isso diante das caracterizações tão perfeitas dos personagens, ou de uma cena tão bem construída como Magneto ameaçando os policiais com as próprias armas deles? E a Mística andando virtualmente nua pelo filme inteiro? Ao público pipoca juntou-se um monte de gente que nunca curtiu supererói, mas o tema antipreconceito da historinha cativou todo mundo. Não deve ter sido coincidência que tanto os X-Men quanto a Patrulha do Destino, outro grupo de rejeitados, tenham sido criados na época da luta pelos direitos civis nos EUA. Pena que nenhum dos dois tivesse tido coragem de botar um negro na equipe. Negros só vestiriam malha justa pra combater o mal nos anos 70, na era da blaxpoitation.

Infelizmente, o segundo filme dos mutantes, embora legal, parecia por sua vez uma historinha do Claremont. Dos bons tempos do Claremont, mas assistindo à coisa fica claro como os quadrinhos dos anos 80 influenciaram o cinema de ação. A fita não parece tão original, já que bebe da mesma fonte que outros longas, e tem muito mais porradaria, tão mal dirigida como na primeira parte – com exceção da invasão da Casa Branca: embora também não entendamos muito do que está acontecendo, pegamos o desenho geral da coisa e Noturno se teleportando pra evitar tiros e guardas é muito maneiro. Pra mostrar uma verdadeira briga de supereróis, tão cinética e enérgica como nas páginas de Romita, Kirby, Byrne ou Perez, seria preciso um cara que realmente entendesse da coisa.

Esse cara foi Sam Raimi. O primeiro “Homem-Aranha” já foi um barato, mas o cinema de supererói atingiria seu auge com HOMEM-ARANHA 2. O blogueiro viu o trailer e contou pro valente editor da Zé Pereira, “o Peter Parker desiste de ser Homem Aranha” e o editor exultou, “céus, eles realmente são fiéis à fonte”. Qualquer nerd que se preze sabe que esta trama é uma das mais constantes na vida do sobrinho da tia May.

Raimi, colecionador do gibi do herói, um dos diretores que mais movimenta a câmera na atualidade, sem tentativa de realismo com tremedeira e rápidos pannings, casou perfeitamente com Peter Parker. O Homem Aranha atravessa as ruas de Nove Iorque com a teia de uma maneira espetacular, atravessando espaços na carroçeria de caminhões e chegando até o rés do chão. A edição é acelerada, mas cada cena constrói com ritmo perfeito seu clímax. Como nos bons scripts de Stan Lee, a trama é recheada de bom humor, sem perder a dramaticidade – o velho roteirista sempre deixava claro que aquilo tudo é, afinal, história em quadrinhos.

E as composições são espetaculares. As lutas parecem ter saído diretamente da prancheta de John Romita, que muita gente parece não perceber que é uma das maiores influências sobre a porradaria de supereróis. Dentro de um cinema cheio, era infalível a salva de palmas quando o Aranha era jogado pra longe de um trem e manobrando com as teias e saltando sobre carros, volta para confrontar o dr. Octopus. Entendemos perfeitamente o que está acontecendo e porque o sobrinho da Tia May vence, ao contrário dos Batman, X-Men e Transformers, onde tudo acontece tão acelerada e freneticamente que parece tentar nos convencer que não conseguimos acompanhar nossos heróis, quando na verdade apenas se disfarça a falta de brilho na porrada. Como definiu com felicidade o crítico Glenn Erickson falando sobre “Gladiador”, parece o trailer da melhor cena de ação jamais filmada.

Já que estamos falando de heróis uniformizados, não se pode deixar de fora o que o blogueiro achou a melhor animação da década numa era em que os computadores tornaram a produção de um desenho em longametragem acessível a praticamente qualquer estúdio. OS INCRÍVEIS toca em dois assuntos caros a este escriba: superomens e crise de meia idade. Nos extras do DVD há uma cena deletada de um churrasco de onde se depreende que na concepção original os Parr não largavam as malhas justas por imposição do governo, mas sim para criar uma família, explicitando ainda mais o tema de sonhos de juventude abandonados. Na fita esta ideia foi abandonada, talvez por soar amarga demais, mas o enfoque foi mantido.

