dezembro 25, 2006

A Blitzkrieg Alemã - Parte II

A primeira parte deste artigo está aqui, em uma nova janela.

Quando paramos, na primeira guerra mundial, o combate havia se tornado um impasse. Com trincheiras escavadas em profundidade, rolos e rolos de arame farpado, metralhadoras e canhões de tiro rápido dominando a "terra de ninguém" - o espaço entre as duas linhas de combatentes -, a ordem de atacar havia se tornado uma sentença de morte. O sujeito levantava correndo, porque descobriram logo nos primeiros meses de hostilidades que caminhar ombro-a-ombro e lentamente era bom para armar uma parada em 7 de setembro, mas não para avançar sobre o inimigo, e tentava chegar vivo do outro lado, para aí sair na mão com os defensores.

E quando eu digo sair na mão era sair na mão mesmo, armado de baioneta e valendo chute e beliscão. O fuzil pesava cinco quilos carregado e era de ferrolho - aquele que a gente vê nos filmes, que o sujeito dá um tiro e tem que puxar uma alavanca para trás e para o lado para rearmar - medindo ainda quase um metro. Manipular com destreza esse desajeitado troço dentro de uma trincheira estreita, com inamistosos soldados tentando fazer daquele o dia em que você se chamaria saudade, era quase impossível. Os infantes logo começaram a preferir a pá à baioneta, por ter um cabo que aumentava o impacto cortante do "fio" e o equilíbrio, quando usado como porrete. E, depois disso tudo, se finalmente conquistavam a posição, logo descobriam que ela era quase indefensável - as defesas eram feitas para enfrentar um inimigo vindo pela frente, não um contra-ataque por trás, onde não havia parapeito e os obstáculos eram mais baixos, já pensados exatamente para facilitar uma retomada vinda da retaguarda.

O conceito que os alemães desenvolveram então foi o da "infiltração". Os melhores soldados de todo o exército eram juntados em unidades de elite, encarregadas do trabalho duro, formando as "tropas-trovão", os famigerados "sturmtruppen" (em inglês, stormtrooper, sim, exatamente, aquelas mesmas de Star Wars). Eles, na falta de uma metralhadora portátil, iam para o ataque carregados de granadas de mão para o combate aproximado, sem terem instruções táticas exatas. Iam na base do improviso e por isso só a nata dos infantes se prestava a este papel.

Esses soldados de elite partiam para a frente, tomavam a primeira trincheira e seguiam adiante. Dispensavam longas preparações de artilharia. Preferiam-nas curtas e intensas, para atordoar os defensores, não lhes dar tempo de preparar a defesa e não esburacar o terreno que teriam que atravessar. Eles tinham preferência pela infiltração, em vez da tomada de toda a linha. Uma vez aberta uma brecha, mais e mais atacantes passavam por ali e partiam para a retaguarda, causando confusão onde se orquestrava o contra-ataque e mantendo os inimigos fora de equilíbrio. Os aliados, pelo contrário, quando atacavam, faziam-no ao longo de toda a fronteira. Se um ponto forte segurasse os atacantes, eles desviavam toda a pressão do ataque para lá. A idéia era empurrar o exército adversário como se fora uma motoniveladora. Os alemães atacavam como cupins, cavando cada vez mais buracos onde surgisse a oportunidade, até que toda a frente desmoronasse. Não preciso dizer qual tática era a mais eficaz.

A infiltração foi a chave do grande sucesso inicial da campanha da primavera em 1918, a Ofensiva da Paz (porque se julgava que levaria os aliados a pedirem a paz). Ao contrário da segunda guerra mundial, ainda seis meses antes do fim do conflito os alemães estavam de posse da bola e levantando bola alta toda hora na área dos inimigos. Os diplomatas teutões chegaram mesmo a rascunhar os termos em que aceitariam a rendição dos anglo-franco-estadunidenses (e amigos), carregando em cláusulas muito mais abusivas do que as depois impostas a eles em Versalhes, aquelas mesmas cuja brutalidade eles usariam como desculpa para tentar conquistar o mundo de novo em 1939. Mas eles estavam pondo o carro adiante dos stormtroopers, que não conseguiram manter o ímpeto e, depois de avançar uma quantidade inédita de quilômetros na Frente Ocidental, tiveram que começar a recuar.

As razões eram muitas. A nova tática cobrava alto número de baixas entre os infiltradores e, como eles eram soldados de elite, não eram fáceis de se substituir. À medida em que eles avançavam rumo à retaguarda, perdiam contacto com sua artilharia (rádios eram aparelhos canhestros e pesados, incompatíveis com o movimento, exceto em transatlânticos que batiam em icebergs e assemelhados) e ficavam dependendo apenas de seus fuzis e do que sobrara das granadas de mão para continuar o avanço, fundamental para manter o inimigo desequilibrado e sem condições de montar um contra-ataque. Este, uma vez iniciado, quase sempre era bem-sucedido: os ninhos de metralhadoras estavam voltados para o outro lado; as trincheiras eram mais baixas por trás e melhores alvos para os canhões, que mais se concentravam quanto mais longe da frente; a falta de comunicação impedia o reforço pelas reservas onde elas eram mais necessárias. Em suma, a idéia era boa, mas faltava alguma coisa. Uma coisa que fosse bem armada, de preferência com sua própria artilharia, que conseguisse manter um avanço contínuo por um longo tempo sem se cansar e em grande velocidade e profundidade e que carregasse sua própria parede grande de trincheira para não ficar exposta ao fogo inimigo. Essa coisa já existia, mas do lado dos aliados. Chamava-se "tanque". E a guerra contemporânea - pelo menos quando travada convencionalmente - é completamente concebida em torno dele. Veremos o porquê no terceiro capítulo.
- Sir Paul McCartney, por que o senhor se casou com uma puta perneta?
- Porque somando com as minhas três pernas a gente ficava na média. Aaaaah, eu sou foda!
As horas das luas cheias e as marés no sangue, a melhor época para se matar alguém, a melhor época para se engravidar alguém, o tempo do suor secando na roupa, as ruas cobertas de chuva e pó, os pés se afogando nos rios lamacentos de postes e motores, os cupins no chão longe das asas, a época dos melhores vinhos, da malha de algodão caindo no tapete, o mar tão morno que nem refresca e o vento trazendo a areia contra os olhos, a hora dos lábios untados de saliva e o cheiro, o cheiro de grama molhada, o começo dos pingos grossos, desabando sobre os braços e os cabelos, quanto pano descobrimos que vestimos, a terra esbraveja com as nuvens e o céu olha por nós, caminhantes homeotermos nas noites cheias de folhas, são os tempos férteis chegando, os tempos férteis estão de volta, soltem as crianças e ponham os vasos na janela, são os tempos férteis, os tempos férteis chegando, os tempos férteis estão voltando.

dezembro 22, 2006

Do roteiro de "Ódio Cego"

Aline:

Porra, você passa anos e anos sem falar comigo pra vir falar isso!!!!! Quem você pensa que é? Você não foi nada pra mim! Nem o primeiro e nem o último! Será que isso já te passou algum dia pela tua cabeça, que importante não é o primeiro, é o último? Aquele que vai segurar minha mão enquanto eu estiver morrendo??? Aquele que vai sentir minha mão fria e esfriando mais e eu nem vou sentir a dele, só vou saber que tô segurando porque vou olhar pra lé. Importante vai ser aquele pra quem eu vou olhar pela última vez, antes de nunca mais ter luz pros meus olhos, o som morrendo, a luz apagando e um último, um último rosto tentando me confortar enquanto meus olhos vão escurecendo e aquela imagem, aquela cara se apagando lentamente à medida em que o meu cérebro vai morrendo sem oxigênio, à medida em que a escuridão vai engolfando tudo e no centro, no centro uma última luzinha, uma última piscada, o meu último pensamento, um rosto, um rosto se apagando, eu nem lembro mais do meu nome, nem lembro mais o que é aquele rosto, mas vai ser a última coisa que vou pensar, antes de não me importar com mais nada, antes de finalmente nunca, nunca mais ter medo da morte! Isso é importante! O último, não o primeiro!!!!

dezembro 17, 2006

A Eternidade em um Beijo

Este é o projeto de um romance, baseado em alguns contos e roteiros. O começo seria assim:

Foi uma época em que o tempo perdeu a continuidade. Os empregados e seus trabalhos repetitivos vendo o relógio que não andava, as pessoas sempre andando na calçada sem chegarem a lugar nenhum (mesmo porque quando chegavam os lugares já tinham mudado e não eram mais aqueles aonde eles queriam ir) e fazendo planos inúteis para o futuro porque subitamente ele era o presente. As pessoas morriam antes de nascer e a comida saltava do prato no meio da refeição. Os jovens sabiam mais do que os velhos e estes não podiam nem mais viver em suas lembranças, pois como saber se elas realmente existiam? Os artistas tinham o fim mas não o começo e outros o início, mas não o final e todas as histórias eram um longo meio. Não havia mais um tempo de nascer nem outro de morrer, um de semear ou outro de colher, as coisas ruíam, o centro não conseguia segurar. A Terra podia parar em seu giro. Então decidiram que tudo devia estar acontecendo sempre. Alguém decidiu e fez as Leis que, no estado das coisas, começaram a ser cumpridas antes de serem decretadas. Para evitar que as pessoas ficassem presas sempre no mesmo momento e para que a vida e o trabalho pudessem progredir e ter algum significado, ninguém podia fazer sempre a mesma coisa. O patrão hoje era o faxineiro amanhã, o lavador de carros virava o motorista, depois o dono do carro, depois metalúrgico. O economista virava arqueólgo e o historiador virava paleontólogo. Os mandatos dos políticos eram de apenas um dia e isso aumentou muito o número de escândalos, mas ninguém ligava muito porque os acontecimentos eram muito vertiginosos. Muitos comemoraram porque era o fim da rotina, mas aos poucos foram percebendo que a variedade também era rotineira e que não podiam parar nem quando encontravam finalmente aquilo que sempre haviam sonhado. Era terminantemente proibido se repetir e só pensar nisso já era perigoso porque a polícia podia chegar antes do crime ser cometido e ninguém nunca sabia quanto da vida ia perder na prisão, ou mesmo se a prisão ainda existiria enquanto cumpriam pena, porque os lugares, também eles viviam sob o tempo e nunca se sabia se sua casa ainda seria a sua casa quando lá se chegasse, então todo mundo dormia no lugar que encontrava e acabou todo mundo se acostumando a viver com todo mundo, era uma aldeia global, o importante e o principal era se manter em movimento ou o mundo parava, e a raça humana não podia estagnar pois podia morrer em vida. Ninguém podia se repetir, nada podia se repetir, tudo isso era violentamente reprimido e vigiado. E como as pessoas sempre repetem os mesmos erros quando se trata de amor, então ninguém podia - de jeito nenhum, porque uma vez só já é arriscado - se apaixonar mais do que uma vez na vida.

Depois, tirado de um roteiro sobre o tema, corta para o protagonista - que foi preso por tentar voltar para sua amada - está sendo julgado por uma comissão de liberdade condicional:

conselheiro 1: E o amor?

conselheiro 2: Você ainda guarda sentimentos por Ana?

o homem pensa um pouco, está nervoso.

Renato: Guardar?

conselheiro 2: (ALGO ENFASTIADO) Sim, guarda, ainda guarda sentimentos por ela?

