dezembro 14, 2008

Blogue Sem Lei X

Por Alguns Dólares a Mais
de Sérgio Leone, 1965

O público pediu que o blogue sem lei da semana fosse "O último pôr-do-sol" e esta era a intenção do blogueiro, mas no meio do caminho havia um Wii recém-comprado e a postagem acabou mesmo sendo uma que já estava adiantada. Fica a promessa de, sobrando um tempo longe do sensor de movimento do videogame, rolar uma sessão do longa de Robert Aldrich, um dos mais interessantes cineastas não-superstar americanos.

Ano passado, comentando uma recentemente lançada biografia de Sergio Leone, um crítico comentou que ele foi um diretor inovador e interessante, mas que, desde que deixou de filmar faroestes e principalmente depois que precocemente abandonou este vale de cólera e lágrimas, sua influência desapareceu das telas, ninguém mais filmando westerns spaghetti daquele jeito idiossincrático: hipercloses nos atores, longas passagens sem diálogo, a música comentando a ação ao invés de reforçar a emoção dela, gestos e movimentos lentos, looooongos planos com poucos, estudados e vagarosos movimentos. E não, não estamos falando de "Feliz Natal", de Selton Mello.






Pois é, bangue-bangues italianizados podem ter caído em desuso, mas mais do que inventar um subgênero B, Sergio Leone criou um estilo que é um dos mais influentes do cinema contemporâneo. De Selton Mello a Wong Kar-Wai, as elipses visuais, os planos-detalhe, o fetichismo da câmera pelo rosto dos personagens e muitas outras das manias do gordo italiano colecionador de antiguidades se espalharam pelas telas do mundo todo, apropriadas em sua maioria por "autores de filmes", ao contrário dos cineastas B que o imitavam em seu auge.


É que estes trocaram a árida lentidão pela velocidade dos videoclipes. Mas mantiveram os heróis cínicos e pouco afeitos ao auto-sacrifício de Leone, que na verdade roubou o personagem do "Yojimbo", do Kurosawa, fita que ele copiou quase cena por cena ao fazer "Por um punhado de dólares". O samurai de Mifune, que seria desenvolvido em "Sanjuro" é um sujeito de meia-idade, extremamente especializado na arte de matar (no que foi provavelmente ajudado pelo seu sadismo), mas que devido aos tempos turbulentos da restauração Meiji, ficou sem empregador, sem um tostão e sem futuro. No fundo é um sujeito bem-intencionado e sociável cujas perversões o levam a derramar mais sangue do que poderia quando tenta ajudar e a não ter família.


O pistoleiro de Clint Eastwood não está interessado em ajudar. Não tem empregador, mas graças à americaníssima instituição do caçador de recompensas, tem mais dinheiro do que jamais precisará. Em "Por alguns dólares a mais" ele comenta que a grana que receberia por capturar Indio lhe permitiria comprar um rancho e se estabelecer. Não convence absolutamente ninguém. Não há como se imaginar aquele sujeito arando a terra, criando gado ou, se o dinheiro que juntou for tanto assim, sentado numa daquelas casas-grande sulistas, lendo um livro e fumando um cachimbo.


Sem contar que ele é claramente anti-social. Dificilmente fala alguma coisa e quando o faz é em monossílabos ou sentenças com pouquíssimas palavras. Diz a lenda que tal acontecia porque Eastwood não falava italiano e Leone não falava inglês; com liberdade para reescrever suas linhas, mal-escritas como poderia se esperar de uma produção B italiana, o ianque simplesmente as apagava às toneladas. A história é ótima, mas soa como exagero, já que ninguém em nenhum filme de Leone é chegado a verborragia, o que combina à perfeição com a vagareza ritualizada de seus filmes.


Essa ritualização é um dos aspectos fascinantes dos bangue-bangues de Leone. Não por coincidência o outro gênio do faroeste que transformava suas histórias em confrontos rituais era John Ford, como já dito no Blogue sem Lei de "Paixão dos fortes". Na fita do ianque-irlandês, Wyatt Earp também se move num ritmo próprio e lento e os duelos são coreografados com gestos exagerados e românticos. Não por coincidência tanto Ford quanto Leone são dos raros católicos a se especializar no gênero. Ford prefere expressar seu misticismo através de sua fé cristã - a Clementine do já falado "Paixão dos fortes" é uma santa casta e idealizada e Earp é um santo levando a palavra da civilização aos gentios.