As lutas são ótimas, explorando toda a capacidade da animação pra cenas de ação e a edição é ótima, evitando o picadinho americano. Vemos os poderes de nossos heróis agindo, vemos suas estratégias, vemos o casal veterano invadindo a fortaleza do vilão e entendemos perfeitamente que estão usando toda sua experiência e que já fizeram isso muito na vida, graças às suas reações e seus rostos, que ganham tanto destaque quanto as brigas. Além da comédia, o longa está entre as melhores adaptações de supererói pra tela grande.

Mas já vou me esticando demais e a postagem ficando tão grande que desencoraja a leitura, portanto, abodarei os outros filmes que fizeram a década pra mim numa segunda parte.

janeiro 08, 2010

Geribá Dezembro de 2009

Teresa Viana na Praia


O Futuro Chegou em Três Eixos

O Marquinhos me conta que leu um artigo falando que em 2045 ninguém morre mais, vamos ter chips no corpo, no cérebro e basicamente seremos seres de informação e não biológicos. À parte a ironia de que deverei sobreviver até os 80 anos pra conseguir me tornar imortal - porra, podia chegar duas décadas mais cedo!!!! - o que achei mais curioso é descobrir que a ciência e a racionalidade, com sorte, nos levarão a um estado em que seremos feitos de pura energia, imortal, deixando para trás esses corpos mortais, o que significa que teremos que abandonar nossas preocupações com as coisas materiais e por conseguinte nosso egocentrismo, a fim de fazermos parte de uma grande comunidade onisciente... ei, peraí onde já ouvi isso antes?

janeiro 06, 2010

Lançamento de O CICLISTA DA MADRUGADA








Freda nas Paineiras

Caro Sr. Melville:

Seu original é muito interessante, mas baleias são uma espécie em extinção e, com exceção dos japoneses, não vejo quem mais se interessaria por tantos detalhes sobre sua caça. Nossa sugestão seria que, no final, quando o capitão Ahab estivesse para arpoar a baleia, ele a ouvisse cantando e a melodia tocasse seu coração, fazendo-o desistir de sua vingança, dar meia-volta e retornar para sua esposa. Acreditamos que tal enfoque seria mais bem-visto pela sensibilidade dos leitores que tornaram O CAÇADOR DE PIPAS e outros (...)
A verdade havia arrasado com Ricardo, roubado suas forças e seu ânimo quando ele mais precisava, quando finalmente havia arrumado um emprego, um primeiro emprego, um bom começo (e um fim em si próprio). A verdade, quando ele estava mais vulnerável, trabalhando, sem disponibilidade para não se levantar da cama, para não ir à faculdade (faculdade não, era difícil pensar nisso, faculdade nunca mais, professores nunca mais, aulas nunca mais, toda uma vida na segurança da busca do diploma e agora nunca, nunca mais), sem disponibilidade para se lamentar com os amigos em tardes quentes intermináveis em verões acachapantes. Vulnerável e sozinho, enquanto seus conhecidos estavam na praia e nos chopes que ele não mais podia frequentar.

O que era, aliás, justamente a verdade começando a se insinuar.

Búzios Dezembro de 2009

Pôr-do-Sol na Azedinha





E a fotógrafa fotografada

Pista Cláudio Coutinho Dezembro de 2009


janeiro 05, 2010

O Sherman


Um Sherman no Museu Militar Conde de Linhares, em São Cristóvão, em frente à Quinta.

Os russos construíam armas duras na queda, os ingleses tinham desenhos elegantes, os alemães gostavam da tecnologia de ponta e os americanos preferiam na II Guerra a praticidade, como já falei aqui em relação aos aviões deles. E quanto aos tanques, era a mesma coisa (salvo talvez o tanque leve M4).
O Lee (ou Grant, em modelos posteriores. Os dois velhos generais da Guerra Civil iriam adorar se soubessem). Note as semelhanças com o Sherman no casco.

O Sherman é uma evolução natural do Lee-Grant, que, no melhor estilo entreguerras, tinha o canhão grandão (para a época) de 75 mm no casco e um canhãozinho de 37 mm na torreta giratória, tornando-o desajeitado para batalhas contra tanques - e olha que ele foi se meter logo na África, tendo que enfrentar o gênio dos blindados, Rommell. Os aliados não precisavam desses dinossauros, precisavam de um desenho moderno e prático e conseguiram com o Sherman.