Renato: Sentimentos por Ana? Guardar? Não. Não guardo. Por que guardaria? Já não nos vemos há tanto tempo... (PÁRA UM POUCO PARA PENSAR) Eu acho. Eu não sei. Quanto tempo será que já faz? Difícil dizer. Parece que foi ontem. Talvez tenha sido ontem. Não me lembro quando foi. Mas lembro que pareceu muito. Uma eternidade. Um tempo enorme. Muito maior do que todo aquele antes de eu a ter. Muito maior do que o que que se passou desde então. Por mais que os dias se arrastem. Por mais que eles pareçam monótonos. Por mais que pareçam não trazer razão ou motivos na hora de acordar. Por mais que os ponteiros do relógio repitam-se mais e mais na mesma posição, em cada hora de cada dia desde que nos separamos, ainda assim, ainda assim o tempo que passamos juntos foi maior e mais amplo, bem maior e mais amplo do que possa vir a ser qualquer dos mais longos dias que eu venho enfrentando sem ela. Guardar sentimentos por ela? Por que os faria? Tantos anos vivi sem sentir algo assim, tantos anos eu tentei sentir algo assim, me agarrando a mulheres por causa de seus rostos, seus seios, suas pernas, suas costas, sua maneira abusada de pedir uma cerveja ou sua graça em recusar uma, seu sorriso pacificador ou sua gargalhada agressiva, seu olhar profundo e sereno ou sensual e direto, tantas por tantas razões menos a certa, menos aquela que eu queria ter, sentir em mim, sentir nela, e tanto eu fiz, tanto eu me fiz fazer, tanto eu me iludi, chamando afeição de amor, obssessão de paixão e tesão de desejo, um homem se fazendo de menino para poder se sentir um homem de verdade e então veio Ana, finalmente descobri Ana, há tanto tempo, como nós podemos saber agora, se é que eu posso chamar o agora de agora, depois da Ana tudo foi só um depois, um longo depois, não, eu não guardo, não guardaria, jamais guardaria, como poderia eu fazer isso, com aquela sensação, o primeiro beijo com seu gosto de alucinação, miragem, ilusão, não pode estar acontecendo comigo, a primeira vez em que a vi nua, quando Deus criou você deitada nua na cama, ele sabia o que estava fazendo e criou o fogo, a água e as montanhas ao mesmo tempo, a primeira vez em que a senti por dentro, macia, morna e água, a vida toda vem da água, a vida toda vem de você, a vida toda vem de dentro de você, como guardar, jamais guardar, não há o que guardar, não se tem o que guardar, Ana foi o agora, Ana foi o então, o resto, o resto é só depois, o resto é só o que veio depois, o resto é silêncio (PAUSA). Não (PAUSA, MUDA O TOM). Não guardo nenhum sentimento por Ana.

detalhe de um lápis vermelho riscando alguma coisa. A câmera abre e revela finalmente que estamos numa prisão, ou melhor, numa comissão de exame de condicional que nem aquelas que vemos em filmes americanos, com os conselheiros de guarda-pó e óculos fazendo enormes riscos visivelmente desaprovadores em seus formulários e cochichando entre eles. Um deles se levanta.

conselheiro 1: Sr. Renato, na opinião do presidente desta Comissão de Avaliação, o senhor nada aprendeu no seu tempo de encarceramento sobre o que o trouxe a esta instituição e sobre os erros de seus atos. Minha decisão é de que o senhor deveria permanecer interno e sua condicional ser negada. Entretanto, como o senhor foi o último a ser ouvido hoje e sua exposição foi longa demais, meu relatório só será encaminhado amanhã, quando estarei já trabalhando em outra coisa e lugar e meu voto nada mais valerá. Portanto, não me darei ao trabalho de redigir um parecer contrário sobre seu caso. Boa sorte.

o presidente da comissão sai, tirando o guarda-pó e o óculos, exibindo uma roupa de, sei lá, bombeiro, couro sadomasoquista ou piloto de avião. Levanta-se outro conselheiro.

conselheiro 2: Sr. Renato, não houve evolução em seu quadro. O senhor está apegado a esta mulher. Demonstra falta de espírito. Falta de fibra. Falta de vontade de conhecer o amanhã que está sempre vindo. Veja como eu não tenho medo de encarar o futuro.

o conselheiro 2 arranca o guarda-pó, os óculos e pula através da janela. levanta-se O terceiro e último conselheiro.

conselheiro 3: Sr. Renato, na verdade eu queria mesmo era ser músico. Eu tinha uma banda emo. Há muito tempo. Eu acho. Quando começou. Eu acho. Eu concordo com o senhor. Eu acho. Inclusive eles dois não sabiam, mas parece que vai haver uma mudança de orientação, para valorizarmos mais os sentimentos. Eu acho. Acho que o senhor está liberado.

O protagonista procura sua amada, mas sem saber, enquanto ela está na mesma rua que ele, com outro homem, ele acaba ficando com outra menina:

fabíola: Você não é um garçom, é?

renato: Não. Eu estou esperando que uma mulher que eu conheci lá reapareça.

fabíola: Ninguém nunca reaparece. Tudo vai embora. Eu fiz um piercing no mamilo. Quer ver?

renato: Não, obrigado.

fabíola: Não fode. Tem gente que faria tudo pra dar uma trepadinha comigo e você não quer nem ver meu peitinho?

renato sorri.

renato: Deve ter mesmo um monte de gente interessada.

fabíola: Você não quer ser um deles?

renato: Eu já disse...

fabíola: Eu não lembro. Faz muito tempo.

fabíola beija renato de leve. Renato hesita.

fabíola: He. Não me diga que você também é tímido...

renato: Não. Eu só... eu já...

fabíola: Não se preocupa com a tua paixão. Amanhã a gente já se esqueceu. É tão difícil lembrar. Por isso que eu não consigo me formar em nada. Eu já fiz arquitetura, letras, comunicação, agora tô fazendo psicologia. Eu não consigo estudar, esqueço tudo que aprendi...

renato: Você tenta..?

fabíola: Tento. Faço piercings e tatuagens... pra lembrar.

ela começa a mostrar as tatuagens.

fabíola: Esta borboleta... é preu lembrar do meu primeiro namorado. Eu me sentia leve, flutuando... aí tem esta estrela... foi quando eu passei no vestibular pra arquitetura e comecei um estágio no primeiro período ainda. Eu achava que tinha estrela. Tem esta tribal. No estágio eu me apaixonei pelo Guilherme... a gente saía pra acampar e ficávamos andando nus pelas praias, pelo mato, pelas cachoeiras... que nem índio. E este arame farpado... uma penitência... o que eu tive que estudar quando quis mudar pra comunicação...

renato: E os piercings?

fabíola: É pra lembrar como isso tudo doeu... quando meu primeiro namorado terminou, fui mandada embora do estágio, o Guilherme terminou comigo, quando fui estuprada...

renato: Você foi estuprada?

fabíola: Fui. Pelo meu primeiro namorado. Depois que a gente terminou. Por isso que eu botei um piercing no mamilo. Tem outro na boceta também. Pra doer. Cada vez que eu transar. Vai doer, mas eu vou transar. Eu não vou parar, Renato. Não vou parar de amar, de trepar. E não vai ser porque eu esqueci.

renato olha para a menina com respeito, enquanto ela exibe o piercing com um pesinho pendurado no mamilo.

renato: Você também... "fala legal".

fabíola: É... mas eu esqueço tudo. Vou esquecer tudo depois. Não vai servir pra nada. Mas foi por isso que gostei de você.

os dois começam a se beijar. Eles se amam e no dia seguinte, pela manhã, ele a leva em casa:

fabíola: É aqui que eu moro.

renato: Bem, então você está segura...

fabíola: Com você, sempre.

renato fica constrangido.

renato: Bem, então se é isso...

fabíola: Adorei a noite. Adorei a trepada. Adorei você. Me dá um beijo de despedida.

renato: Eu...

fabíola: Não se preocupa. Ninguém nunca reaparece.

renato: Você não vai fazer nenhuma tatuagem?

fabíola: Não. Talvez um piercing.

renato: Por quê? Te fiz sofrer?

fabíola: A mulher que você ama me fez. Vem, dá o beijo.

os dois se beijam. Ela o solta e se encaminha para a portaria. Vira-se para trás antes de entrar no prédio e desaparece no ar. Renato olha, sem estranhar, sabe como o tempo é estranho no mundo. Ouve a risada dela por trás dele. Vira-se e vê uma fabíola aparentemente mais nova, porém com mais piercings.

fabíola: He. Você tem uma cara sólida. Robusta.

renato: Fabíola?

fabíola: E sabe meu nome. He. Se você fosse mais novo, podia até rolar um clima. Mas eu não curto homem tão velho. (PAUSA) Mas você tem um ar interessante. He. Tenho que ir.

renato fica observando a moça sair correndo para a faculdade. ela novamente desaparece em pleno ar.





, que vive muitas aventuras difíceis de serem resumidas aqui, enquanto ficamos sabendo de sua história de paixão. Durante tudo isso, o amigo mais velho e sábio do protagonista morre e ele procura um lugar onde enterrá-lo.

burocrata: Bem, eles montaram uma arquibancada num vale. Tem uma abertura entre as montanhas que parece enquadrar o pôr-do-Sol. E tem aquela mata, aqueles lagos e as cachoeiras. Dizem que a vista é lindíssima.

renato: Não era uma arquibancada?

burocrata: Pois é. A vista é tão bonita que puseram uma arquibancada lá. Pras pessoas. Elas vão lá e sentam e ficam olhando a vista e o pôr-do-Sol. Dizem que é maravilhoso.

renato: E o que tem isso a ver com cemitério? Eu quero um lugar digno para o meu amigo.

burocrata: Pois lá é um lugar muito bonito. E todo mundo é amigo. Dizem que rolam vinho e maconha uns entre os outros. E tocam violão. E ficam lá, observando o pôr-do-Sol. Só não tem comida.

renato: Não?

burocrata: Não. Eles ficam lá até morrer. Morrem vendo o pôr-do-Sol, de mãos dadas com os amantes, sentados ali, aquela luz vermelha maravilhosa caindo sobre eles. E o cheiro da mata molhada, o barulho da água da cachoeira. Dizem que é muito lindo lá. Eu não posso garantir, porque você só pode ir lá pra ficar pra sempre. Os degraus mais baixos dizem que já estão cheios de esqueletos. Acho que deixariam você botar o seu amigo lá.

E, depois que os amantes se reencontram. Ana tenta não ceder a Renato, mas acaba fazendo-o:

ana: Ana o caralho, seu filho da puta! Eu te odeio! Você e aqueles piercings! Mas principalmente você! Você e aquele seu amor envolvente, você e aquele teu jeito cativante, tua firmeza, mesmo quando em dúvida, mesmo quando não sabia o que fazer, mesmo quando fazendo o que não queria fazer e fazendo, que nem mocinho de cinema quando sem querer fica com o microfilme e os espiões correm atrás dele... eu te odeio, seu filho da puta... eu te odeio porque tenho uma vida tão equilibrada, ainda ontem fui promovida, porque eu sou equilibrada, e eu sou equilibrada por quê? Por tua causa, porque eu sabia, eu sabia que o que quer que eu fizesse eu ia te encontrar no bar do Janus, ia rir, ia te ter, uma coisa eu já tinha acertada na vida, o resto ia vir sozinho, mesmo depois que a gente terminou, ainda assim, eu sabia, eu sabia ainda que você me amava, por isso que eu pude amar tanto e tão bem, porque eu sabia que você me amava e que eu poderia ter você no fim... eu podia ser tranquila, calma, fria, racional sempre que eu amava... tão tranquila... eu estava só esperando você... aguardando você...

eles são obrigados a fugir porque os policiais descobrem que eles já se amaram antes. Fabíola, que estava dando um amasso na rua ali perto, ajuda-os:

ela pega um relógio de bolso no bolso da calça cargo de clubber e chega na frente dos policiais. Começa a sacudir o relógio em movimento pendular na frente dos policiais para hipnotizá-los.

fabíola: Olhem para este pêndulo! Vocês estão sob meu poder!

policial 1: Sai da frente, menina, ou você vai presa também!

fabíola: Olhem para o relógio!

policial 2: Saia da frente!

