outubro 31, 2006

Jam Session

Meio de semana de férias, meio de verão em meio de caminho de viagem, meio de noite, noite de meio de fim de caso para David, apto e inepto, abrindo seu coração para as cervejas e cachaças e manjubinhas fritas no trailer esvaziado dominando do alto da grama a praia deserta.
A falta de Ana, a falta de gente da praia, mas o calor da noite de Lua cheia e ligeira tonteira de álcool e limão sobre peixe. Cálida melancolia em hora de abrigo, para David não era o melhor e nem o pior dos tempos.
Um homem, uma estranha figura que bebera apenas cachaça - ou teria sido água - o tempo todo desde o anoitecer, uma mesa um passo acima na grama e na mesa inclinada, cumprimentou o jovem a pensar na vida e na desamada e no que fazer nas noites desocupadas do restante das férias.
- Boa noite.
- Boa.
E silenciaram de novo.
- Comendo peixe?
- Adoro.
- Os peixes também.
- É mesmo? Aqui eles não costumam comer.
- Mas fazem na ponta da minha vara.
"Prefiro que o façam as mulheres"
- Você pesca?
- E caço. Adoro animais.
- Ainda bem que você não adora judeus.
- Mas onde mais você poderia ser tão animal a não ser caçando um bicho? A caçada é a coisa mais natural do mundo. E a pesca. Seus sentidos estão alertas. Seu corpo está alerta. Você sente a pulsação da terra e com isso sente todos os viventes que caminham sobre ela.
- Ou nadam.
- Ou nadam.
- Ou voam.
- Ou voam. E quando você pega um desses bichos, você está sendo ele, nem que por um minúsculo instante. Você pega o peixe e você é um tubarão nadando como um bólido. Um golfinho violento e irascível. Você captura o pombo e você é uma águia sobrevoando o chão lá em baixo. Um falcão impiedoso afundando-se em sangue e universo.
- Então você não deveria caçar falcões, tubarões e golfinhos?
- Não. Nós matamos para nos tornar os animais que queremos ser. Todos nós, todos temos um bicho que admiramos. O cachorro de estimação, o gato da casa. Todos queremos ser animais. Nós também somos viventes. Parte da terra.
Vivente. Ana. Vivendo por aí, vivendo mais do que ele, andando não com desconhecidos, mas com prestes a conhecê-la, ele cada vez menor no corpo e alma dela.
Mas o homem não o pensar, não o deixa lembrar, não o deixa afundar em pena de si mesmo (gostoso, ótimo de fazer em praia deserta e calma à noite) e pergunta, indaga, insiste.
- Se você fosse um bicho, que bicho você seria?
- Um homem.
A estranha figura levantou os olhos - escleróticas brilhantes no azulado da Lua - por baixo de sua cabeleira e sorriu - esmalte brilhante entre os lábios acinzentados pela noite - contente e desarmado.
Cada vez mais, até rir.
Uma (e somente uma) quase gargalhada. Gostosa e sonora.
- Um homem? Ha Ha!
E o David sorriu também.
- Uma coisa difícil. Conheci poucos que conseguiram.
e
- Afinal são poucos os que tentam. E menos ainda os que conseguem.
- Eu nunca disse que ia conseguir - o David.
E outra vez, o sujeito levanta a cabeça e sorri.
- Ha ha!
E olha David e
- E nem eu. - põe-lhe a mão no ombro. - Não poderia lhe dizer o que fazer. - Pára e
- E nem saberia - Termina enquanto já andando. A mão já pesa menos no ombro do David até que se solta quando ele já começa a deixá-lo para trás.
David se volta e vê a figura caminhando para o mato deixando rastros leves pela areia - rastros de alguém sem pressa, de passos curtos e tranquilos, rastros de animal saciado que não quer deixar pistas para outros.
E aí o David se cansa e vai caminhar mais um pouco pela brisa noturna.
O mar bate.
Os peixes acham que é uma superfície sólida e imutável.
Como bons animais que são.

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Jam Session

- Eu sei o seu segredo.
- De novo esse papo?
- Como assim, de novo?
- Eu não tenho segredos. Nada tenho a esconder.
- Então por que fica na defensiva?
- Me larga.
O Carlos desliga o telefone. Mas há algo de bastante estranho. Sua vida está bastante estranha. Sua casa está bastante estranha e até o café que ele anda tomando está bastante estranho.
Principalmente porque é chá.
E ele nunca comprou chá, então como o chá foi parar, pronto e preparado, em seu colo, enquanto ele atendia o telefonema de um estranho que sabia dizer o seu segredo?
Só havia uma explicação.
Este era o seu segredo.
O chá.
O bina! Talvez o bina tivesse o número de quem ligou e que poderia explicar o segredo do chá!
Então ele lembra que não tem o bina.
E que Obina era uma banda de world music nos anos oitenta. Obina Shok. Ou algo assim. E seu maior hit tinha o refrão Obina Obina Obina... Obina Obina Obina.
Eles cantavam em africano, mas eram brasileiros.
E africano não é exatamente uma língua, todos nós sabemos.
São várias. Mais dialetos. E outras formas de comunicação não-convencional que mal cabem em nossa ocidentalizada mentalidade.
Porque temos as nossas próprias comunicações não-verbais.
O que mais aquele telefone teria comunicado secretamente, não-verbalmente, intrinsecamente?
Ele precisava adivinhar.
O chá!
Adivinhar!
O chá!
Adivinhar!
O chá!
Adivinhar!
O chá!
Isso! Adivinhos liam o futuro nas folhas de chá na xícara.
Mas as folhas de chá estavam no saquinho.
Como os adivinhos faziam?
Se ele ao menos soubesse.
Se ao menos soubesse o seu segredo, que aquele misterioso interlocutor sabia, ele saberia.
Mas ele não sabia.
Não sabia nem como voltar pra casa.
Porque aquela não era a casa dele.
Ele tinha certeza.
Então ele pousou a chávena de chá perto do samovar de prata czarista, vestiu-se, cobriu o cadáver da bela e jovem mulher nua ao seu lado na cama e saiu.
E o dia mal começara.

Meus Poemas Favoritos - UNWANTED, de Edward Field

The poster with my picture on it
Is hanging on the bulletin board in the Post Office.
I stand by it hoping to be recognized
Posing first full face and then profile

But everybody passes by and I have to admit
The photograph was taken some years ago.

I was unwanted then and I'm unwanted now
Ah guess ah'll go up echo mountain and crah.

I wish someone would find my fingerprints somewhere
Maybe on a corpse and say, You're it.

