outubro 15, 2006

A Sétima Arte

Já ouvi muita gente dizendo que só gosta de filmes com boas histórias. E quando eles falam boas histórias, não querem dizer algo como LAURA (1944), mas algo como aqueles péssimos filmes franceses em que os personagens discutem banalidades horas como se estivessem falando coisas profundíssimas. Aliás, já que mencionei LAURA, certa vez estava discutindo esse brilhante título noir com a roteirista Leila Míccolis e uma menina ao lado ficou surpresa de gostarmos de um policial americano - filmes americanos são todos tão óbvios! Eu e a Leila tentamos explicar pra moça como o que NÃO é dito é muito mais importante do que os diálogos, mas acho que ela não entendeu.

O lugar ideal para alguém apreciar textos e diálogos profundos é a literatura. Você pode ler no ritmo que lhe for necessário para a compreensão do texto, pode parar para refletir e retomar a leitura, pode consultar uma enciclopédia ou um dicionário para aclarar certos pedaços, pode voltar várias páginas para relembrar uma cena, pode levar tanto tempo quanto quiser para chegar ao fim do livro, enfim, perfeito para longas elucubrações e detalhada e lenta construção. Já a arte do diálogo bem-escrito é o teatro. O teatro é baseado em ação, circunscrita por motivos óbvios em espaço, tempo e quantidade de personagens; o diálogo, portanto, é o tipo de ação que melhor se adapta a tais requisitos e a interação entre os personagens é a alma do negócio. Sutilezas, duplos sentidos, significados ocultos, jogos verbais de gato e rato, ironias, tudo isso tem como habitat natural o palco. Já o cinema, como o próprio nome diz, é a arte do movimento. Não pode ser contido numa caixa com uma imaginária quarta parede e nem numa arena. Fala direto à visão, o mais humano dos sentidos. E por isso mesmo é a arte que tem mais impacto, apesar de ser a menos condizente a um estudo em profundidade sobre qualquer coisa.

Se você perde o fio da meada numa longa discussão em cinema, não tem como voltar (tá, no DVD você pode, mas filmes não são construídos para serem vistos aos poucos e assisti-los assim costuma produzir um efeito completamente diferente de quando exibido de uma sentada). Há muitos anos atrás vi SOB O SOL DE SATÃ, vencedor do Festival de Cannes. O filme abre com uma longa discussão filosófica entre Gérard Depardieu e Sandrine Bonnaire, com câmera estática e visual escuro negando quase qualquer distração. Como tinha que ler as legendas, uma linha por vez, provavelmente com uma tradução não tão perfeita assim, e distraído por estar tentando agarrar a menina com quem tinha ido, em dois minutos já não fazia a menor idéia de sobre o quê eles estavam falando e assim passei a fita toda. Isso não é cinema. Filmes não podem durar mais do que duas, três horas, já que exigem imersão total do espectador e após esse tempo tornam-se cansativos. Não podem apresentar um narrador onipresente explicando as ações dos personagens ou a longa história de um lugar ou de uma pessoa. Em compensação, pode mostrar a ação. E conseguir um impacto emocional maior do que qualquer outra arte. Com a possível exceção da música.

A música é a mais primitiva das artes. Como não existe uma arte olfativa e nem táctil, a música é a que usa o sentido mais primitivo, a audição. Também é mais animal, já que não requer nenhuma codificação racional, não exigindo nenhum tipo de representação tipicamente humana - palavra, símbolo, a crença de que uma pedra não é uma pedra (escultura) ou a de que a pintura de um cachimbo é um cachimbo. E embora hoje usemos computadores e samplers para gravar canções, pode-se fazer música batendo num tronco de árvore, sacudindo folhas, ou simplesmente emitindo ar pela garganta.

Já o cinema é a mais tecnológica das artes. Desnecessário contar toda a aparelhagem e alta tecnologia envolvidas para capturar o movimento. Não há nada de natural nele. Desde a existência de apenas duas dimensões à falta de cheiro e tato, passando pelas cores irreais e distorções das lentes. No entanto, é a experiência mais REAL que a arte pode proporcionar. Spielberg e seus colegas podem levar multidões às lagrimas. Em compensação, quantas vezes você viu gente chorando ao ler um livro ou escutar uma canção? Pessoas gargalham à larga numa boa comédia, enquanto um genial texto humorístico pode lhe trazer um sorriso. Por quê?