Os policiais se aproximam. Fabíola recua. O relógio não está funcionando. Ela tem uma idéia. Ela abaixa o decote e mostra as aréolas pefuradas com pequenos pesinhos. Ela balança o busto e os pêndulos nos mamilos começam a hipnotizar os policiais.

fabíola: Olhem para este pêndulo... (ELA OLHA PARA BAIXO) Digo, para estes pêndulos. Vocês estão sob meu poder...

os policiais param, com ar apalermado, olhando os belos peitos de fabíola.
policial 1: Nós estamos sob seu poder...

policial 2: Nós estamos sob seu poder...

fabíola vira-se para renato e ana.

fabíola: Vão! Eu não sou muito boa nisso! Eles não vão ficar assim muito tempo!

renato: Tudo bem, obrigado, valeu... (A ANA) Vamos, vamos embora daqui...

ana: Já? Mas você não vê que aqui é o nosso canto? Nosso lugar especial?

renato: Deixa de brincadeira, Ana...

ana olha com atenção para fabíola.

ana: Peraí... eu sei quem ela é.

renato: Eu não. Vamos, vamos embora!

os dois vão saindo.

ana: Eu sei sim... você está me escondendo algo.

renato responde com sinceridade, não lembrando mesmo de fabíola.

renato: Não, Ana, eu só quero esconder você dos policiais...

os dois saem. Fabíola olha para eles. manda um beijinho.

fabíola: Eu lembro... quem diria, eu lembro...
.

hannah/renato/policiais/mortos vivos

rua da distorção/ext/noite

a câmera passeia lentamente, lateralmente, por uma rua, ao rés do chão, mostrando caídos pela calçada e pela sarjeta pessoas em variados estados de decomposição, quase incapazes de se mover, abandonadas e entregues . ela vai andando e, ao chegar ao final, gira e mostra hannah e renato na esquina da rua. Hannah olha para trás e vê os policiais vindo.

hannah: Eles estão vindo.

renato: Sempre estão. Esse mundo não pára.

hannah: E o que vamos fazer? Eu não quero ir presa, Renato. Ainda mais agora que eu quero ficar com você...

renato: Vamos atravessar.

hannah: Mas aqui a distorção temporal é pior, Renato. E ainda tem todos esses mortos vivos aí...

renato: Cadaveras.

hannah: Como?

renato: Cadaveras. Cadáveres de verdade. Um trocadilho. Tem gente que os chama assim. Pessoas moribundas que vieram para cá na esperança de que a distorção temporal os congelaria em seus últimos instantes de vida e eles viveriam para sempre. Que maneira de conseguir...

hannah: Eu não quero entrar aí, Renato. Nós podemos sair como dois velhos moribundos. Ou nem chegar, voltar a ser protoplasma. Eu não vou entrar aí.

renato puxa hannah para perto, com força e dominaçào e lhe fala quase em tom de ordem.

renato: Vai sim, Hannah. Vai entrar porque haja o que houver, o tempo e sua passagem, alterados ou não, é um privilégio nosso. E a privação de liberdade não. Vamos entrar.

hannah: Eu não quero!

corte para plano geral deles, em contra-plongée. Renato empurra hannah um passo dentro da rua. Ela pula de volta para a esquina. Renato a olha, pega-a, levanta-a como se fosse uma noiva prestes a entrar no domicílio conjugal após o casamento e entra com ela na rua. Corte para os cadaveras olhando para eles com seus olhos apodrecidos. corte para renato pondo hannah no chão, em pv lateral e a câmera faz um traveling acompanhando suas caminhadas tensas.

hannah: Renato... eu estou com medo.

renato: É bom. Quer dizer que você preza sua vida.

hannah: Esse pessoal todo na calçada também...

renato: Não. Eles prezaram muito mais a própria morte em toda sua vida. Por isso vieram parar aqui. E os policiais?

hannah vira a cabeça e vê os policiais parados na esquina da rua, amontoados, como se houvesse uma parede invisível que lhes impedisse a progressão.

hannah: (COM VOZ DE CRIANÇA) Pararam. Num vêm não.

renato: (SURPRESO) Tudo bem com você, Hannah?

hannah: (INFANTIL) Tudo. Me dá a mão.

renato: O que você quiser, Hannah...

hannah: (COM VOZ ROUFENHA, DE VELHA) Não precisa de mais nada, meu Renato... só me dê sua mão. Me dê sua mão e aperte forte...

renato: Você está mudando, Hannah...

hannah: (NORMAL) Eu não. Você.

renato: (INFANTIL) Mentira. Vou chamar a mamãe.

hannah: Você sim, Renato. Uma hora é um velho e em outra, uma criança.

renato: (INFANTIL) Você que é, mentirosa!

hannah: Nós estamos mudando, Renato. Nós dois. Só que não conseguimos perceber. Só o outro.

renato: (NORMAL) Será?

Visão subjetiva de renato para os cadaveras.

renato: Como será então que parecemos a eles?

hannah: (ADOLESCENTE) Eles eu não sei, mas você é um gato... (PAUSA) Eu tô com tesão, Renato... esse pessoal sem poder fazer nada na rua e só a gente aqui...

renato: Nós temos que passar por isso, Hannah...

hannah: Ah, vem, pára só um pouquinho...

renato: Não na frente deles, Hannah, não na frente deles.

hannah: (ADOLESCENTE) Você não quer nada comigo?

renato: Eu quero tudo, Hannah. Tudo. Vem comigo.

hannah: Eu acho que quero um filho, Renato...

ao falar isso, hannah é puxada para fora de quadro por renato. vemos ao longe os policiais discutindo entre si. alguns deles apontam para outros lados, como sugerindo caminhos alternativos. Finalmente, eles chegam a um consenso e vão embora. hannah e renato continuam andando.

hannah: Renato... eu agora... acho que recuei... recuei demais.

renato: Demais?

hannah: É. Parece outra vida... outra encarnação...

cena xxxii

quarto de dormir do começo do século

aninha/avó/médico/pai/mãe/tio/tia/primos/familiares

uma menina de uns nove, dez anos - aninha, a câmera começa nela para deixar bem claro que é esta a personificação de hannah na cena - está sendo levada, numa casa de relativa abastança do começo do século, para o quarto onde sua avó agoniza. O médico está conversando com a mãe. Enquanto hannah fala, aninha é levada a dar a mão à avó, enquanto familiares choram, primos menores parecem incapazes de compreender a solenidade do momento e brincam. a Avó olha para a jovem aninha e, com tremenda dificuldade, passa a mão pela sua cabeça e parece tossir violentamente. O médico toma o pulso, a mãe de aninha chora, consolada pelo pai e o médico, finalmente, cruza os braços dela e a pòe numa pose de repouso.

hannah: (OFF) O começo do século... Acho que é minha avó. Não existe UTI e ela está agonizando no quarto dela lá em casa. Está doente há meses e todos na casa estão acompanhando o lento caminhar dela para a morte. O médico falou que hoje ela termina o passeio por esta vida. Todos nós estamos ao lado dela. Todos nós vamos lhe dar adeus. Todos nós vamos cumprimentar a ceifadora. Todos nós a conhecemos desde cedo e sabemos que a é parte da família. Tão parte da família quanto nossa avó que viu várias mortes como essa no quarto de cima de sua casa. São apenas duas amigas se reencontrando. Duas senhoras... que fazem parte da família. Nada demais. Nada de extraordinário nisso. E eu sei. Eu estou ali. Estou ali olhando. E vendo.

cena xxxiii

esquina final da rua da distorção/ext/noite

hannah/renato

close em hannah.

renato: Abra os olhos, Hannah, pode ver aqui também.

Ela abre os olhos e a câmera abre, mostrando que eles atravessaram a rua.

renato: Chegamos ao fim da rua da distorção.

cena xxxiv

ladeira da casa de renato/ext/noite

renato/hannah

renato e hannah são vistos subindo a ladeira pavimentada com paralelepípedos e entrando no prédio onde renato mora, um bem antigo.

cena xxxv

sala da casa de renato/int/noite

renato/hannah

renato e hannah entram no apartamento de renato, cheio de objetos de diversas décadas. Estátuas art nouveau, astrolábio, globo, lampião, rádio anos trinta e assim por diante. os dois entram, hannah olha bem para o espetáculo e é abraçada por trás por renato. Os dois se beijam.

hannah: O que vamos fazer agora?

renato: Adivinha...

os dois se beijam mais ainda e com muito ardor e desabam no sofá, fora de quadro. a câmera segue até a janela, onde as cortinas esvoaçam e corta para a chama de um isqueiro se acendendo com força, uma pequena brincadeira com a velha lareira que se avivava quando os personagens trepavam nos filmes antigos. O isqueiro é para acender o cigarro de renato. Os dois estão suados, desgrenhados e sem roupa no tapete da sala. Hannah sobe lentamente, esfregando sua pele na pele do namorado até chegar perto dele.

hannah: Me dá um trago.

renato: Outro?

hannah: Do cigarro.

renato passa o cigarro para ela. Ela dá um trago longo, acendendo bem a brasa. Ele pega de volta e traga também, como que sorvendo o que ficou dela no filtro.

hannah: Eu perguntei o que íamos fazer não nesse sentido.

renato: E existe outro?

hannah: (DE BRINCADEIRA) Outro? Não... você foi o único, Renato.

renato: (TAMBÉM DE BRINCADEIRA) Mentira que eu tive que conhecer um monte de namorados seus pra te achar.

hannah: Você realmente me desejou, né?

renato: Aquela noite foi muito boa pra esquecer assim tão fácil. Pra deixar o tempo apagar tão sem resistência...

hannah: Mas o que vamos fazer agora que estamos juntos? Você sabe que eles vão acabar nos pegando, não é?

renato: Eles quem? A morte e os impostos? Sei há muito tempo. Eles pegam todo mundo.

hannah: Esses não. A polícia.

renato: Que tem eles? Nós os deixamos pra trás.

hannah: Mas eles vão chegar. Mais cedo ou mais tarde. Eles têm todo o tempo do mundo. Podem investigar durante todo o futuro e virem nos prender agora...

renato se levanta e caminha até o armário onde há uma coleção de discos. tira um vinil de dentro de uma capa.

hannah: Discos de vinil? Que coisa mais antiga...

renato: Deixe cada coisa a seu tempo, Hannah. Agora vamos dançar...

hannah: Dançar?

renato: Da melhor maneira possível. Sem roupa.

ele a pega e a tira para dançar, ao som de cheek to cheek.

hannah: E os policiais?

renato: Deixa eles. Deixa tudo pra lá. Agora só ouve a música.

close na vitrola. O disco está arranhado e começa a repetir o mesmo trecho da música - HEAVEN, i'M IN HEAVEN.

hannah: O disco está arranhado.

renato: Eu sei.

eles dançam mais um pouco.

hannah: Eu te amo, Renato.

renato: Eu sei.

hannah: Quero te amar para sempre, Renato. Para sempre.

renato: Não usa essa palavra, Hannah. Nada é para sempre.

OS DOIS CONTINUAM DANÇANDO E SE BEIJAM, EM PLANO GERAL, NA MEIA-LUZ.

Os policiais finalmente chegam e começam a tentar arrombar a porta:

De tanto apanhar a porta acaba cedendo e se entrega, frouxa em seus caixilhos e trôpega em sua tranca, revelando finalmente os aposentos por ela velados. O primeiro policial quase cai para a frente quando ela se abre, sob o impulso de seu violento movimento, mas ao ver a cena diante de si consegue parar a tempo, antes mesmo de pôr o pé adentro, e estica o braço até o portal, para impedir que seus companheiros sigam em frente, deixando os vizinhos e curiosos na ponta dos pés tentando divisar o que está lá dentro, afinal, que tanto preocupa os guardinhas.

- Nós os perdemos.

Uma vitrola, um velho toca-discos, com suas linhas ainda modernas e arrojadas, luta em vão contra os microssulcos de um vinil arranhado, repetindo sem parar um único verso de uma clássica canção americana, "Heaven, I´m in heaven... szzzcrrat... Heaven, I´m in heaven... szzzcrrat... Heaven, I´m in heaven... szzzcrrat... Heaven, I´m in heaven... szzzcrrat...". Aos seus pés, roupas atiradas pelo chão, calça, camisa, cueca, calça, camisa, sutiã, calcinha, seguindo pelo tapete até pés presos num passo de dança, pés parados sobre o carpete, a mesa de centro deslocada para abrir espaço, pés subindo por dois pares de pernas, um liso, macio e curvilíneo, entrelaçado a outro musculoso e peludo, mantendo pressionados e imóveis seus centros de prazer e identidade sexual, seus ventres, seus abdomes, seus peitos, os alabastrinos seios da moça apoiando-se e descansando suas suculentas formas contra o amplo tórax do homem, para aproximar as bocas, imobilizadas e coladas num beijo, lábio a lábio, língua a língua, com um pequeno gosto de dentes e saliva e faces, maciez e aspereza, barba e suavidade, macho e fêmea.