Description: Male, or reasonably so
White, but not lily-white and usually deep-red

Thirty-fivish, and looks it lately
Five-feet-nine and one-hundred-thirty pounds: no physique

Black hair going gray, hairline receding fast
What used to be curly, now fuzzy

Brown eyes starey under beetling brow
Mole on chin, probably will become a wen

It is perfectly obvious that he was not popular at school
No good at baseball, and wet his bed.

His aliases tell his history: Dumbell, Good-for-nothing,
Jewboy, Fieldinsky, Skinny, Fierce Face, Greaseball, Sissy.

Warning: This man is not dangerous, answers to any name
Responds to love, don't call him or he will come.


Livre Tradução Minha:

O cartaz com meu retrato
enfeita o quadro de avisos dos Correios

Paro ao lado dele esperando ser reconhecido
Posando de frente e depois de perfil

Mas todo mundo passa sem ver e tenho que admitir
A foto foi tirada já faz alguns anos

Eu já não era procurado então e ninguém me procura hoje em dia
Acho que vou gritar e ouvir o eco nas paredes de minha solidão

Gostaria que alguém encontrasse minhas digitais em algum lugar
Talvez num cadáver e dissesse, "é ele"

Descrição: Sexo masculino ou bem perto
Branco, mas normalmente vermelho de vergonha

Por volta de trinta e cinco e aparentando talvez até mais
Um metro e setenta e sessenta quilos: físico nenhum

Cabelos negros embranquecendo e rareando rapidamente
Costumavam ser cacheados, estão cada vez mais apenas desgrenhados

Olhos castanhos sob cenho inexpressivo
Gordura no queixo, provavelmente vai virar uma papada

É perfeitamente óbvio que ele era impopular na escola
Não jogava bola e molhava sua cama

Seus apelidos contam tudo:
Bobão, Imprestável, Judeuzinho, Trautemberg, Fiapo, Feioso, Marica

Atenção: O elemento não é perigoso e responde quando abordado
Vulnerável ao amor; não o chame ou ele virá


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outubro 30, 2006

Tudo que existe
É um chiste
Pensou o rimador
Imerso em sua dor

Poesia sem Título

Há vida
Ávida
Em meus porões

Um louco acorrentado grita
"Deixe-me sair, tolo, você não sabe
o que está perdendo"

Mas eu nem levanto os olhos do jornal encostado no balcão do bar
Para ver a monumental morena passando requebrando
E nem noto nela os vestígios dos grilhões arrebentados


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Meus Poemas Favoritos: Um Aviador Irlandês Prevê sua Morte

Eu sei que vou encontrar meu destino
Lá em cima nas nuvens em algum lugar
Aqueles que combato não odeio
Aqueles que defendo não amo
Minha terra é Kiltartan Cross
Minha gente, os pobres de Kiltartan
Nenhum fim que eu tivesse os entristeceria
Ou os deixaria melhores do que estão agora

Nem o dever nem a lei me fizeram lutar
Nem multidões delirando nem políticos discursando
Um solitário impulso de deleite
Levou-me a este tumulto nas nuvens

Eu pesei tudo, pensei em tudo
Os anos por vir me soaram vazios
Vazios os anos passados
Em comparação com esta vida
Esta morte

de William Butler Yeats, livre tradução de mim mesmo. Eis o original, obviamente infinitamente mais eufônico:

I know that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above
Those that I fight I do not hate
Those that I guard I do not love

My country is Kiltartan Cross
My people, Kiltartan´s poor
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before

Nor duty nor law made me fight
Nor public men nor cheering crowds
A lonely impulse of delight
Drove me to this tumult in the clouds

I balanced it all, brought all to mind
The years to come seemed waste of breath
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death

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Fanáticos Religiosos Podem Ser Bons Críticos de Arte

Lá na Alemanha, não sei se vocês leram, cancelaram uma peça de um diretor de vanguarda por medo de atentados de radicais islâmicos durante a apresentação. A peça mostrava Jesus, Maomé, Buda e Poseidon sendo decapitados, para mostrar, conforme seu criador explicou, seu desprezo pelas religiões.

É claro que virou mais tópico do debate sobre o radicalismo muçulmano, sobre o cerceamento da liberdade de expressão e sobre o medo que o terrorismo islâmico está conseguindo impor ao mundo. Vivendo no Rio de Janeiro, já vi uma mulher tentar largar o carro em pânico num sinal fechado porque viu um garotinho vindo em sua direção para vender bala e ela interpretou errado, bem como um outro garoto roubar a carteira de um sujeito crescido e vitaminado simplesmente chegando na janela do automóvel parado no cruzamento e dizer que era um assalto.

Também já sofri uma tentativa de assalto em sinal fechado. Estava com uma garota, que dirigia, o Maciel, de 60 anos, no banco da frente, e eu atrás. Um adolescente manco e mal-vestido, comendo com a mão arroz e farofa de uma quentinha, chegou na janela do Maciel e disse, juro, com a mesma entonação daquele pessoal vendendo bala em ônibus: "não-quero-sua-vida-nem-seu-carro-apenas-sua-carteira-e-sua-bolsa-e-nada-mais". O Maciel fechou o vidro e o sinal abriu, deixando-nos pensando se ele tomaria nossa vida enfiando a quentinha em nossa cara e sufocando-nos com farofa. Mas, se ele tenta isso é porque em algum lugar alguém está entrando em pânico e entregando a carteira, pra evitar complicações. Outra ridícula tentativa de roubo foi sofrida por minha irmã, quando um pivete parou-a e disse prela entregar a bolsa ou o primo dele, que estava escondido, iria atirar nela, ao que minha irmã respondeu que ela não ia dar a bolsa porque o tio dela estava atrás do primo dele, apontando uma arma pra ele.

Mas conheço gente que teria entregue a bolsa. E o Ocidente vem entregando tudo assim, na maior. Medrando geral. Mas não é este o ponto que me interessa. Nesse caso em questão da decapitação dos líderes religiosos, os fanáticos assassinos muçulmanos estão na verdade fazendo um favor ao artista. Estão lhe dando a chance de realmente ousar.

Eu não gosto muito de SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS. É um filme extremamente bem-feito por pessoas talentosas, mas que atira contra alvos fáceis e tenta se passar por mais profundo e revolucionário do que realmente é. Mas tem uma cena que eu realmente aprecio. Está tendo uma missa ou algo parecido, bem solene, na igreja, e um telefone começa a tocar. Um dos alunos do Robin Williams levanta com um telefone de brinquedo e diz "ei, reitor, é um telefonema de Deus". Ele finge um pouco ouvir alguém no fone e completa: "e ele está mandando admitir garotas no colégio".