Acima, um motor axial, abaixo um radial. O radial tinha a mecânica mais simples e era refrigerado a ar; o axial tinha uma forma mais aerodinâmica para aviões e mais adequada ao casco de um tanque. O uso de um motor radial obrigava o Sherman a ser alto e, portanto, um alvo mais fácil.

O M4, sua designação oficial, herdou o motor radial e a suspensão de seu antecessor. Os ianques adoravam motores radiais, mais leves, simples e fáceis de construir. Sacrificavam as linhas esguias sem pestanejar em troca de um propulsor mais simples, fosse pra seus aviões ou pra seus blindados. Assim, o Sherman começou a vida já com uma silhueta alta, tornando-o um alvo mais fácil. O uso de gasolina, em vez de diesel, também o fazia vulnerável a incêndios, uma vez bem atingido.

Mas e daí? Enquanto seus adversários paravam, ainda que incólumes, por falhas mecânicas, o simples motor radial do Sherman mantinha-o combatendo com pouquíssima manutenção. A decisão de padronizá-lo como virtualmente o único tanque americano facilitou ainda mais a vida dos mecânicos atrás de peças de reposição. E, com seu desenho modular pensado para a barata produção em massa, também era muito fácil atualizá-lo para encarar os avanços dos inimigos.

Enquanto isso, os alemães construíam máquinas superiores, porém caríssimas, utilizando avançadíssimas soluções técnicas, que justamente por isso viviam dando problemas, por não testadas anos e anos em condições normais de uso. O único dos seus carros de combate que aguentou ser progressivamente atualizado até o fim da guerra foi o Pz IV, inferior ao Sherman, que pelo menos já tinha casco inclinado, o que aumentava a proteção (em breve postagem, explicarei o porquê desta inovação do T-34 russo ser tão brilhante).

Assim, o blindado americano atendia a cada novo requisito da guerra. Novas armas antitanque tornaram a blindagem fina? Era só espessá-la. O desempenho fora de estrada deixava a desejar? Mudava-se a suspensão. O canhão de 75 mm, apesar do calibre, era curto demais pra penetrar um Pantera? Adaptava-se um outro de 76,2 mm e 75 calibres de comprimento. A torreta ficava pequena? Era só ajustar uma maior. Ainda nos anos 70, o Exército de Israel usava uma versão modernizada do bicho, o Super Sherman. Israel não é conhecido por usar armas de segunda linha, embora seja verdade que o Super Sherman só depois de uma boa olhada fosse reconhecível como o mesmo tanque da II Guerra Mundial. Provavelmente só o Spitfire passou por tantas mudanças em sua vida útil.

O Pantera tinha duas fileiras de rodas-guia para as esteiras, uma ótima ideia para reduzir a pressão sobre o solo e aumentar o desempenho em terreno ruim...

...até a hora em que tivesse que se fazer um conserto.


Com sua baixa tecnologia e desenho modular, o Sherman era produzido às dezenas de milhares de unidades, enquanto o Pantera, o supertanque médio alemão, tinha problemas com sua complicada usinagem e pesada blindagem. Seu projeto era tão elegante que as rodas-guia para as esteiras se dividiam em fileiras internas e externas, diminuindo a pressão sobre o solo e consequentemente aumentando o desempenho em terreno acidentado, nevado ou enlameado. Excelente ideia, já que o Pz IV vivia atolando na lama do degelo russo ou mesmo na neve. Infelizmente, essas rodas todas atravancadas congelavam com facilidade à noite nas estepes soviéticas e davam um trabalhão de tirar quando se tinha que fazer qualquer reparo nelas, na esteira ou mesmo no chassi.

Pra se ter uma ideia, o comando aliado calculava que seriam necessários 4 Shermans pra enfrentar um Pantera. O Pantera custava o triplo, usava mais do que o dobro do material e levava o quádruplo do tempo pra ser construído. Tinha problemas para atravessar pontes, devido ao peso, e quebrava com facilidade. Normalmente os americanos tinham os 4 Shermans e mais alguma folga pra enfrentar as Unidades Panzer.


O Sherman Firefly - o canhão mais longo exigiu que a torreta fosse esticada para trás para equilibrá-la.

Tão eficiente era o novo canhão no papel antitanque que uma camuflagem era usada para fazer os alemães pensarem que era o velho Sherman e que podiam ficar a uma distância segura dele.