E os guardas mantiveram as pessoas afastadas e ficaram olhando, os vizinhos e curiosos ainda esticando os seus pescoços enquanto mulheres mais baixas e crianças perguntavam "e aí", "tá vendo alguma coisa", e o casal, os dois, a moça e seu par, permaneciam ali, parados, imobilizados, nus e alheios a todo o movimento, imóveis e inamovíveis, hermeticamente selados num beijo, para sempre, por um único momento, por um instante, por toda uma eternidade.

dezembro 04, 2006

Mais Pretensão - De uma Peça minha (FATA SUBURBAS0:

FATA
Aceitas sempre assim tranquilamente o que os outros lhe dizem?

PEDREIRO
( BRINCANDO ) Vindo de ossos falantes, sempre.

FATA
( RI, TODA CONTENTE ) Hi! Já troças de mim! Estamos íntimos!

PEDREIRO
Eu, íntimo teu? Nem sei o que você é, como uma mulher foi virar um osso dentro de uma pedra...

FATA
Como? Alguns dizem que há tempos fui aprisionada dentro de uma rocha usada na construção deste prédio. Outros dizem que me decepcionei com o mundo e encasulei-me em busca de tempos mais propícios. Contam também que sou uma metáfora da magia encerrada dentro de nós... outros tantos que sou um teste como a espada na pedra - aquele que me libertar será o rei de sua vida e seu destino. Há os que dizem que cada pedaço de matéria é um ovo chocando algo como eu. E os que propagam que eu seria a encarnação dos sonhos dos moradores daqui, absorvidos pela pedra noite após noite, sono após sono.

PEDREIRO
E qual é a verdade?

FATA
Certamente uma das versões que mencionei, pois se tantos não conseguiram descobri-la, certamente não seria eu a conseguir imaginá-la...

PEDREIRO
Mas você consegue saber até o que vai acontecer com a minha filha...

FATA
Mas o já acontecido não me interessa.

PEDREIRO
Se é o que você diz...( COMEÇA A QUEBRAR PEDRA ) Se importa?

FATA
Não, ao contrário, adoro ver-te trabalhando, sentir-te esculpindo...

PEDREIRO
Eu não sou escultor...

FATA
Só as nossas obras sabem de nós...


CORTA PARA A CENA FINAL:

FATA
Nada me aperta mais! Nada me tolhe mais! Meu peito inala e exala novamente! Meu coração bate! Eu estou livre outra vez! Ah, todos vós, eu estou livre para singrar e descobrir! Mares, nunca dantes navegados! Onde homem nenhum jamais esteve! O infinitamente grande, todo dentro do infinitamente pequeno! Oh, Criação, Filha do Cataclisma, preparai-vos, pois tuas sementes cresceram e agora se preparam para confrontar-vos ! ( AO PEDREIRO ) E a ti, me despeço mais falando do amanhã: O mundo terminará em fogo, o mundo terminará em água, o mundo terminará com um estrondo, o mundo terminará com um suspiro e o sangue derramado no interior de cada um de vós se encontrará ao fim de tudo e suspirará por uma velha rocha escura suspensa no vazio e sorrireis uma última vez antes de vos voltardes para o futuro, para as luzes no vazio, cada vez maiores...

PEDREIRO
( EMOCIONADO ) E você, que sabe tudo, a gente ainda se revê?

FATA
Ver é o de menos...mas quanto ao futuro, tens que aprender a descobri-lo sozinho. Obrigada. ( APROXIMA-SE DO PEDREIRO CONSTRANGIDO E BEIJA SUA TESTA ) Teu suor é gostoso. (VIRA-SE ) Guarda minhas palavras e minhas imagens. No fim, o que existe é o que lembramos. Adeus! Adeus! Que vos guiem os anjos! (EFEITOS DE ILUMINAÇÃO E SOM. A MÚSICA PÁRA. TODOS OBSERVAM A PARTIDA DA FATA. ELA VAI. A ILUMINAÇÃO VOLTA AO NORMAL. AS PESSOAS SE DISPERSAM. MARCOS E VERINHA JÁ SE BEIJAM SENTADOS. O PEDREIRO CONTINUA OBSERVANDO A PARTIDA DA FATA).

Da Peça FATA SUBURBAS

Um Pouco de Poesia e Pretensão Depois de Tanta Mulher Pelada (Uh! Tererê!)

Não é que os cegos não vejam
Eles vêem o futuro

O tempo todo.



PERFECCIONISTA

Ando pela casa
Ajeitando os quadros
para que fiquem paralelos ao chão.

Todos eles, o tempo todo,
Quero-os perfeitamente
paralelos ao solo, alinhados,
ajeitados, retos, bem resolvidos,
como minha vida deveria ser

Então subitamente me ocorre
A Terra é redonda.

dezembro 03, 2006

Da série "Ela depila lá embaixo" - Karina Bacchi


Com direito a piercing (Simone, ex-Autoramas, amiga minha, conta que uma amiga dela foi fazer um desses e perdeu a sensibilidade, por isso que ela não faria de jeito nenhum).
Mas eu casava com uma que tivesse um desses.
No mamilo já era legal.

Da série "Ela depila lá embaixo" - Britney Spears






E ainda ficamos sabendo que ela não é adepta do parto natural...















novembro 26, 2006

666 -Os Microcontos

A revista americana WIRED convidou um monte de escritores de ficção científica, fantasia, quadrinhos e afins prum desafio de concisão: escrever contos de seis palavras. Você pode lê-los em www.melhoresdomundo.net/arquivos/004434.php ou http://wired.com/wired/archive/14.11/sixwords_pr.html

A maior parte deles são ditos espirituosos, piadinhas e afins, mas alguns realmente conseguiram escrever verdadeiros CONTOS de seis palavras, como Frank Miller (pra quem não sabe, o autor de CAVALEIRO DAS TREVAS e 300 DE ESPARTA), que criou uma bela história "noir" de sexo, romance e violência ("com mãos ensanguentadas eu dou-lhe adeus"). Ben Bova (que não faço a mínima idéia de quem seja) montou um épico religioso ("Para salvar a humanidade, ele morreu novamente" - em inglês isso cabe em meia dúzia de vocábulos). David Brin fez um épico sobre viagens no tempo ("O Vingador do tempo estava errado! Não fui eu..."). Aliás, curiosamente, Alan Moore (V de Vingança, Watchmen) e Darren Arronofsky (Réquim para um sonho, Pi) tiveram a mesma idéia sobre paradoxos temporais ("do tempo. Inesperadamente, inventei uma máquina", a versão de Moore, e "loop temporal! Socorro, estou preso num", a micro-historieta do cineasta). O genial autor fantástico Michael Moorcock (criador da impressionante saga ELRIC DE MELNIBONÉ) conseguiu concatenar uma verdadeira odisséia de história alternativa ("Que grande cantor Hitler em 1940!")

Obviamente fiquei tentado com a idéia também e escrevi os meus próprios microcontos, tentando me ater mais à idéia de realmente contar uma história em seis palavras (Não que não houvesse bons não-contos na antologia da Wired, como "Prazo estourando! Servem cinco palavras?"). Também lancei o desafio para alguns amigos, mas apenas a poeta (a maioria das mulheres odeia ser chamada de poetisa) Patrícia Evans (patevans.blogspot.com) e o filósofo Antônio Rogério da Silva (www.discursus.cjb.net) toparam. Eis aí os resultados:

EU, LUIZ HENRIQUES NETO:

Suas mãos, já mortas, arrastaram-me junto.

Ela fechou a porta.
E ficou.

Confesso! Fui eu!
Não aguentava mais!

Seus muros, inviolados, defendiam apenas morte.

- M-me... ensssina-ram... a... and-d-dar... na l-linha.

Ele sobrevivera.
Toda a humanidade pagaria.

Pode divulgar minha confissão agora, padre.

Gás.
Ridículo.
Como morrer numa sauna.

Vi-a uma única vez.
Décadas atrás.

Adeus, minha adorada.
Adeus, meus inimigos.

O presente esmagou, impiedosamente, o futuro.

Aventava pessoas naquela mui estranha tempestade.

O copo!!!!
Era o copo errado!!!!

Mas seria o Benedito?
E era!

Enfim livres.
Porém nus.

Só.
Afogada num mar de cabeças.

O zumbi sorriu.
O lobisomem chegara.

Prometo sempre dizer-lhe adeus, meu amor.

As plantas todas estavam mortas.
Sortudas.

Não ouvia seu coração.
Assim morreu.

Peças - e sexos! - encaixando com precisão.

- Filho, prometa que nunca se apaixonará!

Acendi um derradeiro cigarro e apaguei.

Nasci, cresci, envelheci... mas jamais morrerei!!!!!!!!


OS MICROCONTOS DE PATRÍCIA EVANS (patevans.blogspot.com):


Desta vez preferiu matar a morrer.

Com olhos cada vez mais parecidos.

Um conto inteiro - início, meio, início.

Se alguém gritasse em mim... Ecoaria.
Por amor negado desespera, assassina, chora.

Jogou aquilo fora, foi ser feliz.
Eu te amo, tenho esse direito!

E entregou-lhe a rosa morta.

Como foi o princípio, o fim.

Filetes rubros em vez de olhos.

Desatento, permanece sempre a me deixar.

Costurou o último orifício - lacrou-a.

Aliás, nenhum trem virá de Londres.

Aqueles meus olhos serenos, nunca mais.

Que os mortos possam perdoar-me.
Pois só assim a espécie perpetuaria.

Voltaram ao normal, porque eu rezei.

Tarde para dizer que estava errado.

Poderiam finalmente sentirem-se aliviados.

E preservou-a com sua saliva.
Mas aquilo, como isto, também passaria.

Mas não deitou, dormiu em pé.

Feito caem as tardes sem romance.

Eternidade!!!!!!!! Eu sou a eternidade agora!

E eu me lembro que ri.

Restou-lhe oferecer ao diabo solidariedade.


OS MICROCONTOS DE PATRÍCIA EVANS E LUIZ HENRIQUES:

E, esquálida, a mão trancou a porteira.

Restava-lhe apenas oferecer às formigas solidariedade.

Lembro-me que ri. Pela última vez.


OS MICROCONTOS DE ANTÔNIO ROGÉRIO DA SILVA (www.discursus.cjb.net)

Caro Urubu,
Eis seis palavras sobre:

1) História espartana, "Voltar com escudo ou sobre este";

2) Os Waltons, "Contou até seis e virou escritor";

3) Teoria econômica, "Almoço grátis lhe valeu um Nobel";

4) Fracasso filosófico, "Nasce Hipácia, humana mortal: silogismo trágico";

5) Big Bang, "Entre clarão e escuridão, o universo";

6) RIP, "Na lápide lisa, uma vida apagada";

Um abraço,
Antônio Rogério da Silva

Alguma sugestão sua?

novembro 20, 2006

Os Mais Belos Poemas de Amor

Quando você for velha e grisalha e cheia de sono
E cabeceando junto ao fogo pegar este livro
Lê devagar; e sonha com o suave olhar que teus olhos um dia tiveram
E suas sombras profundas

Quantos homens não amaram teus momentos de adorável graça
E amaram tua beleza, com amor falso ou verdadeiro
Mas um homem amou a alma peregrina em ti
E amou cada tristeza do teu rosto que mudava

E então, curvando-se junto às barras incandescentes
Murmurarás, um tanto triste, como o amor fugiu
E tomou seu caminho montanha acima
E escondeu seu rosto entre uma multidão de estrelas

(Tradução livre minha, a partir do original abaixo, WHEN YOU´RE OLD, de meu favorito Yeats. Para dizer a verdade, foi por causa deste poema, lido por um personagem de um ALÉM DA IMAGINAÇÃO, que fui querer saber quem era o Yeats)

When you´re old and grey and full of sleep
And nodding by the fire take down this book
Read slowly; and dream of the soft look your eyes had once
And of their shadows deep

How many men loved your moments of glad grace
And loved your beauty with love false or true
But one man loved the pilgrim soul in you
And loved the sorrows of your changing face

And now, bending down beside the glowing bars
Murmur, a little sadly, how love fled
And took its pace the mountains overhead
And hid its face amid a crowd of stars

novembro 15, 2006

Blonde Bombshell



(Minha irmã posa para minhas lentes no Museu Aeroepacial de Campo dos Afonsos)

Abaixo os DVDs "ao vivo"

Sou o feliz possuidor de um home-theater. Embora já saiba que são uma merda, vez por outra ainda caio na asneira de comprar um DVD "ao vivo" de algum artista que eu goste, só para poder curtir a plenitude do som em cinco canais (mais um somente para os subgraves).