Obviamente ele vai parar no gabinete do diretor e recebe a visita de Robin Williams, a óbvia má influência no adolescente. O garoto fica feliz quando o professor chega e claramente espera a aprovação dele, mas o mestre explica que ele vem tentando ensinar seus alunos a ousarem, não a fazerem simples molecagens. O que o moleque fez foi uma travessura, uma malcriação, não uma ousadia. O homem mais velho se levanta e vai saindo após deixar o jovem um tanto desapontado. Quando está abrindo a porta, não resiste a comentar: "um telefonema de Deus, hein? Engraçado. Tinha que ser a cobrar. ISSO seria ousadia".

Qual a diferença? Ora, a primeira foi apenas uma brincadeira. Um desrespeito a um ritual, para se mostrar engraçado e, visivelmente, para impressionar os colegas e o professor que o garoto idolatrava. A segunda cortaria muito mais fundo. Poderia levar a uma reflexão sobre os verdadeiros ideais da igreja e a milionária religião organizada. Além, é claro, de exigir muito mais coragem, por ser um questionamento muito mais ofensivo e profundo. ISSO seria uma ousadia, não seria só se mostrar mau para os amiguinhos.

E assim voltamos para o decapitador de messias. Para grande parte da população, a religião é tudo que eles têm. Tudo mesmo e justamente por isso tem gente que é tão fanática e quer voltar ao século XII. É muito fácil você ser MUITO emotivo quanto à coisa mais importante em sua vida. Pra grande parte desse povo, a idéia religiosa deles é relativamente rasteira - Deus (ou Alá, ou o Bodissátiva da vez) é uma espécie de super-herói que mora no Céu e ajuda os fracos e oprimidos que estão do lado dele. E ele sabe quem é bom e quem é mau, incluindo entre estes últimos os que não lhe prestam a devida homenagem. Ou seja, mais para um Papai Noel onipotente do que para a força vital que anima cada partícula do universo, mas realmente não dá para você ter uma grande iluminação sem ter o que comer (aliás, essa foi uma das grandes descobertas de Sidarta Gautama, o Buda que fundou o budismo. É, porque tem outros budas também, mas essa é uma longa história) e a idéia subjacente é correta, se algum dia você progredir espiritualmente. É como ensinar à gente no ginásio a física newtoniana, que já está ultrapassada, ou aquele átomo errado, com os elétrons orbitando elipticamente em volta do núcleo. Não é exatamente o certo, mas você não vai precisar saber mais do que isso a não ser que o assunto realmente lhe interesse.

É claro que o mundo ocidental está bastante secularizado. A Europa mais ainda. A naturalidade deles em deixar a namorada gostosa conversar nua na praia com um amigo heterossexual ainda não me subiu à cabeça, mas deixemos isso pra lá. De qualquer forma, o público que você espera que vá a uma peça de vanguarda na Alemanha será muito mais materialista do que religioso. Ou, se religioso, muito mais provável de pertencer a alguma corrente mística alternativa do que a uma religião tradicional organizada. Muito possivelmente terá uma meia dúzia de praticantes de adoradores do deus cornudo, um culto que eu não posso deixar de pensar que está na moda porque adorar o diabo, mesmo que explicando que "diabo" era o disfarce que a igreja católica inventou para execrar o antigo deus da fertilidade e da criação, mostra o quanto o sujeito é alternativo e acima da mediocridade geral.

Enfim, o que o diretor moderninho estava querendo fazer nada mais era do que mostrar desrespeito e desprezo. Nada a acrescentar. Mas desrespeito e desprezo ao quê? No século XVIII, quando - tudo bem, ninguém mais ia parar na fogueira, mas ainda dava pra pegar uma cadeia - dava merda mexer com a Igreja, era uma coisa com conteúdo ser desrespeitoso com religião, mas hoje em dia?

Bem, a Al Qaeda e seus consectários estão aí.

Eis a chance do sujeito mostrar que realmente acredita no que está dizendo. Que não é uma traquinagem vazia. Ou uma molecagem de adolescente tão inconsequente quanto arrotar alto. Ele quer decapitar figuras sagradas. Sua convicção estará à altura.

Claro que não.

Nos Estados Unidos tem gente explodindo clínicas de aborto e matando médicos aborteiros. Tem escola que ensina lado a lado criacionismo (ou "design inteligente") ao lado da teoria da evolução. E o cara quer combater isso decapitando Poseidon? Jesus e Buda nunca levantaram um dedo contra ninguém (está bem, Jesus saiu dando porrada nos vendilhões do templo. Teria também secado a figueira, mas se você, como eu, não acredita muito nessas histórias de milagres, não vai levar isso em conta). E Maomé fez o que pôde para mandar a mesma mensagem, dadas as circunstâncias, a época e o local em que viveu. Poseidon... bem, o destino dele está naquele filme.
Esses fanáticos religiosos muçulmanos estão dando a chance a artistas provocadores de mostrarem que são realmente provocadores e não apenas moleques mostrando que são espertos. Buñuel, em "A Via Láctea - o Estranho Caminho de São Tiago", mostrava como fazer um filme anticlerical. Jesus é mostrado como ingênuo e ele foi pesquisar heresias de várias épocas para ridicularizar os dogmas católicos ("Jesus está nessa hóstia como o coelho está nesse patê" é a minha preferida). Vai muito além do choque fácil. O choque fácil só tem repercussão e importância se o artista o sustentar contra qualquer força que se levante contra ele. Se à primeira ameaça ele foge da raia, qual o valor do que ele faz? Os adolescentes também, alguns anos depois, arrumam um emprego, casam-se e acomodam-se direitinho na mediocridade geral.

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outubro 22, 2006

E-mail a um amigo explicando meu voto

Não, Sílvio, eu nunca gostei do PT, desde os tempos de faculdade, quando os petistas todos odiavam a gente e eu já discordava de suas atitudes paternalistas e messiânicas. Não gosto do Lula e acho o atual governo equivocado na política econômica e corrupto. Temer que eles assumam uma postura totalitária é paranóia de maluco, já que o exército continua sendo conservador e reacionário e, como já visto, nem a PF é controlada por eles. Totalitarismo sem controlar forças armadas é impossível.

Eu vou votar no Lula porque discordo da visão do mundo de von Mises e não acredito que o capitalismo selvagem e desenfreado seja a resposta pra tudo. Essa é a visão encampada pelas grandes empresas e pela mídia. Se eles dominarem também o governo, não se importarão a mínima mais com nada, vão se achar de vez os donos de tudo e impor esta visão. Estou de saco cheio de ouvir falar que qualquer mínima politica assistencialista ou preocupação social é um avanço no bolso alheio, uma invasão de privacidade e caminho certo para uma ditadura sanguinária. Estou de saco cheio de darwinismo social pregando que os fracos que se fodam. Uma vez você me falou que eu não gostava de cultura corporativa por nunca ter trabalhado numa grande corporação, mas note que justamente os três caras com essa visão neoliberal na Panelinha são justamente três filhos de donos de empresas. Eu vou votar no Lula preles verem que existem alternativas a eles, por mais que a política econômica seja neoliberal, e que eles ainda não controlam os corações e mentes de todo mundo. Simples assim.

