maio 06, 2024

Arte pela Arte

Quando eu fui visitar o meu compadre Zé no ano passado, tirei uma foto da praça central de Paraty bastante atraente. Melhor ainda ficou depois que acertei a perspectiva, com os lindos sobrados mostrando linhas paralelas. E mais ainda depois que, no editor do celular, cliquei num necessário, porém feio, latão laranja de lixo, e o apaguei, deixando a cena bucólica e simétrica. 





Fã de tecnologia que sou, mostrei o resultado final ao meu compadre e me preparei para uma nova captura da Procissão do Fogaréu com o fiel celular. Zé, então, com seu jeito contrariador dele, não resistiu a um comentário sobre a pretensa foto, “você sabe que isso não é real, não é?”. Ao que eu respondi, “cara, vou te contar um segredo. Fotos NUNCA foram reais”.


Também lá nos meus 22 anos, por causa de uma moça que estava querendo se tornar atriz, li um texto que ela me passou do curso que ela fazia com a Bia Lessa. Se não me engano, era Diderot, dizendo que o ator perfeito não participava da vida, apenas a observava nas outras pessoas para poder imitar como elas reagiam às emoções - uma ideia contraintuitiva face ao senso geral de que artistas devem viver intensamente para aprender sobre a natureza humana, conceito que o Stanislavsky codificou e fez a fortuna de muita gente, a começar pelo Lee Strasberg.


Eu me lembro de ter tentado explicar à Rita - esse era o nome da moça - que a vida não é um filme ou peça. Que um ator tinha que expressar em um único instante o que no dia a dia vemos espalhado por diversos momentos, entrecortados às vezes por diversas outras preocupações e alegrias rotineiras e mesquinhas. Ela concordou e me levou ao encontro com a Bia Lessa, mas quando ia vencer a timidez - eu nem sequer estava inscrito no curso, afinal -b ela mudou de assunto e começou a falar sobre o gato de Schrodinger, não me lembro por quê. Talvez porque física quântica estivesse em voga entre artistas na época, embora  não exatamente física quântica, só o conceito de que o observador altera o observado.





Eu podia ter explicado meu ponto de vista pra Rita - e até pra Bia Lessa - bem mais facilmente se me lembrasse das aulas do meu ótimo professor de português que, falando de arte moderna, mostrou aquele quadro do Magritte, A Traição das Imagens. É uma pintura de um cachimbo com a inscrição “Isto não é um cachimbo” (em francês, é claro). O Zé Paulo então, perguntou pros alunos por que aquilo não era um cachimbo e levou um bom tempo até alguém - não eu, snif - respondeu “porque é a pintura de um cachimbo”.


Porque arte não é real. Porque a realidade, apesar do que os reaças e fãs de Ayn Rand possam achar, é uma experiência subjetiva. Vivemos numa realidade virtual criada em nosso cérebro pelos nossos sentidos. Pessoas que nasceram cegas, ou perderam a visão muito cedo, quando voltam a enxergar têm que passar ainda muito tempo andando de bengala branca. Porque precisam aprender a entender o que estão vendo. Há casos inclusive de gente que recupera a visão, mas permanece na prática cega porque, como acontece com muita coisa que não aprendemos quando ainda jovens, eles não conseguem jamais conectar aquelas imagens que lhes chegam à mente com o mundo em que caminham.


Na semana passada, enquanto caminhava pelo Aterro, voltando a pé para casa como gosto de fazer, privilegiado (literalmente) que sou de morar na Zona Sul e trabalhar na Cidade, vi a lua nascendo, saquei o celular e tirei a foto abaixo. Há quase 40 anos tirei uma parecida, numa parada no interior da Bahia, numa viagem em ônibus de rua até Fortaleza. Pra isso tive que usar minha velha Exa IIA, que herdara do meu pai, bem como sua teleobjetiva de 200 mm (com mofo nas lentes). Dentro da câmera, um rolo de um dos primeiros filmes de grão tabular lançados pro consumidor final (embora na época eu nem soubesse o que era isso), um Kodak VR (não me lembro se 100 ou 200). Tive que improvisar suporte pra tele com uma pedra, apoiei a câmera num meio-fio e fiquei segurando o disparador, sem nem ao menos conseguir ver a cena, a não ser todo torto antes, por 10 segundos. 





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Como vocês podem ver, tirar uma foto dessas em 1984 exigia um equipamento caro (ou velho e herdado), conhecimento prático e teórico de fotografia, sorte e dedicação. Ficou tão impressionante e diferente que fiz um poster dela e está pendurado até hoje na minha sala. Quando cheguei no trabalho da loja que ampliou, que era do lado, uma colega também achou tão destacada que pediu o negativo pra fazer uma cópia. Já a versão 2024 exigiu apenas um (também valioso) telefone. Mas mesmo assim, apesar de todo o auxílio tecnológico, esse não é o elemento decisivo. Basta ver as duas imagens pra se perceber que tem alguém aí que GOSTA dessa composição.


Um amigo meu em rede social, quando começamos a postar as fotos da lua, como sói acontecer sempre que ela nasce avermelhada e ilusoriamente grande no horizonte, ao ver as minhas, comentou apenas que meu celular era muito bom e riu quando eu falei - é verdade, um tanto ironicamente - que o fotógrafo era melhor. Mas em qualquer momento de criação, pensado como arte ou não, existe uma série de escolhas. No caso dessas fotos, por exemplo. Quando a lua começou a nascer, dirigi-me imediatamente à foz do Carioca, porque sei que que o rio entrando na direção da terra providencia um melhor caminho aquático para o rastro luminoso selenita. Também é cercado por arbustos, que providenciam o verde para dar algum contraste na foto. E ainda foi preciso fechar a íris para que o céu não ficasse claro demais, mas não tanto que tirasse os arbustos da imagem. E escolher a lente e o enquadramento.


Diz uma anedota que um famoso diretor de cinema, compromissado com a adaptação para as telas de uma bem-sucedida peça, foi assisti-la. O também famoso diretor teatral, ao encontrá-lo, teria comentado “vocês de cinema são muito complicados. Se eu fosse filmar essa peça, eu poria a câmera numa poltrona e deixaria a encenação correr”, ao que o seu correspondente da sétima arte teria retrucado, “ah, certo… mas EM QUAL POLTRONA você poria a câmera?”


Se os editores fotográficos hoje geram cenas bem diferentes das registradas nos sensores, eles estão traindo quem? Quando eu olhava para o casario de Paraty, eu só via a beleza das casas. Minha mente nem registrava aquele latão de lixo laranja. Se estivéssemos na época das câmeras que não tiravam fotos noturnas sem ajuda de tripés e outros subterfúgios, eu a teria guardado na memória sem aquele latão e ela teria sido a verdade para mim e assim que eu a tentaria transmitir se, digamos, tentasse evocá-la numa pintura anos depois. Se é verdade que editores de imagem generativos e inteligências artificial podem danificar o fotojornalismo, são apenas mais e mais democráticas ferramentas para produção artística. Segundo meu amigo cineasta Zé José, antes do terceiro milênio, menos de 200 pessoas tinham dirigido um filme no Brasil. E então passou a ser digital.


Enquanto houver uma escolha a ser feita e um assunto sobre o qual se queira discorrer, arte vai continuar sendo uma inverdade, uma mentira, um engodo que nos envolve e nos emociona, com a qual sofremos, amamos e aprendemos a viver. Como a própria realidade, que existe para nós apenas em nossa mente e só a criatividade consegue transmitir a outro ser humano. Porque, em arte, a inverdade é a única realidade.