Tremenda perda de tempo. As gravadoras devem adorar, porque não custa nada. Zero, chongas. Nem negativo. Pega-se três câmeras digitais - ou, pior ainda, mini-DV, dada a qualidade pobre de vídeo da maioria dos discos - e filma-se uma performance do sujeito. Temos então de uma hora a hora e meia do sujeito no palco e tomadas dele, do guitarrista solando, do percussionista batendo e um plano geral do público. Só músicas consagradas. Nada de novo. Os arranjos normalmente mais pobres por não poderem contar com todos os recursos de um estúdio. E como a produção de show dos artistas brasileiros normalmente não conta com toda a pirotecnia de uma apresentação, digamos, do Prince (que tem um DVD de 9,90 que vale a pena), fica o artista lá, muitas vezes sentado, cantando suas musiquinhas. Se você desligar a televisão é melhor, porque não tem nada pra se ver!!!!

Preferia sinceramente assistir a coletâneas de clipes com som surround a essas produções de 500 dólares pelas quais eles ainda têm o desplante de cobrar quase 50 pratas (é claro que só compro se estiver a menos de 15 pilas). Se bem que a maioria dos clipes pouco mostra além dos sujeitos tocando suas musiquinhas.

Fica a minha dúvida: se a quantidade de brasileiros que tem home-theater é ínfima, nego tá gastando essa grana toda pra ver uma imagem que não vale nada e curtir um som de alto-falante de tevê? Melhor comprar o CD.

Lindsay Lohan depila lá em baixo...

Lindsay Lohan depila lá em baixo...

Jennifer Lopez também...

NÃO TE ENTREGUES GENTIL À DOCE NOITE

(de Dylan Thomas, livre tradução de Luiz Henriques Neto)

Não se entregue gentil à doce noite
A idade deveria queimar e brilhar ao fim do dia
Lute, enfureça-se contra o morrer da luz

Embora os sábios ao fim saibam que a escuridão é o certo
Porque suas palavras não convocaram o trovão
Eles não se entregam gentis à doce noite

Bons homens, vendo a última onda se aproximando, gritando
quão brilhantemente seus frágeis feitos balançaram na baía esverdeada
Lutam, enfurecem-se contra o morrer da luz

Homens ferozes que seguiram e cantaram a luz do sol
E aprenderam, tarde demais, que ela lhes escaparia sempre
Não se entregam gentilmente à doce noite

Homens sérios, perto da morte, que enxergam com cegante clareza
Que olhos cegos podem brilhar como estrelas cadentes e serem felizes
Lutam, enfurecem-se contra o morrer da luz

E tu, meu pai, no Monte das Lamentações,
Amaldiçoa-me, abençoa-me com furiosas lágrimas, imploro
Não te entregues gentil à doce noite
Luta, enfurece-te contra o morrer da luz

DO NOT GO GENTLE INTO THAT GOOD NIGHT

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

-- Dylan Thomas

novembro 13, 2006

Objeto de Amar

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!

Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.

(Adélia Prado)

novembro 07, 2006

Festa a fantasia



Branca de Neve e eu, o hippie velho.
E sim, eu estava fantasiado.

outubro 31, 2006

Jam Session

Meio de semana de férias, meio de verão em meio de caminho de viagem, meio de noite, noite de meio de fim de caso para David, apto e inepto, abrindo seu coração para as cervejas e cachaças e manjubinhas fritas no trailer esvaziado dominando do alto da grama a praia deserta.
A falta de Ana, a falta de gente da praia, mas o calor da noite de Lua cheia e ligeira tonteira de álcool e limão sobre peixe. Cálida melancolia em hora de abrigo, para David não era o melhor e nem o pior dos tempos.
Um homem, uma estranha figura que bebera apenas cachaça - ou teria sido água - o tempo todo desde o anoitecer, uma mesa um passo acima na grama e na mesa inclinada, cumprimentou o jovem a pensar na vida e na desamada e no que fazer nas noites desocupadas do restante das férias.
- Boa noite.
- Boa.
E silenciaram de novo.
- Comendo peixe?
- Adoro.
- Os peixes também.
- É mesmo? Aqui eles não costumam comer.
- Mas fazem na ponta da minha vara.
"Prefiro que o façam as mulheres"
- Você pesca?
- E caço. Adoro animais.
- Ainda bem que você não adora judeus.
- Mas onde mais você poderia ser tão animal a não ser caçando um bicho? A caçada é a coisa mais natural do mundo. E a pesca. Seus sentidos estão alertas. Seu corpo está alerta. Você sente a pulsação da terra e com isso sente todos os viventes que caminham sobre ela.
- Ou nadam.
- Ou nadam.
- Ou voam.
- Ou voam. E quando você pega um desses bichos, você está sendo ele, nem que por um minúsculo instante. Você pega o peixe e você é um tubarão nadando como um bólido. Um golfinho violento e irascível. Você captura o pombo e você é uma águia sobrevoando o chão lá em baixo. Um falcão impiedoso afundando-se em sangue e universo.
- Então você não deveria caçar falcões, tubarões e golfinhos?
- Não. Nós matamos para nos tornar os animais que queremos ser. Todos nós, todos temos um bicho que admiramos. O cachorro de estimação, o gato da casa. Todos queremos ser animais. Nós também somos viventes. Parte da terra.
Vivente. Ana. Vivendo por aí, vivendo mais do que ele, andando não com desconhecidos, mas com prestes a conhecê-la, ele cada vez menor no corpo e alma dela.
Mas o homem não o pensar, não o deixa lembrar, não o deixa afundar em pena de si mesmo (gostoso, ótimo de fazer em praia deserta e calma à noite) e pergunta, indaga, insiste.
- Se você fosse um bicho, que bicho você seria?
- Um homem.
A estranha figura levantou os olhos - escleróticas brilhantes no azulado da Lua - por baixo de sua cabeleira e sorriu - esmalte brilhante entre os lábios acinzentados pela noite - contente e desarmado.
Cada vez mais, até rir.
Uma (e somente uma) quase gargalhada. Gostosa e sonora.
- Um homem? Ha Ha!
E o David sorriu também.
- Uma coisa difícil. Conheci poucos que conseguiram.
e
- Afinal são poucos os que tentam. E menos ainda os que conseguem.
- Eu nunca disse que ia conseguir - o David.
E outra vez, o sujeito levanta a cabeça e sorri.
- Ha ha!
E olha David e
- E nem eu. - põe-lhe a mão no ombro. - Não poderia lhe dizer o que fazer. - Pára e
- E nem saberia - Termina enquanto já andando. A mão já pesa menos no ombro do David até que se solta quando ele já começa a deixá-lo para trás.
David se volta e vê a figura caminhando para o mato deixando rastros leves pela areia - rastros de alguém sem pressa, de passos curtos e tranquilos, rastros de animal saciado que não quer deixar pistas para outros.
E aí o David se cansa e vai caminhar mais um pouco pela brisa noturna.
O mar bate.
Os peixes acham que é uma superfície sólida e imutável.
Como bons animais que são.

Este blog só permite comentários se você for associado ao blogger. Se não o for e quiser comentar alguma coisa, faça-o no espelho, em www.urublog.blig.com.br
Este blog só permite comentários se você for associado ao blogger. Se não o for e quiser comentar alguma coisa, faça-o no espelho, em www.urublog.blig.com.br

Jam Session

- Eu sei o seu segredo.
- De novo esse papo?
- Como assim, de novo?
- Eu não tenho segredos. Nada tenho a esconder.
- Então por que fica na defensiva?
- Me larga.
O Carlos desliga o telefone. Mas há algo de bastante estranho. Sua vida está bastante estranha. Sua casa está bastante estranha e até o café que ele anda tomando está bastante estranho.
Principalmente porque é chá.
E ele nunca comprou chá, então como o chá foi parar, pronto e preparado, em seu colo, enquanto ele atendia o telefonema de um estranho que sabia dizer o seu segredo?
Só havia uma explicação.
Este era o seu segredo.
O chá.
O bina! Talvez o bina tivesse o número de quem ligou e que poderia explicar o segredo do chá!
Então ele lembra que não tem o bina.
E que Obina era uma banda de world music nos anos oitenta. Obina Shok. Ou algo assim. E seu maior hit tinha o refrão Obina Obina Obina... Obina Obina Obina.
Eles cantavam em africano, mas eram brasileiros.
E africano não é exatamente uma língua, todos nós sabemos.
São várias. Mais dialetos. E outras formas de comunicação não-convencional que mal cabem em nossa ocidentalizada mentalidade.
Porque temos as nossas próprias comunicações não-verbais.
O que mais aquele telefone teria comunicado secretamente, não-verbalmente, intrinsecamente?
Ele precisava adivinhar.
O chá!
Adivinhar!
O chá!
Adivinhar!
O chá!
Adivinhar!
O chá!
Isso! Adivinhos liam o futuro nas folhas de chá na xícara.
Mas as folhas de chá estavam no saquinho.
Como os adivinhos faziam?
Se ele ao menos soubesse.
Se ao menos soubesse o seu segredo, que aquele misterioso interlocutor sabia, ele saberia.
Mas ele não sabia.
Não sabia nem como voltar pra casa.
Porque aquela não era a casa dele.
Ele tinha certeza.
Então ele pousou a chávena de chá perto do samovar de prata czarista, vestiu-se, cobriu o cadáver da bela e jovem mulher nua ao seu lado na cama e saiu.
E o dia mal começara.

Meus Poemas Favoritos - UNWANTED, de Edward Field

The poster with my picture on it
Is hanging on the bulletin board in the Post Office.
I stand by it hoping to be recognized
Posing first full face and then profile

But everybody passes by and I have to admit
The photograph was taken some years ago.

I was unwanted then and I'm unwanted now
Ah guess ah'll go up echo mountain and crah.

I wish someone would find my fingerprints somewhere
Maybe on a corpse and say, You're it.

Description: Male, or reasonably so
White, but not lily-white and usually deep-red

Thirty-fivish, and looks it lately
Five-feet-nine and one-hundred-thirty pounds: no physique

Black hair going gray, hairline receding fast
What used to be curly, now fuzzy

Brown eyes starey under beetling brow
Mole on chin, probably will become a wen

It is perfectly obvious that he was not popular at school
No good at baseball, and wet his bed.

His aliases tell his history: Dumbell, Good-for-nothing,
Jewboy, Fieldinsky, Skinny, Fierce Face, Greaseball, Sissy.

Warning: This man is not dangerous, answers to any name
Responds to love, don't call him or he will come.