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outubro 19, 2006

Férias em Itacaré






Os cinco melhores filmes de psicopata assassino de todos os tempos

1. M, o Vampiro de Dusseldorf (1931)
Direção de Fritz Lang, roteiro de Thea von Harbou e Fritz Lang.
Com Peter Lorre e Otto Wernicke.


O filme que criou o psicopata assassino que iria dominar o cinema até Hannibal Lecter. Em vez de um monstro furioso e poderoso, um sujeito tímido e reprimido. Pequeno e vulnerável, é tão desprezível e presa de seus fantasmas que quase causa pena. Peter Lorre encarna a primeira aparição dessa personagem no cinema de forma tão intensa e emocional que até hoje ainda é imitado (e, como sói acontecer, nunca superado). Soa inacreditável que depois de passar o dia todo filmando como o matador pedófilo de forma tão apaixonada, quando dava sete horas Lorre saía e ia para o teatro onde fazia uma comédia. Em volta dessa soberba atuação, Fritz Lang, em sua primeira fita sonora, experimenta e usa o som como mecanismo linguístico e não mero acessório - as vozes da multidão discutindo, o grito da mãe da primeira vítima e, é claro, o assovio que identifica o criminoso, de quem nunca se via o rosto, outro recurso que em breve viraria clichê. Usando a iluminação expressionista com negativo pancromático retratando uma ambientação urbana contemporânea, recheada de criminosos e policiais sem glamour, Lang também dá a partida estilística para o filme noir americano.

Um dos maiores clássicos da sétima arte.

Disponível em DVD.

2. Mórbida Curiosidade - também conhecido como A Tortura do Medo (Peeping Tom) 1960
Direção de Michael Powell, roteiro de Leo Marks.
Com Carl Boehm, Anna Massey, Moira Shearer.

Michael Powell fez durante a II Guerra um filme de propaganda anti-nazista que conta... a epopéia de um bando de nazistas tentando fugir do Canadá! O conteúdo propagandístico esperado está lá e chega a envergonhar os espectadores de hoje em dia, mas, mesmo sendo os alemães retratados como bestas sanguinárias, fica patente o interesse (clínico, não confundir com admiração) do cineasta pelo tenente fugitivo, um pretenso super-homem, nobre e coerente em sua perfeição ideológica tão equivocada. Ao final da história, depois de muito desdenhar a imperfeição da democracia, ele é capturado justamente por acreditar na perfeita rigidez de suas leis e ele acaba enganado e tratado como uma mercadoria e não um ser humano (!!!)
Em Mórbida Curiosidade a busca da obra de arte perfeita leva o assistente de câmera Mark Lewis a assassinar mulheres enquanto as filma olhando para o reflexo de sua própria morte no espelho. O instrumento de matança é um estoque escondido no tripê de sua câmera. A fita questiona todo o componente doentio que existe na apreciação artística, principalmente do cinema (veja o post sobre cinema - http://arsgratiars.blogspot.com/2006/10/stima-arte.html) e não poupa ninguém, nem os espectadores. Por isso o filme acabou com a carreira dele e foi um fracasso crítico e comercial, sendo resgatado só nos anos 80 por Martin Scorsese.

Sem nenhuma invenção ou papagaiada cinematográfica que nos lembre que estamos apenas assistindo a um filme, Powell usa os recursos do cinemão contra as próprias convenções (os planos subjetivos fetichistas, examinando pernas de fora de mulheres e casais se agarrando; a modelo com a cicatriz no rosto, os diversos personagens que exclamam que vão ficar famosos quando frente a frente com a câmera de Mark) ou de forma tão intensa que faz com que pareça absurdamente chocante um pai dando a um filho uma câmera de presente ou profundamente obsceno que uma garotinha compre chocolate numa loja.

Repleto de elipses, alusões, duplos sentidos, ironias e auto-referências, o filme não desperdiça um fotograma ou uma vírgula de diálogo - tudo reforça, reflete ou comenta algum aspecto da história. Ainda tem momentos de pura linguagem cinematográfica, como nesta cena, em que o assassino recebe a visita da mãe cega de sua quase namorada, justo quando assiste ao filme de seu último crime. O que está projetado na tela é o rosto da vítima e o que está projetado nas costas de Mark é uma caveira (note que ela não tem olhos), reforçando a idéia de que ele é um vampiro, um anjo da morte sanguessuga:

Mórbida Curiosidade costumava frequentar as madrugadas da Globo nos anos 80 e 90, de onde eu gravei uma fita que gastou com o tempo. Também foi lançado em VHS, primeira chance que tive de vê-lo com o som original, e rodou há alguns anos o Telecine Classic (hoje Telecine Cult). Em DVD não tem nem previsão de lançamento, já que é uma fita obscura e pouco conhecida. Se você tiver uma conexão de banda larga e um programa de download de torrents, pode baixar do seguinte endereço:

http://www.isohunt.com/download/14352306/peeping+tom

E assistir em widescreen e som original sem legendas. Você pode baixar a transcrição dos diálogos em inglês do site www.transcripts.com. Vale a pena.


3. Psicose (Psycho) 1960
Direção de Alfred Hitchcock, roteiro de Robert Bloch e Joseph Stefano.
Com Norman Bat... digo, Anthony Perkins, John Gavin, Janet Leigh e Martin Balsam.


Família, dinheiro, sexo. Os ícones do ocidente capitalista são virados de cabeça pra baixo neste filme apropriadamente sobre um psicótico. Quando não se pode confiar nem na sua mãe, como encontrar algum sentido no mundo?

Psicose saiu pouco depois de Mórbida Curiosidade e tem vários pontos de contacto com o clássico inglês, mas o velho Hitch entendia de como ganhar dinheiro e suaviza a subversão da história o suficiente para fazer montes e montes de grana com a fita. Ainda assim constrói outro clássico do cinema, montando o filme como uma blitzkrieg, passando o tempo todo deixando o espectador fora de equilíbrio e desorientado, alinhando uma quebra de conceito e de convenções atrás da outra, sem saber de onde virá a próxima surpresa.