Outro grande problema do Sherman foi seu canhão. Embora na hora em que foi criado, fosse um excelente armamento para tanque, rapidamente se tornou fraco demais. Um canhão de 76,2 mm foi improvisado em alguns Shermans, que ficaram conhecidos como "Vagalume" (Firefly). Com esse novo armamento, o velho carro podia encarar os Panteras, que com sua arma e blindagem melhores, combatia os ianques a distância em que os 75 mm padrão eram inofensivos.

Mas os Firefly nunca foram muito numerosos por vários motivos. A filosofia de combate americana previa que tanques fossem usados para explorar brechas e apoiar a infantaria, enquanto poderosos canhões motorizados, como o Hellcat Tank Destroyer, é que deveriam enfrentar os panzers. Além disso, a maior parte da blindagem alemã estava na Frente Oriental, tornando-os alvos menos prováveis para os Shermans do que casamatas, infantaria, instalações e suprimentos. Para esse tipo de destruição, o armamento padrão de 75mm era mais adequado, contando com uma granada explosiva com maior poder de destruição e mais precisa do que sua congênere do Firefly.

O Hellcat parece um tanque, mas não é. Pra começar, a blindagem é muito menor, pouco mais do que o suficiente pra parar balas de metralhadoras pesadas. A torreta também é fixa: sem ter que rodar num mecanismo que seja capaz de aguentar seguidos coices de um enorme armamento a qualquer ângiulo, ela pode carregar um canhão muito maior, aqui um de 90 mm. Em compensação, pra mirar, só girando o carro todo. Teoricamente a velocidade e agilidade da máquina torná-la-iam difícil de atingir. A distâncias mais curtas, tinha dificuldade de mirar e de combater mesmo os blindados mais leves, capazes de enquadrá-la em mira com um rápido giro de sua arma.

O desenho modular do Sherman também permitia várias úteis adaptações: ele funcionava como bulldozer, com uma pá de escavadeira na frente. Braços que subiam e desciam à sua frente, cheios de correntes, batiam o chão e explodiam minas no medelo "Caranguejo" (Crab). Na batalha da Normandia, depois do dia D, os aliados tiveram problemas com as cercas vivas (bocages) que grassavam na França: terra batida com cerca de meio a um metro de altura, mantida no lugar por árvores e plantas. Os alemães montavam uma posição atrás desses bocages e o tanque, ao subir a pequena elevação, deixava seu ventre pouco blindado à mostra. Era quase uma trincheira por propriedade. A solução, como sempre, envolveu o Sherman. Vigas com pontas afiadas foram soldadas à sua parte de baixo: elas enfiavam-se na base dos bocages e o carro, em vez de subir, ia destruindo o morrinho.

Enfim, numa guerra que viu o surgimento de tantas novas tecnologias (radar, míssil balístico, jato, fuzil de assalto) ou inovações (blindagem inclinada, mira por radar), é curioso que uma das mais importantes e decisivas armas tenha sido um tanque aparentemente de desempenho medíocre, mas que nada podia deter. O Sherman foi para os blindados da época o que o Fusca foi pros carros nacionais dos anos 50 aos 70. Não era bonito, grande ou potente, mas dava conta do recado e acabava deixando os modelos mais caros pra trás na hora em que precisava.

janeiro 03, 2010

Plástico de Carro

Nada acontece a uma pessoa que não se pareça com ela (Aldous Huxley, Contraponto)

Retrospectiva do Blogue - Oração

Perdoe-me, Pai, pois eu cometi atos... questionáveis... muito amor prometi a mulheres apenas para tê-las a meu lado. Muitas levei a mostras de filmes... de livros... restaurantes caros e lojas caras e as afoguei num mar de citações, pois esqueci que mesmo sabendo a língua dos Anjos, sem amor eu nada seria. Mesmo em presença delas, desejei outras e na realidade nenhuma desejava, pois da minha vida em meio à jornada, achei-me em selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada. Escolhi os líderes errados e segui Verdades tão confusas quanto eu. Odiei os que me queriam bem por serem felizes e não me fazerem feliz e chamei de invejosos àqueles que não se curvaram aos meus caprichos. Fomentei o desprezo por todos os atos de piedade e compreensão para que eu não tivesse que me apiedar ou compreender os outros. Eu pequei, Pai, reneguei tudo em que acreditava - por dinheiro, poder e sexo, eu menti, enganei e trapaceei - e, em minha mesquinhez chamei meus pecados de maturidade... e êxito. Perdoa, Pai, este teu filho tão cruel, egoísta e covarde que nem mesmo perder-se conseguiu. Perdoa-me por, com tudo que me deste, não Te agradar nem desagradar. Perdoa-me por aceitar que outros se penitenciassem por mim. Que outras o fizessem... Perdoa-me por nunca ter-lhes dito o quanto as amava... o quanto...

