dezembro 06, 2008

Blogue Sem Lei IX

Rio Bravo - Onde Começa o Inferno
de Howard Hawks, 1958


Depois de revolucionar o uso do som nos filmes com o barulhentíssimo "Scarface", em 1931, Howard Hawks olhou para alguns dos simbolismos e voltas de força da fita – planos-sequência iniciando numa cruz e terminando num assassinato, folhas de calendário voando com tiros de metralhadora, pinos de boliche dançando, moedas sendo jogadas para o alto o tempo todo – e disse que aquilo tudo só servia pro diretor se mostrar e distrair o espectador da história. E assim, apesar de todo seu talento para criar cenas para deixar estudantes de cinema babando com a inteligência do autor, Hawks passou o resto da (longa) carreira se dedicando a botar o enredo pra frente com o máximo de eficiência e simplicidade. E criou uma enorme quantidade de clássicos da era de ouro de Hollywood.

Mas em "Rio Bravo" ele trapaceia um pouquinho e resolve fazer uma volta de força logo no começo só pra se divertir, filmando os primeiros cinco minutos sem diálogos. Um bêbado pede esmola, o ator que nos anos 70 faria o Xerife Lobo do seriado joga uma moeda na escarradeira, o bêbado – Dean Martin – hesita e resolve pegá-la, John Wayne, segurando seu rifle, joga a escarradeira longe, o bêbado agride John Wayne, depois tenta pegar Joe, o futuro xerife Lobo, mas os capangas dele o impedem e o seguram para que Joe o espanque. Um popular tenta detê-lo, mas Joe se enfurece e atira nele, matando-o. Entediado, sai pela cidade, paquera meninas, começa a beber em outro bar, até que John Wayne, ainda meio trôpego e ensanguentado pela cacetada que levou de Dean Martin entra saloon adentro segurando a Winchester com uma mão só enquanto profere a primeira linha do longa: "Joe, you´re under arrest".

Depois de uma pequena confusão em que Dean Martin acaba ajudando Wayne a levar o desordeiro para a cadeia (onde fica sob a guarda do velho manco Walter Brennan), ficamos sabendo que o primeiro era o melhor gatilho da região e assistente do xerife Wayne até que se apaixonou por uma vadia que todo mundo avisou a ele que era uma vadia, mas não adiantou nada. Ele largou tudo por ela e voltou seis meses depois sem um tostão, mergulhou numa garrafa e não saiu mais. Sua busca por redenção será o fio condutor da trama.

Dizem os livros que "Rio Bravo" foi ideado como uma resposta a "Matar ou morrer", que Wayne achou antiamericano, coisa de comuna. Irritou-o sobremaneira o xerife interpretado por Gary Cooper achar que o pessoal da cidade tinha que protegê-lo, quando deveria ser o contrário. Por isso a cena em que Ward Bond quer angariar ajuda pra Wayne e este dispensa, dizendo que ter um bando de amadores preocupados com a família ao lado iria atrapalhar mais do que ajudar. Por isso que Wayne chamaria de "garoto esperto" a Colorado (Ricky Nelson), pistoleiro contratado de Bond e que acha mais sensato ficar fora do assunto. Por isso, enfim, que Wayne teria contatado Hawks pra fazer a fita. Ele só não contava que Hawks iria subverter a concepção original até encaixá-la em seus temas recorrentes. E iria gostar tanto que refilmaria a história mais duas vezese, em "El Dorado" e "Rio Lobo" (1).

No mundo de Hawks, todos têm seu papel definido pelos seus talentos e usar suas aptidões pelo bem do grupo é o grande interesse. Mesmo os personagens que parecem o alívio cômico, como o Sueco em "Paraíso infernal", ou Walter Brennan aqui, são profissionais imprescindíveis - o Sueco é quem banca a operação dos aviões e Brennan é a fortaleza em torno de Joe, e é ele quem salva o dia em duas ocasiões, mesmo manco, velho e desdentado. Neste oeste selvagem, o homem que é homem não é aquele que tem mais perícia com o revólver - embora isso ajude - mas aquele que se atém ao código de conduta profissional, que põe o grupo acima de tudo. Essa idéia de que há lugar para todos na turma e essa falta de mesquinhos interesses pessoais é o que torna fantasias como"Jornada nas estrelas" tão atraentes para nerds e desajustados

E é também o encanto por trás da idéia fascista - no romance "Tropas estelares", a Força Federal (e, por conseguinte, o direito de voto), está aberta a todos - se você for cego, surdo, mudo e sem pernas, eles o poriam para contar as cerdas de uma taturana com o tato. Note que cerdas de taturanas queimam - no fascismo só o guerreiro tem valor. Nos filmes de Hawks basta desempenhar bem seu papel, mesmo que ele seja não oferecer ajuda ao xerife.