A mocinha é amante de um homem casado (o que equivalia a vagabunda nos EUA de 1960) e ladra; com meia hora de exibição ela morre; o sujeito por quem ela parecia estar se apaixonando, começando uma relação que a redimiria participa da ocultação do cadáver (e depois é revelado como o verdadeiro assassino); o detetive durão contratado para descobrir o assassino dura dez minutos antes de ser assassinado de forma completamente ingênua; a dedicada e velha mãe americana é uma matadora impiedosa (e no final nem é a mãe). Somando isso tudo à chocante (para a época) descrição gráfica do esfaqueamento de Janet Leigh e do investigador, a platéia ficava com os nervos transformados em gelatina.

O final, como todo mundo sabe, apesar do cartaz pedindo para que se mantivesse segredo dele, revela que Bates é o Filho Que Matou a Mãe (como a piada diz que a fita se chamou em Portugal) e mostra uma perfeita (e aterradora) metáfora visual para sua psicose: o esqueleto mumificado da progenitora num porão vazio iluminado por uma enervante lâmpada onipresente. Não somos forçados, como em Mórbida Curiosidade, a nos identificar com o assassino - aliás, só no final sabemos que aquele rapaz simpático é um matador - e não nos sentimos como se tendo nossas perversões íntimas expostas, uma das razões pelas quais o filme de Michael Powell acabou com a carreira dele e Psicose reavivou ainda mais a de Hitchcock.
Disponível em DVD da Coleção Hitchcock.


4. O Silêncio dos Inocentes (Silence of the Lambs) 1991
Direção de Jonathan Demme, roteiro de Thomas Harris e Ted Tally.
Com Anthony Hopkins, Jodie Foster, Scott Glen e Ted Levine.


M criou o psicopata assassino assombrado pelos seus fantasmas. O Silêncio dos Inocentes criou o psicopata assassino que domina o cinema de hoje - o que assombra, aterrorizante como um fantasma,o mundo normal.

Hannibal Lecter aparece pela primeira vez na prisão para psicopatas do FBI - Jodie Foster vai descendo por corredores cada vez mais sombrios e sujos, com celas cada vez mais sombrias e sujas, guardando homens cada vez mais sombrios e sujos, barbados e piolhentos. Quase no fim dessa descida ao inferno, um dos prisioneiros esporra nela. E finalmente ela chega ao pior deles. Um sujeito perfeitamente limpo, habitando uma cela clara, límpida e perfeitamente arrumada, com estantes com livros e desenhos e pinturas revelando talento artístico. O terror definitivo.

O Silêncio dos Cordeirinhos é o título original e a fita mostra exatamente como Lecter, sendo um titã mental, recusa-se a aderir aos opressivos padrões da normalidade que dão a uma elite de patrícios direito de vida e morte a nós, pobres mortais, como mostrado na metáfora visual em que o assassino psicopata é amarrado e amordaçado para conversar com a poderosa política em busca da filha.

Mas é aterrador viver fora dessa normalidade. Os agentes do FBI aceitam-na de bom grado - na sequência de abertura, há um cartaz na pista de treino do Bureau avisando que "Nós gostamos de sofrer" e o treinamento de Jodie Foster é ficar segurando um escudo enquanto leva porrada de agressores sem rosto. Ela não reage. "Búfalo" Bill, o psicopata que realmente está matando gente na película, sonha em juntar-se ao mundo normal, mas ele é um predador, um matador que não se conforma aos padrões e portanto precisa ser castrado, perder seu membro viril, seu falo criador. Ele não só precisa dessa castração como a almeja açodadamente e seu animal de estimação é um poodle. Que parece um... cordeirinho. E, como tal, é usado friamente como objeto de barganha pela filha da senadora, também integrante do patriciado.

Original, inquietante e com soberbas atuações, O Silêncio dos Inocentes criou todo um novo gênero policial e ressuscitou a carreira do grande Anthony Hopkins, que interpretou muito alemão nazista nos anos 70, quando ainda se fazia filme de II Guerra. Entre seus muitos momentos de brilhantes metáforas visuais está a fuga de Lecter da prisão, quando usa a pele esfolada do rosto do policial como disfarce e, dentro da ambulância, levanta-se para devorar o guardinha. O literal lobo em pele de cordeiro.

Todo mundo sabe que está disponível em DVD.


5. Caçador de Assassinos (Manhunter) 1986
Direção de Michael Mann, roteiro de Thomas Harris e Michael Mann.
Com William Petersen, Joan Allen, Brian Cox e Dennis Farina.

Esta é a primeira versão do horroroso Dragão Vermelho. Michael Mann vivia o apogeu e glória do seriado que criara, Miami Vice, e resolveu filmar o romance de Thomas Harris. Pela primeira vez Hannibal Lecter apareceria na tela grande, interpretado por Brian Cox, numa versão menos racional e mais tentadora (no sentido Lúcifer tentando Cristo) do psicopata.

Sendo um filme dos anos 80, é mais liberal e compreensivo com seu psicopata assassino do o Dragão Vermelho do século XXI. Enquanto Ralph Fiennes imita novamente na película mais recente o Peter Lorre de M, adicionando apenas um gosto por malhação, no filme de 1986 o assassino é mais funcional socialmente e sua psicose não é o "mamãe-me-bateu-e-reprimiu-e-me-assombra-até-hoje" clichê típico, sendo sua loucura enraizada em profundas neuroses similares às nossas e, por isso mesmo, muito mais assustadoras. A cena da sedução da cega, em que ele mostra sua falta de traquejo social enquanto tenta ser um anfitrião perfeito, assustado com aquela presença feminina, despertou incômodas reminiscências do meu próprio comportamento quando em presença de mulheres tão desejadas, tão maravilhosas demais pro meu caminhãozinho, e ainda assim dispostas a serem seduzidas, que chegava a dar medo.

Essa abordagem é muito mais crível do que a do filme mais novo. É difícil imaginar que ninguém do trabalho de Ralph Fiennes tivesse reparado que ele era completamente pirado ou mesmo que ele tivesse um amigo no zoológico que deixasse a cega acariciar o tigre. Em Caçador de Assassinos o maluco tem seus surtos psicóticos e assassinos e depois sente-se saciado e pode funcionar socialmente, ainda que precariamente. Seu relacionamento com a cega é terno e até mesmo nós, espectadores, temos esperanças de que seja redentor. Mais ainda, a cena de sexo é romântica e bonita, é implícito que a cega tem uma vida sexual ativa e vai dar pro sujeito porque gostou dele. Em Dragão Vermelho, o relacionamento é pouco gratificante para ambos. Não há beleza alguma quando a mulher, pouco atraente e por isso inclinada a se relacionar com o óbvio maluco, se abaixa para pagar um boquete. Típico do atual clima moralizante do cinema americano contemporâneo, a sensação que se tem com o desenrolar da história, quando ela é perseguida pelo assassino, é a de que está pagando por manter relações sexuais fora do casamento.