Senhor, abençoa os mesquinhos e egoístas, pois não conseguimos Te perceber e Te buscamos na imagem e semelhança de tantos corpos de barro tentanto enxergar o fantasma na máquina, tentando ver no outro a divindade que nós já perdemos.
Publicada por Ave em 4:54 PM 1 comentários

Como Seria "Caçadores da Arca Perdida" Se Tivesse Sido Feito nos Anos 50?



Um maneiro trailer feito com filmes dos anos 40 e 50 (principalmente "Secret of the Incas") reimagina o clássico de Steven Spielberg, como seria se feito na era de ouro dos estúdios. E sim, é Charlton Heston antes da fama, vestindo um gibão de couro e um chapéu. Pura... coincidência?

Lua Azul Dezembro de 2009




Os Shows que Eu Mais Gostei na Década

5. Strokes no Cais do Porto, 2005

Os Strokes são uma das bandas de rock mais influentes do rock contemporâneo. Embora o show deles tenha sido condizente com sua postura "cool" (lembrando muito o blasé "The Fall" no palco) - muito bom, mas sem grandes efeitos especiais, não há como deixá-los de fora desta lista. Pensei em botar aqui Walter Franco no CCBB em 2003, mais velho, maduro e tranquilo e tão ausente dos palcos que qualquer apresentação sua merece destaque; Buddy Guy no Metropolitan (ou seja lá como esse troço se chame agora) em 2002, uma esplêndida performance, com a casa na época com uma acústica perfeita, mas ele tá sempre por aqui; Brian Wilson em São Paulo, mas apesar da emoção e das boas vibrações de vê-lo cantando seus clássicos, incluindo, é claro, Good Vibrations, God Only Knows e a oração que abre o seu então recente "Smile", mas seu jeitão autista parecia uma prévia de Arnaldo Baptista nos Mutantes (ver adiante), portanto vou ficar mesmo com os novaiorquinos que influenciaram os Vines, Hives, Queens of Stone Age e milhares de outros grupos que surgiram por aí. Sem contar que o Cais do Porto é um puta lugar pra esse tipo de evento.

4. White Stripes no Metropolitan, ou seja lá o nome que esse troço tiver agora, 2005.

Tá, tá legal, não foi um show tão bom assim, mas o que fazer, é a única banda contemporânea da qual REALMENTE sou fã. Já que as cores da banda são vermelho e preto, Jack White veio vestido como um exu - não sei se por coincidência ou se alguém contou a ele - e mostrou tremenda presença de palco, mais do que suficiente pra ele e pra ex-mulher que se passa por irmã. Não foi tão memorável quanto a apresentação na Ópera de Manaus, onde os manauaras enlouqueceram com a presença de verdadeiros astros de rock no apogeu, coisa bem rara de se ver por lá - já os Stripes fizeram questão de tocar lá quando souberam que havia um orfeão daqueles no meio da selva. Legal, não? Os sem-ingresso, aparentemente a cidade inteira, ficaram do lado de fora acompanhando por telões, até que Jack desceu do palco, atravessou os corredores e foi pra praça lá fora pra cantar umazinha no meio da multidão. Você tem que gostar de uma banda que toma essas atitudes numa época em que os músicos parecem cada vez menos gostar do povo que os sustenta.

3. Radiohead (e Kraftwerk) na Apoteose, 2009

Vi pouquíssimos shows em 2009, dei sorte que vi este. Fui ver o Radiohead porque gostava das baladas deles e nem desconfiava que ao vivo aquelas melodias se tornassem tão pesadas, dançantes e empolgantes. Logo o Radiohead, o Thom Yorke com aquele jeitão tão sensível, quem imaginava que num palco ele tivesse carisma suficiente pra botar uma Apoteose pra dançar com aquelas melodias aparentemente tão suaves? E olha que ele nem tocou "Freak". Ajudando muito estava o telão, usado como parte do sofisticado cenário, criando o clima angustiado que adolescentes e rock'n'roll adoram.