Livre Tradução Minha:

O cartaz com meu retrato
enfeita o quadro de avisos dos Correios

Paro ao lado dele esperando ser reconhecido
Posando de frente e depois de perfil

Mas todo mundo passa sem ver e tenho que admitir
A foto foi tirada já faz alguns anos

Eu já não era procurado então e ninguém me procura hoje em dia
Acho que vou gritar e ouvir o eco nas paredes de minha solidão

Gostaria que alguém encontrasse minhas digitais em algum lugar
Talvez num cadáver e dissesse, "é ele"

Descrição: Sexo masculino ou bem perto
Branco, mas normalmente vermelho de vergonha

Por volta de trinta e cinco e aparentando talvez até mais
Um metro e setenta e sessenta quilos: físico nenhum

Cabelos negros embranquecendo e rareando rapidamente
Costumavam ser cacheados, estão cada vez mais apenas desgrenhados

Olhos castanhos sob cenho inexpressivo
Gordura no queixo, provavelmente vai virar uma papada

É perfeitamente óbvio que ele era impopular na escola
Não jogava bola e molhava sua cama

Seus apelidos contam tudo:
Bobão, Imprestável, Judeuzinho, Trautemberg, Fiapo, Feioso, Marica

Atenção: O elemento não é perigoso e responde quando abordado
Vulnerável ao amor; não o chame ou ele virá


Se você quiser fazer um comentário e não é associado ao blogger, pode fazê-lo no espelho deste blog, em www.urublog.blig.com.br

outubro 30, 2006

Tudo que existe
É um chiste
Pensou o rimador
Imerso em sua dor

Poesia sem Título

Há vida
Ávida
Em meus porões

Um louco acorrentado grita
"Deixe-me sair, tolo, você não sabe
o que está perdendo"

Mas eu nem levanto os olhos do jornal encostado no balcão do bar
Para ver a monumental morena passando requebrando
E nem noto nela os vestígios dos grilhões arrebentados


Se você quiser fazer algum comentário e não quiser se associar ao www.blogger.com só pra isso, faça-o no espelho deste blog, em www.urublog.blig.com.br

Meus Poemas Favoritos: Um Aviador Irlandês Prevê sua Morte

Eu sei que vou encontrar meu destino
Lá em cima nas nuvens em algum lugar
Aqueles que combato não odeio
Aqueles que defendo não amo
Minha terra é Kiltartan Cross
Minha gente, os pobres de Kiltartan
Nenhum fim que eu tivesse os entristeceria
Ou os deixaria melhores do que estão agora

Nem o dever nem a lei me fizeram lutar
Nem multidões delirando nem políticos discursando
Um solitário impulso de deleite
Levou-me a este tumulto nas nuvens

Eu pesei tudo, pensei em tudo
Os anos por vir me soaram vazios
Vazios os anos passados
Em comparação com esta vida
Esta morte

de William Butler Yeats, livre tradução de mim mesmo. Eis o original, obviamente infinitamente mais eufônico:

I know that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above
Those that I fight I do not hate
Those that I guard I do not love

My country is Kiltartan Cross
My people, Kiltartan´s poor
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before

Nor duty nor law made me fight
Nor public men nor cheering crowds
A lonely impulse of delight
Drove me to this tumult in the clouds

I balanced it all, brought all to mind
The years to come seemed waste of breath
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death

Se você quiser fazer algum comentário e não quiser se associar ao www.blogger.com só pra isso, faça-o no espelho deste blog, em www.urublog.blig.com.br

Fanáticos Religiosos Podem Ser Bons Críticos de Arte

Lá na Alemanha, não sei se vocês leram, cancelaram uma peça de um diretor de vanguarda por medo de atentados de radicais islâmicos durante a apresentação. A peça mostrava Jesus, Maomé, Buda e Poseidon sendo decapitados, para mostrar, conforme seu criador explicou, seu desprezo pelas religiões.

É claro que virou mais tópico do debate sobre o radicalismo muçulmano, sobre o cerceamento da liberdade de expressão e sobre o medo que o terrorismo islâmico está conseguindo impor ao mundo. Vivendo no Rio de Janeiro, já vi uma mulher tentar largar o carro em pânico num sinal fechado porque viu um garotinho vindo em sua direção para vender bala e ela interpretou errado, bem como um outro garoto roubar a carteira de um sujeito crescido e vitaminado simplesmente chegando na janela do automóvel parado no cruzamento e dizer que era um assalto.

Também já sofri uma tentativa de assalto em sinal fechado. Estava com uma garota, que dirigia, o Maciel, de 60 anos, no banco da frente, e eu atrás. Um adolescente manco e mal-vestido, comendo com a mão arroz e farofa de uma quentinha, chegou na janela do Maciel e disse, juro, com a mesma entonação daquele pessoal vendendo bala em ônibus: "não-quero-sua-vida-nem-seu-carro-apenas-sua-carteira-e-sua-bolsa-e-nada-mais". O Maciel fechou o vidro e o sinal abriu, deixando-nos pensando se ele tomaria nossa vida enfiando a quentinha em nossa cara e sufocando-nos com farofa. Mas, se ele tenta isso é porque em algum lugar alguém está entrando em pânico e entregando a carteira, pra evitar complicações. Outra ridícula tentativa de roubo foi sofrida por minha irmã, quando um pivete parou-a e disse prela entregar a bolsa ou o primo dele, que estava escondido, iria atirar nela, ao que minha irmã respondeu que ela não ia dar a bolsa porque o tio dela estava atrás do primo dele, apontando uma arma pra ele.

Mas conheço gente que teria entregue a bolsa. E o Ocidente vem entregando tudo assim, na maior. Medrando geral. Mas não é este o ponto que me interessa. Nesse caso em questão da decapitação dos líderes religiosos, os fanáticos assassinos muçulmanos estão na verdade fazendo um favor ao artista. Estão lhe dando a chance de realmente ousar.

Eu não gosto muito de SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS. É um filme extremamente bem-feito por pessoas talentosas, mas que atira contra alvos fáceis e tenta se passar por mais profundo e revolucionário do que realmente é. Mas tem uma cena que eu realmente aprecio. Está tendo uma missa ou algo parecido, bem solene, na igreja, e um telefone começa a tocar. Um dos alunos do Robin Williams levanta com um telefone de brinquedo e diz "ei, reitor, é um telefonema de Deus". Ele finge um pouco ouvir alguém no fone e completa: "e ele está mandando admitir garotas no colégio".

Obviamente ele vai parar no gabinete do diretor e recebe a visita de Robin Williams, a óbvia má influência no adolescente. O garoto fica feliz quando o professor chega e claramente espera a aprovação dele, mas o mestre explica que ele vem tentando ensinar seus alunos a ousarem, não a fazerem simples molecagens. O que o moleque fez foi uma travessura, uma malcriação, não uma ousadia. O homem mais velho se levanta e vai saindo após deixar o jovem um tanto desapontado. Quando está abrindo a porta, não resiste a comentar: "um telefonema de Deus, hein? Engraçado. Tinha que ser a cobrar. ISSO seria ousadia".

Qual a diferença? Ora, a primeira foi apenas uma brincadeira. Um desrespeito a um ritual, para se mostrar engraçado e, visivelmente, para impressionar os colegas e o professor que o garoto idolatrava. A segunda cortaria muito mais fundo. Poderia levar a uma reflexão sobre os verdadeiros ideais da igreja e a milionária religião organizada. Além, é claro, de exigir muito mais coragem, por ser um questionamento muito mais ofensivo e profundo. ISSO seria uma ousadia, não seria só se mostrar mau para os amiguinhos.

E assim voltamos para o decapitador de messias. Para grande parte da população, a religião é tudo que eles têm. Tudo mesmo e justamente por isso tem gente que é tão fanática e quer voltar ao século XII. É muito fácil você ser MUITO emotivo quanto à coisa mais importante em sua vida. Pra grande parte desse povo, a idéia religiosa deles é relativamente rasteira - Deus (ou Alá, ou o Bodissátiva da vez) é uma espécie de super-herói que mora no Céu e ajuda os fracos e oprimidos que estão do lado dele. E ele sabe quem é bom e quem é mau, incluindo entre estes últimos os que não lhe prestam a devida homenagem. Ou seja, mais para um Papai Noel onipotente do que para a força vital que anima cada partícula do universo, mas realmente não dá para você ter uma grande iluminação sem ter o que comer (aliás, essa foi uma das grandes descobertas de Sidarta Gautama, o Buda que fundou o budismo. É, porque tem outros budas também, mas essa é uma longa história) e a idéia subjacente é correta, se algum dia você progredir espiritualmente. É como ensinar à gente no ginásio a física newtoniana, que já está ultrapassada, ou aquele átomo errado, com os elétrons orbitando elipticamente em volta do núcleo. Não é exatamente o certo, mas você não vai precisar saber mais do que isso a não ser que o assunto realmente lhe interesse.

É claro que o mundo ocidental está bastante secularizado. A Europa mais ainda. A naturalidade deles em deixar a namorada gostosa conversar nua na praia com um amigo heterossexual ainda não me subiu à cabeça, mas deixemos isso pra lá. De qualquer forma, o público que você espera que vá a uma peça de vanguarda na Alemanha será muito mais materialista do que religioso. Ou, se religioso, muito mais provável de pertencer a alguma corrente mística alternativa do que a uma religião tradicional organizada. Muito possivelmente terá uma meia dúzia de praticantes de adoradores do deus cornudo, um culto que eu não posso deixar de pensar que está na moda porque adorar o diabo, mesmo que explicando que "diabo" era o disfarce que a igreja católica inventou para execrar o antigo deus da fertilidade e da criação, mostra o quanto o sujeito é alternativo e acima da mediocridade geral.

Enfim, o que o diretor moderninho estava querendo fazer nada mais era do que mostrar desrespeito e desprezo. Nada a acrescentar. Mas desrespeito e desprezo ao quê? No século XVIII, quando - tudo bem, ninguém mais ia parar na fogueira, mas ainda dava pra pegar uma cadeia - dava merda mexer com a Igreja, era uma coisa com conteúdo ser desrespeitoso com religião, mas hoje em dia?

Bem, a Al Qaeda e seus consectários estão aí.

Eis a chance do sujeito mostrar que realmente acredita no que está dizendo. Que não é uma traquinagem vazia. Ou uma molecagem de adolescente tão inconsequente quanto arrotar alto. Ele quer decapitar figuras sagradas. Sua convicção estará à altura.

Claro que não.

Nos Estados Unidos tem gente explodindo clínicas de aborto e matando médicos aborteiros. Tem escola que ensina lado a lado criacionismo (ou "design inteligente") ao lado da teoria da evolução. E o cara quer combater isso decapitando Poseidon? Jesus e Buda nunca levantaram um dedo contra ninguém (está bem, Jesus saiu dando porrada nos vendilhões do templo. Teria também secado a figueira, mas se você, como eu, não acredita muito nessas histórias de milagres, não vai levar isso em conta). E Maomé fez o que pôde para mandar a mesma mensagem, dadas as circunstâncias, a época e o local em que viveu. Poseidon... bem, o destino dele está naquele filme.
Esses fanáticos religiosos muçulmanos estão dando a chance a artistas provocadores de mostrarem que são realmente provocadores e não apenas moleques mostrando que são espertos. Buñuel, em "A Via Láctea - o Estranho Caminho de São Tiago", mostrava como fazer um filme anticlerical. Jesus é mostrado como ingênuo e ele foi pesquisar heresias de várias épocas para ridicularizar os dogmas católicos ("Jesus está nessa hóstia como o coelho está nesse patê" é a minha preferida). Vai muito além do choque fácil. O choque fácil só tem repercussão e importância se o artista o sustentar contra qualquer força que se levante contra ele. Se à primeira ameaça ele foge da raia, qual o valor do que ele faz? Os adolescentes também, alguns anos depois, arrumam um emprego, casam-se e acomodam-se direitinho na mediocridade geral.

Se você quiser fazer algum comentário e não quiser se associar ao www.blogger.com só pra isso, faça-o no espelho deste blog, em www.urublog.blig.com.br

outubro 22, 2006

E-mail a um amigo explicando meu voto

Não, Sílvio, eu nunca gostei do PT, desde os tempos de faculdade, quando os petistas todos odiavam a gente e eu já discordava de suas atitudes paternalistas e messiânicas. Não gosto do Lula e acho o atual governo equivocado na política econômica e corrupto. Temer que eles assumam uma postura totalitária é paranóia de maluco, já que o exército continua sendo conservador e reacionário e, como já visto, nem a PF é controlada por eles. Totalitarismo sem controlar forças armadas é impossível.

Eu vou votar no Lula porque discordo da visão do mundo de von Mises e não acredito que o capitalismo selvagem e desenfreado seja a resposta pra tudo. Essa é a visão encampada pelas grandes empresas e pela mídia. Se eles dominarem também o governo, não se importarão a mínima mais com nada, vão se achar de vez os donos de tudo e impor esta visão. Estou de saco cheio de ouvir falar que qualquer mínima politica assistencialista ou preocupação social é um avanço no bolso alheio, uma invasão de privacidade e caminho certo para uma ditadura sanguinária. Estou de saco cheio de darwinismo social pregando que os fracos que se fodam. Uma vez você me falou que eu não gostava de cultura corporativa por nunca ter trabalhado numa grande corporação, mas note que justamente os três caras com essa visão neoliberal na Panelinha são justamente três filhos de donos de empresas. Eu vou votar no Lula preles verem que existem alternativas a eles, por mais que a política econômica seja neoliberal, e que eles ainda não controlam os corações e mentes de todo mundo. Simples assim.