E, é claro, tem o estilo. Manhunter explora cores berrantes e falsa, enquadramentos pouco usuais e aproximações indiretas à história, o que faz todo sentido num filme sobre visões distorcidas do mundo que começam a contaminar o investigador, aspecto muito falado em Dragão Vermelho e pouco explorado cinematograficamente. Não sendo uma produção caríssima, não há necessidade de uma longa cena de luta no final, para a qual se exige uma esticada completamente inverossímil da história. Não tem o Anthony Hopkins, é verdade, mas ainda assim é um belo filme.

Disponível em DVD.

Filmes que ignorei nesta lista: Halloween, por ser mais filme de terror do que de psicopata assassino; Sei Donna per um Asesino, de Mario Bava (o filme que faz o toureiro de MATADOR, do Almodóvar, se masturbar na abertura), pelo simples fato de que não vi.

Esqueci de algum clássico? Se você quiser fazer algum comentário e não quiser se associar ao www.blogger.com só pra isso, faça-o no espelho deste blog, em www.urublog.blig.com.br

outubro 15, 2006

Pandemônio

O novo mercado emergente é o Inferno, desde que se abriu uma passagem interdimensional e descobriu-se que os demônios eram gente como a gente, mas evoluíram a partir do fogo e não da água e da terra como nós. Essa seria a cena de abertura de uma peça sobre o assunto, mas logo provou-se impraticável contar essa história num palco (com baixo orçamento, como sói acontecer com minhas peças). Está arquivada para futuro romance ou roteiro:

uma mulher e um demônio quase humano conversam no escritório dele. paulo chega durante a conversa e fica em pé, num canto, olhando, após cumprimentar com um aceno de cabeça ao ente sobrenatural.
mulher
Como assim, você não pode dar um jeito?

ashalzas
Pactos de sangue não podem ser modificados assim. É preciso energia...

mulher
Mais do que eu já te dei? Você tem idéia do trabalho que custou?

ashalzas
Sim, eu sei, mas eu também tive muito trabalho. E sem o nível de energia adequado, não podemos modificar o que foi pactuado...

mulher
O que foi pactuado é que você ia me dar muita beleza! Não essas gorduras localizadas! Esses peitos enormes, ainda ficou um maior do que o outro! Será que no Inferno vocês não tenham idéia do que seja uma mulher bonita?

ashalzas
Sim, temos, faz parte do currículo demoníaco estudar as obras de Rubens e Rafael...

mulher
Que Rubens e Rafael o quê! Nunca ouvi falar! Vocês têm que saber é de Casablancas, Lagerfeld, isso é que importa! Rubens e Rafael! Isso lá é nome de estilista! Eu quero minha alma de volta! Droga, eu devia é ter feito uma cirurgia plástica, mas minhas amigas falaram tanto que aqui eu ia poder guardar o dinheiro...

ashalzas
Magia não é uma ciência exata, senhorita. E, na verdade, a senhorita só me forneceu 50% de uma alma e ainda assim não era sua...

mulher
Claro que é minha! O Clôdinho fala o tempo todo que me ama tanto, que é coisa de espírito, claro que é minha! Não me vem de papo não! Você vai ter que acertar isso! Onde eu vou arrumar um desfile com essas ancas moles que você me arrumou?

ashalzas
Estes pactos de sangue não deveriam ser feitos por motivos tão frívolos...

mulher
Que que você queria que eu fizesse? Eu já tinha um monte de homem atrás de mim, eu não precisava de mais nada, agora é que eu preciso, até o Clodinho já me perguntou porque que eu parei a ginástica! Isso não pode ficar assim! Eu quero o meu corpo de volta, do jeito que era, junto com a alma do Clodinho, ou então eu quero que você faça tudo certinho!

ashalzas
Senhorita, o pacto não especifica...

mulher
O pacto não especifica nada, mas eu já falei com o meu advogado! Uma vez que foi com o meu sangue que assinei, o padrão de beleza que deve ser usado deve ser o meu! E como a alma não era de quem assinou também, o pacto pode ser cancelado...

ashalzas
A senhorita tem advogado? Peça para ele falar com o meu...

mulher
Você tem advogado?

ashalzas
Todos os demônios têm um. Eles não vêem problema em trabalhar conosco, não têm alma a perder mesmo...

mulher
O meu é muito bom... e você sabe como são os juízes aqui... eles odeiam demônios... acho bom você pensar bem no meu caso...

ashalzas
(SUSPIRANDO) Eu não posso fazer nada sem consultar o meu advogado. Vou ver o que pode ser feito. Mas os níveis de energia andam muito baixos... talvez com uns 10% de alma a mais...

mulher
Nem um pouco. Eu vou precisar de tudo que sobrou da alma do Clodinho daqui a uns dez anos...

ashalzas
Está bem, está bem. Eu vou consultar o meu advogado. Ligar-lhe-ei amanhã, pode ser?

mulher
É bom que ligue. Ou um oficial de justiça irá trazer um bilhetinho meu depois. Boa tarde. (SAI)

paulo olha para ashalzas, sorrindo e senta-se.

paulo
Pactos de beleza, Ash? Você sabe que isso é proibido. A associação dos cirurgiões plásticos pode pedir a tua extradição...

ashalzas
Antigamente era o modo mais fácil de se conseguir uma alma... hoje em dia fica difícil, o que pode um demônio saber o que as mulheres querem? Damos-lhe o corpo das mais belas musas renascentistas e elas reclamam...

paulo
O problema de demônios não terem sexo é essa incompreensão da cabeça das mulheres...

ashalzas
Fossem os homens capazes de entendê-las e o Inferno seria bem mais vazio... veja só, essa queixosa roubou a alma do namorado e ainda vem reclamar...

paulo
Roubou? Como, roubou? Tirou da carteira dele enquanto ele estava dormindo?

ashalzas
Não, deitando com ele. Ensinei-lhe alguns rituais tântricos. Ela não queria arriscar a alma dela - e nem eu acho que valha grande coisa. Uns movimentos, umas invocações, uns rituais e - voilá! - lá se vai um pedaço da sua alma com a sua ejaculação.

paulo
Mais um motivo pra se usar camisinha...

ashalzas
Não ia adiantar nada, somente se um homem santo a consagrasse. E não creio que um homem santo faria isso.

paulo
A maioria das pessoas também não criaa em demônios e anjos...

ashalzas
É que nós não existíamos... sabe, você deveria tentar algum dia... dizem que um orgasmo com dreno de alma é inesquecível...