E ainda teve antes o Kraftwerk, o avô da música eletrônica. We are the robots. Charging our battery and now we're full of energy. O show foi maneiro, mas esse é talvez o emprego mais fácil do mundo. Ficar em pé num palco, navegando saites pornô enquanto toca aquelas bases todas já pregravadas, pré-gravadas, ah, sei lá.


2. Neil Young no Rock in Rio III, 2001

Acho que não preciso falar muito sobre esse show. Quem viu, viu, quem não viu pode assistir ao DVD pirata que foi disponibilizado logo depois pelos camelôs. Eu tenho só o CD. Os fãs do veterano maluco já eram na época um bando de cansados balzaqueanos com pouca disposição pra se mandar lá praonde o vento perdeu as botas e passar o dia inteiro vendo showzinhos e showzões pra depois ter que encarar a longa viagem de volta em transporte público, já que automóveis particulares não podiam chegar perto da Cidade do Rock. Resultado: uma performance para relativamente pouca gente, o que me permitiu ver o ex-parceiro de Crosby, Stills e Nash a vinte e cinco metros de distância - e só não foi menos porque eu estava querendo conforto pra dar uns amassos (mais detalhes adiante). Com velas no palco, uma banda disposta a fazer barulho e loooooongos e distorcidos solos que fizeram nove músicas renderem duas horas e meia, o velhote mostrou muito mais energia do que esses emos prefabricados, pré-fabricados, ah, droga, não vou consultar isto agora não. O ponto alto foi quando uma das cordas da guitarra arrebentou e o Neil Jovem, em vez de parar, trocar de instrumento ou algo parecido, simplesmente ficou batendo com ela nas outras pra tirar um som maneiro. ISSO é rock'n'roll. Sem contar que o cara toca pra burro. E sem contar que foi o último show que vi com a Vânia, parecia que íamos conseguir voltar. Foi muito legal.

1. Mutantes no Circo Voador, 2007

Eu vi o anúncio pintado na parede e liguei pra Suzy, "vamos nos dois dias?" "Do que você está falando?" "Tem Mutantes sexta e sábado no Circo Voador." "Claro!"

Eu devia botar como número 1 o Jovem Neil, afinal este show era um "Grandes Sucessos dos Mutantes", sem Rita Lee, elemento fundamental da banda, com o Arnaldo Baptista sem voz, mas com todos os seus problemas, enfim, basicamente era Sérgio Dias e banda fazendo um cover dele mesmo. Mas que cover, que maiores sucessos e que banda!

A gente tinha ideia do que iria ver porque tinha comprado o DVD ao vivo com a volta dos Mutantes em Londres. Legal. Era aparente que todo mundo estava se divertindo. O Arnaldo Baptista estava sem voz e com ar lesado, mas sorria e parecia feliz em estar num palco com muuuita gente na plateia. A Zélia Duncan, que substituía Rita Lee, passava o tempo todo com uma cara, "gente, eu não acredito que estou cantando com os Mutantes" e o Sérgio Dias era outro contente em ver que seu público não estava limitado à meia dúzia de gatos pingados que gosta de música instrumental e que vai aos seus shows.


Uma dessas mãos é minha, eu sei qual, mas é complicado de explicar


A primeira apresentação dos Mutantes no Rio foi no Vivo Rio, aquela pavorosa casa de espetáculos no Aterro. A acústica estava uma merda, já era proibido fumar, Zélia Duncan tentou cantar "Ando meio desligado" em inglês (justiça seja feita, era o que a banda pretendia, mas assim que o Sérgio Dias viu que o público estava ignorando a letra em anglo-saxão, teve que falar com a cantora prela se tocar e não tentar forçar a plateia a fazer o que Zélia Duncan queria) e ainda assim foi um grande show. Mas Mutantes tem muito, muito, muuuuuuuuuito mais a ver com Circo Voador.

Logo de cara a surpresa: quem disse que a garotada de hoje em dia não conhece nada de história da música? Mutantes tem prestígio, mas seus discos são difíceis de achar e a única integrante que ainda fazia sucesso até os anos 80, 90, anda também sumida. Isso não impediu de estar cheio de adolescentes no Circo nos dois dias. Do meu lado, um moleque de seus vinte anos torcia para que o Arnaldo Baptista enlouquecesse de vez e tocasse todo o "Loki" (esplêndido disco, pouco conhecido, ainda mais antes do longametragem homônimo contando a história do Arnaldo). E entra o Sérgio Dias, empunhando (como sempre desde a volta da banda) a velha Guitarra de Ouro, que abandonara em sua época de músico instrumental, vestido de Barão Vermelho, seguido do Arnaldo, da Zélia e dos cantores de apoio, todos com uma cara de estarem curtindo pra burro, açodadamente, adoidadamente.