Porque somos primatas. Porque somos os únicos mamíferos em que o sentido predominante é a visão. Enxergamos em cores e temos excelente senso de profundidade. Nossos ancestrais braquiavam pelas árvores, isso é, balançavam-se pelos galhos e cipós. Como os macacos fazem. Para isso eles tinham que manter os olhos fixos no caminho o tempo todo. Não podiam andar por aí olhando para ontem, como nós. Era preciso calcular a distância exata entre o galho em que estavam e o próximo. E eles não eram predadores - eram presas. Já que seu olfato diminuíra tanto, precisavam estar conscientes de qualquer movimento suspeito.

O cinema também conta com outras vantagens: reúne todo mundo numa sala escura, retirando-nos da realidade cotidiana para nos levar a outro mundo - e por isso assistir a um filme em casa raramente causa o mesmo impacto. Apesar de toda a parafernália tecnológica envolvida, vai direto aos nossos sentidos - não é mediado pela palavra, não precisa ser decifrado e interpretado. O grito desesperado do condenado à morte em CÉU E INFERNO pode ser compreendido em qualquer língua. Analfabetos podem compreendê-lo. Vale muito mais do que O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO À FORCA (Não me lembro se o título era esse e se era de Victor Hugo, Baudelaire ou Rimbaud, só lembro que era um romântico francês. Algum leitor sabe de qual livro estou falando?) inteiro.

E é por isso que cinema não pode ser julgado pelo lirismo dos diálogos ou pela força da história. A história só está ali para que sejam extraídas imagens dela. Que podem ser muito mais fortes do que seu ponto de partida. Vejam as histórias horrorosas ou manjadíssimas e melodramáticas demais por trás de grandes filmes como GUERRA NAS ESTRELAS, ERA UMA VEZ NO OESTE, POR ALGUNS DÓLARES A MAIS, PAIXÃO DOS FORTES, PAIXÕES QUE ALUCINAM, se comparadas com a solenidade e pomposidade de adaptações literárias de James Ivory e indagações pueris tentando se vender como profundas e provocantes, tais como STALKER e CINEMA FALADO (que chega a ter um sujeito declamando uns dez minutos Thomas Mann no original. Que chique!)

Cinema é a arte da imagem em movimento. Som é secundário. Ele viveu trinta anos sem som e poderia fazê-lo ainda hoje, se quisesse. Já um filme sem imagem é no máximo uma transmissão de rádio ou uma palhaçada. Esqueça o lirismo dos diálogos ou o quanto a história é complicada e difícil de entender. O que interessa são as imagens. Elas é que têm que fazê-lo pensar. Se você sonhar com o filme, é excelente sinal. Quando fui ver MAD MAX 2, lá nos anos 80, fi-lo porque precisava matar o tempo e não tinha mais nada passando. Eu era um adolescente entrando na faculdade de Jornalismo e queria ser inteligente, desprezando esses produtos culturais inferiores e apelativos. Rapaz, eu saí do cinema com vontade de quebrar algumas vitrines de loja. Não é à toa que filmes inferiores e apelativos até hoje o imitam. Foi um dos meus primeiros passos para esquecer meus preconceitos e entender o que faz de uma película um filme bom. E, para mostrar como uma fita tem que funcionar e como o que pode parecer uma bobagem inócua está cheia de sutilezas e propaganda subliminar para fazer sua cabeça, em breve postarei aqui uma análise de um dos mais inteligentes filmes dos anos 80: Robocop.

1 comentário:

Denise S. disse...

Mais ou menos. Quer dizer, discordo. Acho que do que mais me faz falta no cinema hoje é exatamente a falta de diálogos. Quando vejo um filme dos anos 40/50, fico encantada com os diálogos - sua inteligência, seu humor. Pudera, eram escritos por gente do cacife de uma Lilian Helmann (ela conta uma passagem em sua autobiografia sobre ficar esperando uma vaga na sala de datilografia de um estúdio em que trabalhava para datilografar seu roteiro). Hoje em dia é mto raro. Não que seja condição para um filme ser bom ter diálogos, mas é ótimo quando há.
Já percebi que há roteiristas bons de diálogos e outros nem tanto. Uma vez, fazendo um curso de roteiro, eu e um colega colocamos o professor contra a parede e descobrimos que há "dialoguistas". Acho que vc poderia ser um.