paulo
Eu não faço questão. Se eu pudesse me lembrar com detalhes dos meus orgasmos sempre que quisesse, eu não iria querer mais fazer sexo...

ashalzas
Faz sentido... De qualquer maneira, deve ser uma experiência interessante. É uma pena que eu não tenha alma.

paulo
Vocês não têm sexo nem alma. Nunca se perguntaram se havia uma ligação?

ashalzas
Não. Não nos preocupamos com nossa pan-sexualidade. Somos insuperáveis. (SORRI) E você sabe o estado em que ficam os despreparados após uma noite com um íncubo ou um súcubo.

paulo
O pior é que eu sei, Ash. E não só eu e você. E quem não sabe vai saber pelos jornais amanhã.

ashalzas
Creio que enfim chegamos aonde você queria... Muito bem, Paulo, o que que aconteceu agora?

paulo
Uma menina dessas aí. Modelo. Só que bem mais famosa. Estava sumida há dias. Arrombaram o apartamento dela ainda há pouco.

ashalzas
E..?

paulo
E em vez dela encontraram uma massa de carne.

ashalzas
Bem, é o que vocês são...

paulo
Não metafórica, Ashalzas. Literal.

ashalzas
Literal. Certo. É um conceito difícil pra demônios. E o que eu tenho a ver com isso, essa massa de carne?

paulo
Bem, Ashalzas, meu caro, ou ela se enganou e botou ácido sulfúrico de efeito retardado na banheira quando foi tomar banho ou se envolveu com demônios.

ashalzas
Eu não procuro você cada vez que sei de crimes cometidos por humanos.

paulo
Ash, não me venha com essas tergiversações que vocês aprendem lá em baixo... desde que a brecha se abriu e vocês, demônios descontentes com o Inferno, começaram a viver aqui, você sabe que a convivência é difícil...

ashalzas
Paulo, meu querido... você me ajudou a fixar minha essência neste plano enquanto eu fugia pela brecha... mas eu já ajudei você a localizar o vampiro da Zona Oeste, o Difusor da Guerra, já até te ajudei naquela história com aquela tua amante...

paulo
(SORRI) Puxa, eu pensei que esse último tinha sido por amizade...

ashalzas
Por amizade, mesmo, Paulo. Porque para mim, minha dívida já está paga. E você sabe como é desagradável para um demônio ajudar a caçar um irmão, mesmo que seja de uma linhagem de sangue... não posso mais ajudá-lo.

paulo
Você sabe que sempre se levanta uma onda antidemoníaca em casos assim...

ashalzas
Eu saberei me virar...

paulo
E a Polícia Religiosa, Ash?

ashalzas
Ela sabe que eu sou de paz.

paulo
Talvez, Ash... mas, acho que não te contei... essa moça... há alguns anos atrás, foi recusada por várias agências. Em anos de carreira, tinha feito só umas revistas masculinas... ela sumiu durante algum tempo e voltou. Ninguém conseguia ver onde estava a diferença, mas quando ela voltou, voltou com uma beleza arrebatadora. Acharam que o tipo dela tinha entrado em moda, ou qualquer coisa parecida. O certo foi que ela arrebentou. Olhando agora, da perspectiva da massa de carne... de onde será que veio esse sucesso dela? Os Monges Policiais com certeza irão atrás de demônios ilegais de pactos de beleza... e o que você estava fazendo quando cheguei aqui?

ashalzas
Seu chantagista sujo... você adora distorcer os fatos para que eles o sirvam melhor, não, Paulo? (PAUSA. RI) Acho que é por isso que eu gosto de você. Está bem! (ABRE OS BRAÇOS, SATISFEITO)

sonoplastia e efeito de luz para um transporte mágico que ashalzas invocou. entra um monge policial tentando afastar uma repórter. paulo se assuste por um instante e põe a mão na cabeça, como se estivesse com tonteira.

bartolomeu
Quem foi que deixou a imprensa entrar?

repórter
Você acha que Marcélia estava envolvida em algum culto?

bartolomeu
Culto, culto quem, minha filha, você acha que ela gostava de ler alguma coisa? (VÊ PAULO E ASHALZAS) Reniache... como você entrou aqui?

paulo
Ah, esse cheiro de enxofre... eu fico sempre enjoado...(APONTA ASHALZAS) Foi ele, esse maldito transporte mágico...

bartolomeu
Ele é um maldito. Tudo que ele faz é maldito. E você está sempre com ele.

ashalzas
Somos apenas bons amigos, Bartolomeu...

bartolomeu
Inspetor Bartolomeu para você, demônio.

repórter
Vocês são amigos?

bartolomeu
Não tem ninguém pra tirar essa mulher daqui, não?

repórter
(A ASHALZAS) O que que um demônio veio fazer aqui?

paulo
Ele veio comigo.

Férias em Itacaré



Márcia e Isa (ao fundo).

A Sétima Arte

Já ouvi muita gente dizendo que só gosta de filmes com boas histórias. E quando eles falam boas histórias, não querem dizer algo como LAURA (1944), mas algo como aqueles péssimos filmes franceses em que os personagens discutem banalidades horas como se estivessem falando coisas profundíssimas. Aliás, já que mencionei LAURA, certa vez estava discutindo esse brilhante título noir com a roteirista Leila Míccolis e uma menina ao lado ficou surpresa de gostarmos de um policial americano - filmes americanos são todos tão óbvios! Eu e a Leila tentamos explicar pra moça como o que NÃO é dito é muito mais importante do que os diálogos, mas acho que ela não entendeu.

O lugar ideal para alguém apreciar textos e diálogos profundos é a literatura. Você pode ler no ritmo que lhe for necessário para a compreensão do texto, pode parar para refletir e retomar a leitura, pode consultar uma enciclopédia ou um dicionário para aclarar certos pedaços, pode voltar várias páginas para relembrar uma cena, pode levar tanto tempo quanto quiser para chegar ao fim do livro, enfim, perfeito para longas elucubrações e detalhada e lenta construção. Já a arte do diálogo bem-escrito é o teatro. O teatro é baseado em ação, circunscrita por motivos óbvios em espaço, tempo e quantidade de personagens; o diálogo, portanto, é o tipo de ação que melhor se adapta a tais requisitos e a interação entre os personagens é a alma do negócio. Sutilezas, duplos sentidos, significados ocultos, jogos verbais de gato e rato, ironias, tudo isso tem como habitat natural o palco. Já o cinema, como o próprio nome diz, é a arte do movimento. Não pode ser contido numa caixa com uma imaginária quarta parede e nem numa arena. Fala direto à visão, o mais humano dos sentidos. E por isso mesmo é a arte que tem mais impacto, apesar de ser a menos condizente a um estudo em profundidade sobre qualquer coisa.