Sergio Leone não é irlandês, é da terra das intrigas papais e da máfia. Seus caubóis são silenciosos e mortais como os capangas de "O poderoso chefão" e vivem pelo seu código de honra, que inclui o domínio de seu instrumento, os enormes Colts Walker e Dragoon, que em Leone substituem os Peacemakers tradicionais do cinemão americano. Os primeiros são maiores, claramente fálicos, pesadões e datam de antes da invenção do cartucho metálico, exigindo carga pela boca de cada um dos seis tiros, o que claramente deve ter fascinado o lado antiquário do italiano.


É esse código quase samurai que leva Monco e o coronel Mortimer a se aliarem após mostrarem que são equivalentes em habilidade graças ao ritual do tiro no chapéu. Mortimer é a versão mais velha e experiente de Monco. Ambos são mortais, mas o coroa é mais estudado, como se vê pela sua coleção de armas e por seus planos mirabolantes.


O blogueiro nunca vira esta fita antes da era do DVD, por isso não sabe dizer o quanto ela se beneficia da tela grande e do formato widescreen original, mas pelo que viu de "Era uma vez no oeste", imagina que a diferença seja enorme. Este último longa era profundamente desconfortável, já que a tela ficava totalmente preenchida quase o tempo todo com o rosto dos personagens, o que levava o espectador a pensar que era a intenção do diretor, que já usava o techniscope para aumentar a sensação de ressecamento e sujeira. O techniscope era um formato com as mesmas proporções do cinemascope, mas em vez de utilizar uma lente especial, simplesmente filmava dividia cada quadro do negativo ao meio. A produção economizava metade do filme virgem, economizava ao usar câmeras comuns em vez de anamórficas e continuava a ter uma imagem de boa qualidade graças ao processamento da technicolor, a inventora do sistema. O aspecto granulado e as cores sujas, em vez de atrapalharem, adicionavam ao visual rústico que, em mais uma das duradouras influências de Leone, se tornou o padrão de "realismo" de fitas de ação de época - qualquer época que não a contemporânea, qualquer locação que não o mundo dos ricos.


O povo dos anos 60, já preparado para contracultura pela revista Mad, pelo movimento beat, pelo existencialismo e pela idéia "vamos-nos-divertir-dançando-bebendo-e-trepando-antes-que-o-apocalipse-atômico-nos-mate-a-todos" do rock and roll, adorou os taciturnos pistoleiros preocupados apenas com eles mesmos, incapazes de estavam de acreditar nos homens santos do faroeste americano que a esta época já estava começando a virar quase uma autoparódia, massacrado nas séries de baixo orçamento da tevê. Adoraram a mitologia mística católica de Leone que dava suporte a toda aquela violência gráfica e falta de fé na humanidade. Indio é um matador sem piedade e bandido da pior espécie. No entanto, dá ao capanga que o traiu a chance de um duelo realmente justo - nada de rifles apontados para ele ou coisas parecidas - cronometrado por um relógio musical. O coronel Mortimer tem um igual e ambos parecem partilhar flashbacks sobre uma mulher que teve o marido assassinado por Indio, que em seguida a estuprou.


Ao final da fita, após voltas e reviravoltas, num mundo em que só existem trapaceiros, corruptos e prostitutas, Mortimer e Indio se enfrentam numa estrutura similar a uma arena, com o relógio marcando o tempo para que um deles morra. E descobrimos que a mulher dos flashbacks era a irmã de Mortimer; tendo a chance de matar Indio, ela preferiu se matar a viver desonrada, sem o homem que amava e tornando-se uma assassina como seu agressor. Este gesto, um típico martírio de santas católicas, salvará a alma de Mortimer e trará a ruína de Indio, morbidamente obcecado com o episódio durante toda a história. Mortimer dispensa toda a recompensa, que é recolhida pelo Monco de Eastwood. É dinheiro suficiente para o tal rancho que ele mencionara, mas sem uma santa sacrificando-se para salvá-lo, seu futuro não parece apontar para uma aposentadoria, mas apenas para mais violência sem sentido, onde ele poderá exercer sua inigualável habilidade, sem nenhum crescimento espiritual ou alívio antes de encontrar alguém mais talentoso que encerre sua existência vazia.

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