E foi assim, o show teve muito mais energia e força do que o que aparecia no DVD e do que o do Vivo Rio. O público estava mais perto, era mais quente, não eram velhos com grana pra ser escorchada pela Vivo, era a garotada que frequenta a parte cabeça da Lapa, cheia de disposição e não acreditando (como eu) que lhes fosse dada ainda a graça de verem a banda que idolatravam em seu lugar favorito, em seu bairro favorito, tocando suas músicas favoritas, os maiores sucessos da carreira (em vez de tentar impingir as faixas de um disco novo, he, he) com tanta garra e disposição. Eu, por exemplo, nunca tinha imaginado que "Ando meio desligado" pudesse ser uma música tão pesada, tão rock'n'roll num palco - confira o vídeo abaixo, que eu já tinha postado na época mesmo. E o non plus ultra ainda foi quando eu virei por lado durante "Ela é Minha Menina" e vi uma menina de seus dezenove anos, branquinha, magrelinha e baixinha (embora longilínea), com cabelinho curtinho, bem uma gracinha moderninha mesmo, vestida apenas da cintura pra baixo, com seus simpáticos peitinhos ao léu, como diriam em Portugal. Segundo a Suzy, ela passara pouco antes com o namorado pela gente, com ela entusiasmada comentando, "vamos tirar os dois, vamos tirar os dois", concluindo depois a Suzy que ela se referia às camisas de ambos, sem se tocar que ela causaria muito mais comoção que o garoto. E o clima estava tão Woodstock-não-morreu que ela assistiu ao resto da apresentação toda seminua e, depois do bis, depois de acabado, quando eu e Suzy dirigíamo-nos para a saída, ainda passamos por ela conversando calmamente com os amigos com os seios ainda livres e desembaraçados.

Ah, sim, como falei, eles tocaram "Minha Menina" e também fizeram uma versão bem mais pesada do que a que tinha no DVD. Foi de arrepiar. Show de rock'n'roll mesmo. Solos de guitarra (isso NÃO É proibido). Sérgio Dias se atirando ao chão tocando a Guitarra de Ouro (o que me assustou, afinal ele podia dar um jeito na coluna ou no joelho e acabar tudo, afinal ele tem 60 anos), solos de percussão, enfim, um showzaço. Os melhores shows da década, pra mim. Do caralho. E o de sexta ainda foi melhor, mesmo descontando os peitinhos. Pena que logo depois a história se repetiu e a cantora foi cuidar da carreira solo e Arnaldo Baptista soltou uma nota pra imprensa dizendo que estava saindo pra dar mais atenção à sua banda Patrulha do Espaço. Era 1973 outra vez!

Pelo menos naquelas duas noites no Circo Voador, era. Não era um bando de velhos tentando faturar algum, mas uma banda afiada, pesada e cheia de gana com gás suficiente pra botar uma garotada dançando por duas horas e dez do rock pesado e genial da maior banda do gênero a surgir neste país.

Predador Pretensioso



"Ei, gente, olha só, peguei um cavalo inteiro! Um cavalo! Ei, cavalo, eu peguei você, não peguei?"

Clint Eastwood - O Homem e a Progressão do Mito

Acabei de ver "Gran Torino" em Blu-ray (uma espécie de DVD em alta definição - sorry, periferia). O velho Clint já havia anunciado na época em que lançou "Mystic River" (Sobre Meninos e Lobos) que havia se aposentado como ator, mas que um bom roteiro, principalmente de bangue-bangue, poderia fazê-lo voltar à frente das câmeras. GRAN TORINO não é um western, mas é um competentíssimo roteiro sobre ritos de passagem (assunto adorado por americanos). Como a esta altura da carreira já está mais do que claro que Eastwood não faz papel de coadjuvante e é pouco provável que alguém concatene um script realmente interessante com um octogenário em esplêndida forma como protagonista, parece pouco provável que vejamos o rosto do velho diretor novamente nas telas. Assim sendo, a última imagem dele em película terá sido sua morte, crivado de balas em pose de crucificação, para salvar seus vizinhos asiáticos.