Se você perde o fio da meada numa longa discussão em cinema, não tem como voltar (tá, no DVD você pode, mas filmes não são construídos para serem vistos aos poucos e assisti-los assim costuma produzir um efeito completamente diferente de quando exibido de uma sentada). Há muitos anos atrás vi SOB O SOL DE SATÃ, vencedor do Festival de Cannes. O filme abre com uma longa discussão filosófica entre Gérard Depardieu e Sandrine Bonnaire, com câmera estática e visual escuro negando quase qualquer distração. Como tinha que ler as legendas, uma linha por vez, provavelmente com uma tradução não tão perfeita assim, e distraído por estar tentando agarrar a menina com quem tinha ido, em dois minutos já não fazia a menor idéia de sobre o quê eles estavam falando e assim passei a fita toda. Isso não é cinema. Filmes não podem durar mais do que duas, três horas, já que exigem imersão total do espectador e após esse tempo tornam-se cansativos. Não podem apresentar um narrador onipresente explicando as ações dos personagens ou a longa história de um lugar ou de uma pessoa. Em compensação, pode mostrar a ação. E conseguir um impacto emocional maior do que qualquer outra arte. Com a possível exceção da música.

A música é a mais primitiva das artes. Como não existe uma arte olfativa e nem táctil, a música é a que usa o sentido mais primitivo, a audição. Também é mais animal, já que não requer nenhuma codificação racional, não exigindo nenhum tipo de representação tipicamente humana - palavra, símbolo, a crença de que uma pedra não é uma pedra (escultura) ou a de que a pintura de um cachimbo é um cachimbo. E embora hoje usemos computadores e samplers para gravar canções, pode-se fazer música batendo num tronco de árvore, sacudindo folhas, ou simplesmente emitindo ar pela garganta.

Já o cinema é a mais tecnológica das artes. Desnecessário contar toda a aparelhagem e alta tecnologia envolvidas para capturar o movimento. Não há nada de natural nele. Desde a existência de apenas duas dimensões à falta de cheiro e tato, passando pelas cores irreais e distorções das lentes. No entanto, é a experiência mais REAL que a arte pode proporcionar. Spielberg e seus colegas podem levar multidões às lagrimas. Em compensação, quantas vezes você viu gente chorando ao ler um livro ou escutar uma canção? Pessoas gargalham à larga numa boa comédia, enquanto um genial texto humorístico pode lhe trazer um sorriso. Por quê?

Porque somos primatas. Porque somos os únicos mamíferos em que o sentido predominante é a visão. Enxergamos em cores e temos excelente senso de profundidade. Nossos ancestrais braquiavam pelas árvores, isso é, balançavam-se pelos galhos e cipós. Como os macacos fazem. Para isso eles tinham que manter os olhos fixos no caminho o tempo todo. Não podiam andar por aí olhando para ontem, como nós. Era preciso calcular a distância exata entre o galho em que estavam e o próximo. E eles não eram predadores - eram presas. Já que seu olfato diminuíra tanto, precisavam estar conscientes de qualquer movimento suspeito.

O cinema também conta com outras vantagens: reúne todo mundo numa sala escura, retirando-nos da realidade cotidiana para nos levar a outro mundo - e por isso assistir a um filme em casa raramente causa o mesmo impacto. Apesar de toda a parafernália tecnológica envolvida, vai direto aos nossos sentidos - não é mediado pela palavra, não precisa ser decifrado e interpretado. O grito desesperado do condenado à morte em CÉU E INFERNO pode ser compreendido em qualquer língua. Analfabetos podem compreendê-lo. Vale muito mais do que O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO À FORCA (Não me lembro se o título era esse e se era de Victor Hugo, Baudelaire ou Rimbaud, só lembro que era um romântico francês. Algum leitor sabe de qual livro estou falando?) inteiro.

E é por isso que cinema não pode ser julgado pelo lirismo dos diálogos ou pela força da história. A história só está ali para que sejam extraídas imagens dela. Que podem ser muito mais fortes do que seu ponto de partida. Vejam as histórias horrorosas ou manjadíssimas e melodramáticas demais por trás de grandes filmes como GUERRA NAS ESTRELAS, ERA UMA VEZ NO OESTE, POR ALGUNS DÓLARES A MAIS, PAIXÃO DOS FORTES, PAIXÕES QUE ALUCINAM, se comparadas com a solenidade e pomposidade de adaptações literárias de James Ivory e indagações pueris tentando se vender como profundas e provocantes, tais como STALKER e CINEMA FALADO (que chega a ter um sujeito declamando uns dez minutos Thomas Mann no original. Que chique!)

Cinema é a arte da imagem em movimento. Som é secundário. Ele viveu trinta anos sem som e poderia fazê-lo ainda hoje, se quisesse. Já um filme sem imagem é no máximo uma transmissão de rádio ou uma palhaçada. Esqueça o lirismo dos diálogos ou o quanto a história é complicada e difícil de entender. O que interessa são as imagens. Elas é que têm que fazê-lo pensar. Se você sonhar com o filme, é excelente sinal. Quando fui ver MAD MAX 2, lá nos anos 80, fi-lo porque precisava matar o tempo e não tinha mais nada passando. Eu era um adolescente entrando na faculdade de Jornalismo e queria ser inteligente, desprezando esses produtos culturais inferiores e apelativos. Rapaz, eu saí do cinema com vontade de quebrar algumas vitrines de loja. Não é à toa que filmes inferiores e apelativos até hoje o imitam. Foi um dos meus primeiros passos para esquecer meus preconceitos e entender o que faz de uma película um filme bom. E, para mostrar como uma fita tem que funcionar e como o que pode parecer uma bobagem inócua está cheia de sutilezas e propaganda subliminar para fazer sua cabeça, em breve postarei aqui uma análise de um dos mais inteligentes filmes dos anos 80: Robocop.

outubro 09, 2006

Isa Minha Bela


Dorme de dia e sai à noite, não surfa, não gosta muito de praia e adora música eletrônica e promover eventos.
Por que ela vive numa minúscula cidade de praia da Bahia?

Márcia


Garçonete do Berimbau, Professora de Forró, Inglês (para os nativos, para atenderem e comerem as turistas) e português (para as turistas compreenderem e comerem os locais).

Yo no soy mariñera, soy captán


Leonor, no caso capitaneando sua Quantum e não seu barco.

De Volta

Estou de volta das férias. Não fiz nenhum post em trânsito devido ao tempo (sol maravilhoso e noites frescas todo dia) e a problemas pessoais (encachaçando-me com o pessoal até de manhã). Eis aí uma idéia de como estava Itacaré: