outubro 30, 2006

Fanáticos Religiosos Podem Ser Bons Críticos de Arte

Lá na Alemanha, não sei se vocês leram, cancelaram uma peça de um diretor de vanguarda por medo de atentados de radicais islâmicos durante a apresentação. A peça mostrava Jesus, Maomé, Buda e Poseidon sendo decapitados, para mostrar, conforme seu criador explicou, seu desprezo pelas religiões.

É claro que virou mais tópico do debate sobre o radicalismo muçulmano, sobre o cerceamento da liberdade de expressão e sobre o medo que o terrorismo islâmico está conseguindo impor ao mundo. Vivendo no Rio de Janeiro, já vi uma mulher tentar largar o carro em pânico num sinal fechado porque viu um garotinho vindo em sua direção para vender bala e ela interpretou errado, bem como um outro garoto roubar a carteira de um sujeito crescido e vitaminado simplesmente chegando na janela do automóvel parado no cruzamento e dizer que era um assalto.

Também já sofri uma tentativa de assalto em sinal fechado. Estava com uma garota, que dirigia, o Maciel, de 60 anos, no banco da frente, e eu atrás. Um adolescente manco e mal-vestido, comendo com a mão arroz e farofa de uma quentinha, chegou na janela do Maciel e disse, juro, com a mesma entonação daquele pessoal vendendo bala em ônibus: "não-quero-sua-vida-nem-seu-carro-apenas-sua-carteira-e-sua-bolsa-e-nada-mais". O Maciel fechou o vidro e o sinal abriu, deixando-nos pensando se ele tomaria nossa vida enfiando a quentinha em nossa cara e sufocando-nos com farofa. Mas, se ele tenta isso é porque em algum lugar alguém está entrando em pânico e entregando a carteira, pra evitar complicações. Outra ridícula tentativa de roubo foi sofrida por minha irmã, quando um pivete parou-a e disse prela entregar a bolsa ou o primo dele, que estava escondido, iria atirar nela, ao que minha irmã respondeu que ela não ia dar a bolsa porque o tio dela estava atrás do primo dele, apontando uma arma pra ele.

Mas conheço gente que teria entregue a bolsa. E o Ocidente vem entregando tudo assim, na maior. Medrando geral. Mas não é este o ponto que me interessa. Nesse caso em questão da decapitação dos líderes religiosos, os fanáticos assassinos muçulmanos estão na verdade fazendo um favor ao artista. Estão lhe dando a chance de realmente ousar.

Eu não gosto muito de SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS. É um filme extremamente bem-feito por pessoas talentosas, mas que atira contra alvos fáceis e tenta se passar por mais profundo e revolucionário do que realmente é. Mas tem uma cena que eu realmente aprecio. Está tendo uma missa ou algo parecido, bem solene, na igreja, e um telefone começa a tocar. Um dos alunos do Robin Williams levanta com um telefone de brinquedo e diz "ei, reitor, é um telefonema de Deus". Ele finge um pouco ouvir alguém no fone e completa: "e ele está mandando admitir garotas no colégio".

Obviamente ele vai parar no gabinete do diretor e recebe a visita de Robin Williams, a óbvia má influência no adolescente. O garoto fica feliz quando o professor chega e claramente espera a aprovação dele, mas o mestre explica que ele vem tentando ensinar seus alunos a ousarem, não a fazerem simples molecagens. O que o moleque fez foi uma travessura, uma malcriação, não uma ousadia. O homem mais velho se levanta e vai saindo após deixar o jovem um tanto desapontado. Quando está abrindo a porta, não resiste a comentar: "um telefonema de Deus, hein? Engraçado. Tinha que ser a cobrar. ISSO seria ousadia".

Qual a diferença? Ora, a primeira foi apenas uma brincadeira. Um desrespeito a um ritual, para se mostrar engraçado e, visivelmente, para impressionar os colegas e o professor que o garoto idolatrava. A segunda cortaria muito mais fundo. Poderia levar a uma reflexão sobre os verdadeiros ideais da igreja e a milionária religião organizada. Além, é claro, de exigir muito mais coragem, por ser um questionamento muito mais ofensivo e profundo. ISSO seria uma ousadia, não seria só se mostrar mau para os amiguinhos.