Assim, mesmo sem querer, Clint Eastwood, inegavelmente um mito do cinema, percorreu a evolução do mito nas sociedades. Não sei a religião dele, mas os últimos dois filmes que protagonizou, "Menina de Ouro" e "Gran Torino", têm padres que ele sacaneia, mas que depois se mostram perspicazes e inteligentes. Sua carreira começou também nas mãos de um católico, o ritualizadíssimo Sergio Leone, mas o personagem que ele fazia tinha pouco a ver com o Cristo referenciado em TORINO. Pelo contrário, parecia mais um herói da Idade do Ferro, herança das sociedades caçadoras coletoras. Esse povo não plantava e ficava esperando os grãos brotarem, eles metiam a mão na massa - pegavam suas lanças e saíam na porrada com os bichos em troca da carne deles. Matar para sobreviver criou a culpa (não foi invenção do monoteísmo, como muita gente pensa) e exigia, junto com a inteligência, a destreza e a habilidade. É o que celebramos até hoje nos esportes. É dessa época que vêm as mitologias "vivas", em que a mágica ainda acontece: pense nos índios brasileiros e seus pajés, que entram em transe e vão lutar pelas almas dos doentes com divindades malignas ou as lendas sobre todas as criaturas que habitam a floresta - curupiras, sacis, botos e mães d'água. Esta é a era dos heróis violentos e que sabem o que quer. Como o pistoleiro cínico da trilogia dos dólares (Por um Punhado de Dólares, Por Alguns Dólares a Mais, Três Homens em Conflito), que se preocupa apenas em conseguir sua recompensa (a caça), sem preocupações morais e éticas.

Mas depois a humanidade começou a plantar e a regularidade dos ciclos de plantações e o excesso de farutra, que criou uma classe que não precisava trabalhar e servia só pra supervisionar, levou aos regulamentos. É a era dos primeiros códigos legais, do "olho por olho". É o que levará ao monoteísta Deus vingativo e violento do Antigo Testamento. E Clint Eastwood igualmente seguirá essa trilha, passando do amoral pistoleiro dos western spaghetti para o policial - ou seja, parte de uma organização - que irá despejar sua ira sobre aqueles que transgredirem a lei e subverterem a ordem. É a era de "Meu Nome é Coogan" e principalmente de Dirty Harry, o "Perseguidor Implacável", lançando como Zeus trovões de sua Magnum 44. Como Javé, ele irá queimar Sodoma e Gomorra no fogo de seus pecados, em "O Estranho sem Nome".

Mas o Jeová do Antigo Testamento só criava um ciclo de violência interminável (cf. "Munique", de Spielberg, he, he, he). Era preciso algo mais. "Josey Wales, o Fora-da-Lei" foi o primeiro a descobrir que abandonar as armas e abraçar o próximo talvez fosse melhor para tocar a vida. "O Cavaleiro Solitário" já abraçara o monastério e trocou suas armas por uma gola eclesiástica. Mas no Oeste Selvagem a lei era mercenária e se voltava contra os justos, daí que ele no final voltava a encarnar o pistoleiro sem perdão, disparando seus enormes (e fálicos) símbolos de autoridade, os Colt Dragoon, de carga dianteira.

Foi preciso uma tentativa de voltar a essa vida sem sentido, de matar tudo que anda ou rasteja nessa terra, para perceber o vazio existencial. "Os imperdoáveis" também tem um tiroteio final, mas com um gosto amargo. Seu melhor amigo continua morto. Os mortos permanecem mortos. Qual o sentido disso tudo, então?

Amar o próximo.

É assim que o velho ranheta, ranzinza e racista de "Gran Torino" se tornará o herói e messias dos vizinhos asiáticos. Ideal amoroso das moças, modelo para os rapazes e salvador para a família, sua grande ação final não é um tiroteio, mas um sacrifício. Caído no jardim, em pose de crucifixão, Clint Eastwood, já um mito das telas, representou em suas fitas justamente a evolução da mitologia, do herói amoral em busca da presa até o iluminado que percebe que somos todos parte de uma grande comunidade e nunca haverá fim enquanto uma alma caminhar por este vale de cólera e lágrimas, buscando aprender, conhecer, amar e viver.