Se você quiser fazer algum comentário e não quiser se associar ao www.blogger.com só pra isso, faça-o no espelho deste blog, em www.urublog.blig.com.br

outubro 19, 2006

Férias em Itacaré






Os cinco melhores filmes de psicopata assassino de todos os tempos

1. M, o Vampiro de Dusseldorf (1931)
Direção de Fritz Lang, roteiro de Thea von Harbou e Fritz Lang.
Com Peter Lorre e Otto Wernicke.


O filme que criou o psicopata assassino que iria dominar o cinema até Hannibal Lecter. Em vez de um monstro furioso e poderoso, um sujeito tímido e reprimido. Pequeno e vulnerável, é tão desprezível e presa de seus fantasmas que quase causa pena. Peter Lorre encarna a primeira aparição dessa personagem no cinema de forma tão intensa e emocional que até hoje ainda é imitado (e, como sói acontecer, nunca superado). Soa inacreditável que depois de passar o dia todo filmando como o matador pedófilo de forma tão apaixonada, quando dava sete horas Lorre saía e ia para o teatro onde fazia uma comédia. Em volta dessa soberba atuação, Fritz Lang, em sua primeira fita sonora, experimenta e usa o som como mecanismo linguístico e não mero acessório - as vozes da multidão discutindo, o grito da mãe da primeira vítima e, é claro, o assovio que identifica o criminoso, de quem nunca se via o rosto, outro recurso que em breve viraria clichê. Usando a iluminação expressionista com negativo pancromático retratando uma ambientação urbana contemporânea, recheada de criminosos e policiais sem glamour, Lang também dá a partida estilística para o filme noir americano.

Um dos maiores clássicos da sétima arte.

Disponível em DVD.

2. Mórbida Curiosidade - também conhecido como A Tortura do Medo (Peeping Tom) 1960
Direção de Michael Powell, roteiro de Leo Marks.
Com Carl Boehm, Anna Massey, Moira Shearer.

Michael Powell fez durante a II Guerra um filme de propaganda anti-nazista que conta... a epopéia de um bando de nazistas tentando fugir do Canadá! O conteúdo propagandístico esperado está lá e chega a envergonhar os espectadores de hoje em dia, mas, mesmo sendo os alemães retratados como bestas sanguinárias, fica patente o interesse (clínico, não confundir com admiração) do cineasta pelo tenente fugitivo, um pretenso super-homem, nobre e coerente em sua perfeição ideológica tão equivocada. Ao final da história, depois de muito desdenhar a imperfeição da democracia, ele é capturado justamente por acreditar na perfeita rigidez de suas leis e ele acaba enganado e tratado como uma mercadoria e não um ser humano (!!!)
Em Mórbida Curiosidade a busca da obra de arte perfeita leva o assistente de câmera Mark Lewis a assassinar mulheres enquanto as filma olhando para o reflexo de sua própria morte no espelho. O instrumento de matança é um estoque escondido no tripê de sua câmera. A fita questiona todo o componente doentio que existe na apreciação artística, principalmente do cinema (veja o post sobre cinema - http://arsgratiars.blogspot.com/2006/10/stima-arte.html) e não poupa ninguém, nem os espectadores. Por isso o filme acabou com a carreira dele e foi um fracasso crítico e comercial, sendo resgatado só nos anos 80 por Martin Scorsese.

Sem nenhuma invenção ou papagaiada cinematográfica que nos lembre que estamos apenas assistindo a um filme, Powell usa os recursos do cinemão contra as próprias convenções (os planos subjetivos fetichistas, examinando pernas de fora de mulheres e casais se agarrando; a modelo com a cicatriz no rosto, os diversos personagens que exclamam que vão ficar famosos quando frente a frente com a câmera de Mark) ou de forma tão intensa que faz com que pareça absurdamente chocante um pai dando a um filho uma câmera de presente ou profundamente obsceno que uma garotinha compre chocolate numa loja.

Repleto de elipses, alusões, duplos sentidos, ironias e auto-referências, o filme não desperdiça um fotograma ou uma vírgula de diálogo - tudo reforça, reflete ou comenta algum aspecto da história. Ainda tem momentos de pura linguagem cinematográfica, como nesta cena, em que o assassino recebe a visita da mãe cega de sua quase namorada, justo quando assiste ao filme de seu último crime. O que está projetado na tela é o rosto da vítima e o que está projetado nas costas de Mark é uma caveira (note que ela não tem olhos), reforçando a idéia de que ele é um vampiro, um anjo da morte sanguessuga:

Mórbida Curiosidade costumava frequentar as madrugadas da Globo nos anos 80 e 90, de onde eu gravei uma fita que gastou com o tempo. Também foi lançado em VHS, primeira chance que tive de vê-lo com o som original, e rodou há alguns anos o Telecine Classic (hoje Telecine Cult). Em DVD não tem nem previsão de lançamento, já que é uma fita obscura e pouco conhecida. Se você tiver uma conexão de banda larga e um programa de download de torrents, pode baixar do seguinte endereço:

http://www.isohunt.com/download/14352306/peeping+tom

E assistir em widescreen e som original sem legendas. Você pode baixar a transcrição dos diálogos em inglês do site www.transcripts.com. Vale a pena.


3. Psicose (Psycho) 1960
Direção de Alfred Hitchcock, roteiro de Robert Bloch e Joseph Stefano.
Com Norman Bat... digo, Anthony Perkins, John Gavin, Janet Leigh e Martin Balsam.


Família, dinheiro, sexo. Os ícones do ocidente capitalista são virados de cabeça pra baixo neste filme apropriadamente sobre um psicótico. Quando não se pode confiar nem na sua mãe, como encontrar algum sentido no mundo?

Psicose saiu pouco depois de Mórbida Curiosidade e tem vários pontos de contacto com o clássico inglês, mas o velho Hitch entendia de como ganhar dinheiro e suaviza a subversão da história o suficiente para fazer montes e montes de grana com a fita. Ainda assim constrói outro clássico do cinema, montando o filme como uma blitzkrieg, passando o tempo todo deixando o espectador fora de equilíbrio e desorientado, alinhando uma quebra de conceito e de convenções atrás da outra, sem saber de onde virá a próxima surpresa.

A mocinha é amante de um homem casado (o que equivalia a vagabunda nos EUA de 1960) e ladra; com meia hora de exibição ela morre; o sujeito por quem ela parecia estar se apaixonando, começando uma relação que a redimiria participa da ocultação do cadáver (e depois é revelado como o verdadeiro assassino); o detetive durão contratado para descobrir o assassino dura dez minutos antes de ser assassinado de forma completamente ingênua; a dedicada e velha mãe americana é uma matadora impiedosa (e no final nem é a mãe). Somando isso tudo à chocante (para a época) descrição gráfica do esfaqueamento de Janet Leigh e do investigador, a platéia ficava com os nervos transformados em gelatina.

O final, como todo mundo sabe, apesar do cartaz pedindo para que se mantivesse segredo dele, revela que Bates é o Filho Que Matou a Mãe (como a piada diz que a fita se chamou em Portugal) e mostra uma perfeita (e aterradora) metáfora visual para sua psicose: o esqueleto mumificado da progenitora num porão vazio iluminado por uma enervante lâmpada onipresente. Não somos forçados, como em Mórbida Curiosidade, a nos identificar com o assassino - aliás, só no final sabemos que aquele rapaz simpático é um matador - e não nos sentimos como se tendo nossas perversões íntimas expostas, uma das razões pelas quais o filme de Michael Powell acabou com a carreira dele e Psicose reavivou ainda mais a de Hitchcock.
Disponível em DVD da Coleção Hitchcock.


4. O Silêncio dos Inocentes (Silence of the Lambs) 1991
Direção de Jonathan Demme, roteiro de Thomas Harris e Ted Tally.
Com Anthony Hopkins, Jodie Foster, Scott Glen e Ted Levine.


M criou o psicopata assassino assombrado pelos seus fantasmas. O Silêncio dos Inocentes criou o psicopata assassino que domina o cinema de hoje - o que assombra, aterrorizante como um fantasma,o mundo normal.

Hannibal Lecter aparece pela primeira vez na prisão para psicopatas do FBI - Jodie Foster vai descendo por corredores cada vez mais sombrios e sujos, com celas cada vez mais sombrias e sujas, guardando homens cada vez mais sombrios e sujos, barbados e piolhentos. Quase no fim dessa descida ao inferno, um dos prisioneiros esporra nela. E finalmente ela chega ao pior deles. Um sujeito perfeitamente limpo, habitando uma cela clara, límpida e perfeitamente arrumada, com estantes com livros e desenhos e pinturas revelando talento artístico. O terror definitivo.

O Silêncio dos Cordeirinhos é o título original e a fita mostra exatamente como Lecter, sendo um titã mental, recusa-se a aderir aos opressivos padrões da normalidade que dão a uma elite de patrícios direito de vida e morte a nós, pobres mortais, como mostrado na metáfora visual em que o assassino psicopata é amarrado e amordaçado para conversar com a poderosa política em busca da filha.

Mas é aterrador viver fora dessa normalidade. Os agentes do FBI aceitam-na de bom grado - na sequência de abertura, há um cartaz na pista de treino do Bureau avisando que "Nós gostamos de sofrer" e o treinamento de Jodie Foster é ficar segurando um escudo enquanto leva porrada de agressores sem rosto. Ela não reage. "Búfalo" Bill, o psicopata que realmente está matando gente na película, sonha em juntar-se ao mundo normal, mas ele é um predador, um matador que não se conforma aos padrões e portanto precisa ser castrado, perder seu membro viril, seu falo criador. Ele não só precisa dessa castração como a almeja açodadamente e seu animal de estimação é um poodle. Que parece um... cordeirinho. E, como tal, é usado friamente como objeto de barganha pela filha da senadora, também integrante do patriciado.

Original, inquietante e com soberbas atuações, O Silêncio dos Inocentes criou todo um novo gênero policial e ressuscitou a carreira do grande Anthony Hopkins, que interpretou muito alemão nazista nos anos 70, quando ainda se fazia filme de II Guerra. Entre seus muitos momentos de brilhantes metáforas visuais está a fuga de Lecter da prisão, quando usa a pele esfolada do rosto do policial como disfarce e, dentro da ambulância, levanta-se para devorar o guardinha. O literal lobo em pele de cordeiro.

Todo mundo sabe que está disponível em DVD.


5. Caçador de Assassinos (Manhunter) 1986
Direção de Michael Mann, roteiro de Thomas Harris e Michael Mann.
Com William Petersen, Joan Allen, Brian Cox e Dennis Farina.

Esta é a primeira versão do horroroso Dragão Vermelho. Michael Mann vivia o apogeu e glória do seriado que criara, Miami Vice, e resolveu filmar o romance de Thomas Harris. Pela primeira vez Hannibal Lecter apareceria na tela grande, interpretado por Brian Cox, numa versão menos racional e mais tentadora (no sentido Lúcifer tentando Cristo) do psicopata.

Sendo um filme dos anos 80, é mais liberal e compreensivo com seu psicopata assassino do o Dragão Vermelho do século XXI. Enquanto Ralph Fiennes imita novamente na película mais recente o Peter Lorre de M, adicionando apenas um gosto por malhação, no filme de 1986 o assassino é mais funcional socialmente e sua psicose não é o "mamãe-me-bateu-e-reprimiu-e-me-assombra-até-hoje" clichê típico, sendo sua loucura enraizada em profundas neuroses similares às nossas e, por isso mesmo, muito mais assustadoras. A cena da sedução da cega, em que ele mostra sua falta de traquejo social enquanto tenta ser um anfitrião perfeito, assustado com aquela presença feminina, despertou incômodas reminiscências do meu próprio comportamento quando em presença de mulheres tão desejadas, tão maravilhosas demais pro meu caminhãozinho, e ainda assim dispostas a serem seduzidas, que chegava a dar medo.