E assim voltamos para o decapitador de messias. Para grande parte da população, a religião é tudo que eles têm. Tudo mesmo e justamente por isso tem gente que é tão fanática e quer voltar ao século XII. É muito fácil você ser MUITO emotivo quanto à coisa mais importante em sua vida. Pra grande parte desse povo, a idéia religiosa deles é relativamente rasteira - Deus (ou Alá, ou o Bodissátiva da vez) é uma espécie de super-herói que mora no Céu e ajuda os fracos e oprimidos que estão do lado dele. E ele sabe quem é bom e quem é mau, incluindo entre estes últimos os que não lhe prestam a devida homenagem. Ou seja, mais para um Papai Noel onipotente do que para a força vital que anima cada partícula do universo, mas realmente não dá para você ter uma grande iluminação sem ter o que comer (aliás, essa foi uma das grandes descobertas de Sidarta Gautama, o Buda que fundou o budismo. É, porque tem outros budas também, mas essa é uma longa história) e a idéia subjacente é correta, se algum dia você progredir espiritualmente. É como ensinar à gente no ginásio a física newtoniana, que já está ultrapassada, ou aquele átomo errado, com os elétrons orbitando elipticamente em volta do núcleo. Não é exatamente o certo, mas você não vai precisar saber mais do que isso a não ser que o assunto realmente lhe interesse.

É claro que o mundo ocidental está bastante secularizado. A Europa mais ainda. A naturalidade deles em deixar a namorada gostosa conversar nua na praia com um amigo heterossexual ainda não me subiu à cabeça, mas deixemos isso pra lá. De qualquer forma, o público que você espera que vá a uma peça de vanguarda na Alemanha será muito mais materialista do que religioso. Ou, se religioso, muito mais provável de pertencer a alguma corrente mística alternativa do que a uma religião tradicional organizada. Muito possivelmente terá uma meia dúzia de praticantes de adoradores do deus cornudo, um culto que eu não posso deixar de pensar que está na moda porque adorar o diabo, mesmo que explicando que "diabo" era o disfarce que a igreja católica inventou para execrar o antigo deus da fertilidade e da criação, mostra o quanto o sujeito é alternativo e acima da mediocridade geral.

Enfim, o que o diretor moderninho estava querendo fazer nada mais era do que mostrar desrespeito e desprezo. Nada a acrescentar. Mas desrespeito e desprezo ao quê? No século XVIII, quando - tudo bem, ninguém mais ia parar na fogueira, mas ainda dava pra pegar uma cadeia - dava merda mexer com a Igreja, era uma coisa com conteúdo ser desrespeitoso com religião, mas hoje em dia?

Bem, a Al Qaeda e seus consectários estão aí.

Eis a chance do sujeito mostrar que realmente acredita no que está dizendo. Que não é uma traquinagem vazia. Ou uma molecagem de adolescente tão inconsequente quanto arrotar alto. Ele quer decapitar figuras sagradas. Sua convicção estará à altura.

Claro que não.

Nos Estados Unidos tem gente explodindo clínicas de aborto e matando médicos aborteiros. Tem escola que ensina lado a lado criacionismo (ou "design inteligente") ao lado da teoria da evolução. E o cara quer combater isso decapitando Poseidon? Jesus e Buda nunca levantaram um dedo contra ninguém (está bem, Jesus saiu dando porrada nos vendilhões do templo. Teria também secado a figueira, mas se você, como eu, não acredita muito nessas histórias de milagres, não vai levar isso em conta). E Maomé fez o que pôde para mandar a mesma mensagem, dadas as circunstâncias, a época e o local em que viveu. Poseidon... bem, o destino dele está naquele filme.
Esses fanáticos religiosos muçulmanos estão dando a chance a artistas provocadores de mostrarem que são realmente provocadores e não apenas moleques mostrando que são espertos. Buñuel, em "A Via Láctea - o Estranho Caminho de São Tiago", mostrava como fazer um filme anticlerical. Jesus é mostrado como ingênuo e ele foi pesquisar heresias de várias épocas para ridicularizar os dogmas católicos ("Jesus está nessa hóstia como o coelho está nesse patê" é a minha preferida). Vai muito além do choque fácil. O choque fácil só tem repercussão e importância se o artista o sustentar contra qualquer força que se levante contra ele. Se à primeira ameaça ele foge da raia, qual o valor do que ele faz? Os adolescentes também, alguns anos depois, arrumam um emprego, casam-se e acomodam-se direitinho na mediocridade geral.

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1 comentário:

Anónimo disse...

necessario verificar:)