Essa abordagem é muito mais crível do que a do filme mais novo. É difícil imaginar que ninguém do trabalho de Ralph Fiennes tivesse reparado que ele era completamente pirado ou mesmo que ele tivesse um amigo no zoológico que deixasse a cega acariciar o tigre. Em Caçador de Assassinos o maluco tem seus surtos psicóticos e assassinos e depois sente-se saciado e pode funcionar socialmente, ainda que precariamente. Seu relacionamento com a cega é terno e até mesmo nós, espectadores, temos esperanças de que seja redentor. Mais ainda, a cena de sexo é romântica e bonita, é implícito que a cega tem uma vida sexual ativa e vai dar pro sujeito porque gostou dele. Em Dragão Vermelho, o relacionamento é pouco gratificante para ambos. Não há beleza alguma quando a mulher, pouco atraente e por isso inclinada a se relacionar com o óbvio maluco, se abaixa para pagar um boquete. Típico do atual clima moralizante do cinema americano contemporâneo, a sensação que se tem com o desenrolar da história, quando ela é perseguida pelo assassino, é a de que está pagando por manter relações sexuais fora do casamento.

E, é claro, tem o estilo. Manhunter explora cores berrantes e falsa, enquadramentos pouco usuais e aproximações indiretas à história, o que faz todo sentido num filme sobre visões distorcidas do mundo que começam a contaminar o investigador, aspecto muito falado em Dragão Vermelho e pouco explorado cinematograficamente. Não sendo uma produção caríssima, não há necessidade de uma longa cena de luta no final, para a qual se exige uma esticada completamente inverossímil da história. Não tem o Anthony Hopkins, é verdade, mas ainda assim é um belo filme.

Disponível em DVD.

Filmes que ignorei nesta lista: Halloween, por ser mais filme de terror do que de psicopata assassino; Sei Donna per um Asesino, de Mario Bava (o filme que faz o toureiro de MATADOR, do Almodóvar, se masturbar na abertura), pelo simples fato de que não vi.

Esqueci de algum clássico? Se você quiser fazer algum comentário e não quiser se associar ao www.blogger.com só pra isso, faça-o no espelho deste blog, em www.urublog.blig.com.br

outubro 15, 2006

Pandemônio

O novo mercado emergente é o Inferno, desde que se abriu uma passagem interdimensional e descobriu-se que os demônios eram gente como a gente, mas evoluíram a partir do fogo e não da água e da terra como nós. Essa seria a cena de abertura de uma peça sobre o assunto, mas logo provou-se impraticável contar essa história num palco (com baixo orçamento, como sói acontecer com minhas peças). Está arquivada para futuro romance ou roteiro:

uma mulher e um demônio quase humano conversam no escritório dele. paulo chega durante a conversa e fica em pé, num canto, olhando, após cumprimentar com um aceno de cabeça ao ente sobrenatural.
mulher
Como assim, você não pode dar um jeito?

ashalzas
Pactos de sangue não podem ser modificados assim. É preciso energia...

mulher
Mais do que eu já te dei? Você tem idéia do trabalho que custou?

ashalzas
Sim, eu sei, mas eu também tive muito trabalho. E sem o nível de energia adequado, não podemos modificar o que foi pactuado...

mulher
O que foi pactuado é que você ia me dar muita beleza! Não essas gorduras localizadas! Esses peitos enormes, ainda ficou um maior do que o outro! Será que no Inferno vocês não tenham idéia do que seja uma mulher bonita?

ashalzas
Sim, temos, faz parte do currículo demoníaco estudar as obras de Rubens e Rafael...

mulher
Que Rubens e Rafael o quê! Nunca ouvi falar! Vocês têm que saber é de Casablancas, Lagerfeld, isso é que importa! Rubens e Rafael! Isso lá é nome de estilista! Eu quero minha alma de volta! Droga, eu devia é ter feito uma cirurgia plástica, mas minhas amigas falaram tanto que aqui eu ia poder guardar o dinheiro...

ashalzas
Magia não é uma ciência exata, senhorita. E, na verdade, a senhorita só me forneceu 50% de uma alma e ainda assim não era sua...

mulher
Claro que é minha! O Clôdinho fala o tempo todo que me ama tanto, que é coisa de espírito, claro que é minha! Não me vem de papo não! Você vai ter que acertar isso! Onde eu vou arrumar um desfile com essas ancas moles que você me arrumou?

ashalzas
Estes pactos de sangue não deveriam ser feitos por motivos tão frívolos...

mulher
Que que você queria que eu fizesse? Eu já tinha um monte de homem atrás de mim, eu não precisava de mais nada, agora é que eu preciso, até o Clodinho já me perguntou porque que eu parei a ginástica! Isso não pode ficar assim! Eu quero o meu corpo de volta, do jeito que era, junto com a alma do Clodinho, ou então eu quero que você faça tudo certinho!

ashalzas
Senhorita, o pacto não especifica...

mulher
O pacto não especifica nada, mas eu já falei com o meu advogado! Uma vez que foi com o meu sangue que assinei, o padrão de beleza que deve ser usado deve ser o meu! E como a alma não era de quem assinou também, o pacto pode ser cancelado...

ashalzas
A senhorita tem advogado? Peça para ele falar com o meu...

mulher
Você tem advogado?

ashalzas
Todos os demônios têm um. Eles não vêem problema em trabalhar conosco, não têm alma a perder mesmo...

mulher
O meu é muito bom... e você sabe como são os juízes aqui... eles odeiam demônios... acho bom você pensar bem no meu caso...

ashalzas
(SUSPIRANDO) Eu não posso fazer nada sem consultar o meu advogado. Vou ver o que pode ser feito. Mas os níveis de energia andam muito baixos... talvez com uns 10% de alma a mais...

mulher
Nem um pouco. Eu vou precisar de tudo que sobrou da alma do Clodinho daqui a uns dez anos...

ashalzas
Está bem, está bem. Eu vou consultar o meu advogado. Ligar-lhe-ei amanhã, pode ser?

mulher
É bom que ligue. Ou um oficial de justiça irá trazer um bilhetinho meu depois. Boa tarde. (SAI)

paulo olha para ashalzas, sorrindo e senta-se.

paulo
Pactos de beleza, Ash? Você sabe que isso é proibido. A associação dos cirurgiões plásticos pode pedir a tua extradição...

ashalzas
Antigamente era o modo mais fácil de se conseguir uma alma... hoje em dia fica difícil, o que pode um demônio saber o que as mulheres querem? Damos-lhe o corpo das mais belas musas renascentistas e elas reclamam...

paulo
O problema de demônios não terem sexo é essa incompreensão da cabeça das mulheres...

ashalzas
Fossem os homens capazes de entendê-las e o Inferno seria bem mais vazio... veja só, essa queixosa roubou a alma do namorado e ainda vem reclamar...

paulo
Roubou? Como, roubou? Tirou da carteira dele enquanto ele estava dormindo?

ashalzas
Não, deitando com ele. Ensinei-lhe alguns rituais tântricos. Ela não queria arriscar a alma dela - e nem eu acho que valha grande coisa. Uns movimentos, umas invocações, uns rituais e - voilá! - lá se vai um pedaço da sua alma com a sua ejaculação.

paulo
Mais um motivo pra se usar camisinha...

ashalzas
Não ia adiantar nada, somente se um homem santo a consagrasse. E não creio que um homem santo faria isso.

paulo
A maioria das pessoas também não criaa em demônios e anjos...

ashalzas
É que nós não existíamos... sabe, você deveria tentar algum dia... dizem que um orgasmo com dreno de alma é inesquecível...

paulo
Eu não faço questão. Se eu pudesse me lembrar com detalhes dos meus orgasmos sempre que quisesse, eu não iria querer mais fazer sexo...

ashalzas
Faz sentido... De qualquer maneira, deve ser uma experiência interessante. É uma pena que eu não tenha alma.

paulo
Vocês não têm sexo nem alma. Nunca se perguntaram se havia uma ligação?

ashalzas
Não. Não nos preocupamos com nossa pan-sexualidade. Somos insuperáveis. (SORRI) E você sabe o estado em que ficam os despreparados após uma noite com um íncubo ou um súcubo.

paulo
O pior é que eu sei, Ash. E não só eu e você. E quem não sabe vai saber pelos jornais amanhã.

ashalzas
Creio que enfim chegamos aonde você queria... Muito bem, Paulo, o que que aconteceu agora?

paulo
Uma menina dessas aí. Modelo. Só que bem mais famosa. Estava sumida há dias. Arrombaram o apartamento dela ainda há pouco.

ashalzas
E..?

paulo
E em vez dela encontraram uma massa de carne.

ashalzas
Bem, é o que vocês são...

paulo
Não metafórica, Ashalzas. Literal.

ashalzas
Literal. Certo. É um conceito difícil pra demônios. E o que eu tenho a ver com isso, essa massa de carne?

paulo
Bem, Ashalzas, meu caro, ou ela se enganou e botou ácido sulfúrico de efeito retardado na banheira quando foi tomar banho ou se envolveu com demônios.

ashalzas
Eu não procuro você cada vez que sei de crimes cometidos por humanos.

paulo
Ash, não me venha com essas tergiversações que vocês aprendem lá em baixo... desde que a brecha se abriu e vocês, demônios descontentes com o Inferno, começaram a viver aqui, você sabe que a convivência é difícil...

ashalzas
Paulo, meu querido... você me ajudou a fixar minha essência neste plano enquanto eu fugia pela brecha... mas eu já ajudei você a localizar o vampiro da Zona Oeste, o Difusor da Guerra, já até te ajudei naquela história com aquela tua amante...

paulo
(SORRI) Puxa, eu pensei que esse último tinha sido por amizade...

ashalzas
Por amizade, mesmo, Paulo. Porque para mim, minha dívida já está paga. E você sabe como é desagradável para um demônio ajudar a caçar um irmão, mesmo que seja de uma linhagem de sangue... não posso mais ajudá-lo.

paulo
Você sabe que sempre se levanta uma onda antidemoníaca em casos assim...

ashalzas
Eu saberei me virar...

paulo
E a Polícia Religiosa, Ash?

ashalzas
Ela sabe que eu sou de paz.

paulo
Talvez, Ash... mas, acho que não te contei... essa moça... há alguns anos atrás, foi recusada por várias agências. Em anos de carreira, tinha feito só umas revistas masculinas... ela sumiu durante algum tempo e voltou. Ninguém conseguia ver onde estava a diferença, mas quando ela voltou, voltou com uma beleza arrebatadora. Acharam que o tipo dela tinha entrado em moda, ou qualquer coisa parecida. O certo foi que ela arrebentou. Olhando agora, da perspectiva da massa de carne... de onde será que veio esse sucesso dela? Os Monges Policiais com certeza irão atrás de demônios ilegais de pactos de beleza... e o que você estava fazendo quando cheguei aqui?

ashalzas
Seu chantagista sujo... você adora distorcer os fatos para que eles o sirvam melhor, não, Paulo? (PAUSA. RI) Acho que é por isso que eu gosto de você. Está bem! (ABRE OS BRAÇOS, SATISFEITO)

sonoplastia e efeito de luz para um transporte mágico que ashalzas invocou. entra um monge policial tentando afastar uma repórter. paulo se assuste por um instante e põe a mão na cabeça, como se estivesse com tonteira.

bartolomeu
Quem foi que deixou a imprensa entrar?

repórter
Você acha que Marcélia estava envolvida em algum culto?

bartolomeu
Culto, culto quem, minha filha, você acha que ela gostava de ler alguma coisa? (VÊ PAULO E ASHALZAS) Reniache... como você entrou aqui?

paulo
Ah, esse cheiro de enxofre... eu fico sempre enjoado...(APONTA ASHALZAS) Foi ele, esse maldito transporte mágico...

bartolomeu
Ele é um maldito. Tudo que ele faz é maldito. E você está sempre com ele.

ashalzas
Somos apenas bons amigos, Bartolomeu...

bartolomeu
Inspetor Bartolomeu para você, demônio.

repórter
Vocês são amigos?

bartolomeu
Não tem ninguém pra tirar essa mulher daqui, não?

repórter
(A ASHALZAS) O que que um demônio veio fazer aqui?

paulo
Ele veio comigo.