Dean Martin caiu em desgraça com o grupo ao pôr seus interesses sexuais acima do bem comunal. Enquanto rola a confusão na cidade com o riquíssimo irmão esperto de Joe oferecendo uma recompensa pela cabeça de Wayne, uma gostosíssima Angie Dickinson, quinze anos antes de Police Woman e mais de vinte anos antes de fantasiar ser estuprada no chuveiro em "Dublê de corpo", salta da diligência com sua descrição num cartaz de "procurado" e logo está cheia de amor pra dar praquele duque de um metro e noventa e comprida e potente arma sempre erguida e à mão.

Na verdade, era o ex-marido dela quem era o trapaceiro procurado pela justiça. Como a mulher prototípica de Hawks, ela é gostosa, atirada, sensual, sexual, deu adoidado a (jovem) vida toda e no final termina com o mocinho, ao contrário da tendência de Hollywood na época. Compare, por exemplo, com "Scaramouche", onde a atriz gostosa que é apaixonada pelo personagem-título abre mão dele prele ficar com a mocinha porque ela tem algo que ela nunca poderia lhe oferecer: um cabaço. Angie Dickinson aqui, Lauren Baccall em "Uma aventura na Martinica" e Jean Arthur em "Paraíso infernal" são claramente garotas de programa, mas isso não as impede de serem moças interessantíssimas - muito pelo contrário. Para conquistarem o herói, elas não têm que provar que na verdade não têm vida sexual passada ativa, variada e descompromissada (como o patético final de "Gilda"), mas apenas que estão preparadas para pôr os interesses do grupo acima dos seus e não tentar afastar um homem daquilo que ele nasceu para fazer.


Para reforçar essa sensação comunal, as fitas de Hawks sempre têm uma canção envolvendo todo o grupo - aqui aproveitando que há dois cantores, Dean Martin e Ricky Nelson, e um Walter Brennan que toca gaita. Hawks também abusa de botar seus atores em posições relaxadas, Angie Dickinson displicentemente apoiada no balcão, Wayne com os cotovelos apoiados em uma prateleira e uma das pernas dobrada e encostada num anteparo em frente, bem como os faz se movimentarem com gestos largos, informais e desatentos ao andar, abrir portas e pegar coisas em armários. Essa mesma informalidade é outro dos motivos da popularidade de "Jornada nas estrelas": a famosa maneira de abrir o comunicador com um solavanco, os botões para levantar as portas sendo batidos com a palma da mão enquanto os atores olham para o lado e coisas assim.


Hawks também evita filmar diálogos cortando entre os interlocutores. Ele prefere um clássico plano americano, a câmera de preferência localizada onde um sujeito que fizesse parte da turma estaria displicentemente sentado olhando os amigos, e faz os atores se movimentarem dinamicamente pelo quadro, com direito a alguns gestos desnecessários, mais uma vez relaxados, como coçar as costas, puxar as calças para cima ou ajeitar o chapéu. Esse controle sobre a movimentação fica claro na primeira aparição da gostosona, quando ela faz um comentário cínico encostada inclinada sobre um portal, exatamente como Lauren Baccall em "Uma aventura na Martinica".

Aliás, só pra constar, a idéia de Hawks quando chamou Baccall para filmar era comê-la, mas ela acabou dando antes pra Humphrey Bogart. Quando o diretor soube que seu amigo e ator, que na vida real não comia ninguém, tinha pego a maravilhosa adolescente, ficou bastante frustrado, mas como o que interessa é o grupo, a amizade e o profissionalismo, continuou a filmagem, continuou amigo do Bogart, e comeu a garota que fazia o papel da mulher do líder da resistência. Hawks era um sujeito tão parecido com os aventureiros de suas histórias que morreu aos 79 anos num acidente de moto - que ele estava guiando. O próprio "Uma aventura na Martinica" saiu de uma aposta dele com o Hemingway quando ambos pescavam em alto-mar e o cineasta, pra provar seu ponto-de-vista que cinema era muito mais fácil que literatura, perguntou qual a pior coisa que ele já tinha escrito e que tiraria um filme de sucesso dali. Bogart agradece.


Esse profissionalismo professado nas fitas dele não exige absoluta perfeição técnica. Wayne explica que passa o filme todo carregando uma incômoda Winchester na mão porque não saca tão rápido assim e prefere ter a arma já pronta para disparar. Não era o tipo de confissão que os personagens do Duque fizessem na época. O que interessa é conhecer suas fraquezas, seus limites, e aproveitar o que sabe fazer melhor. Como o povo que ele filma normalmente tem uma profissão interessante - aviador, xerife, explorador, cientista - e com toda a fluidez e informalidade que sua câmera e direção proporcionam, o espectador se sente tão bem durante o longa como se estivesse enchendo a cara com um pessoal legal. O próprio Colorado, que acha sensato não se juntar àquele pessoal em apuros, acaba não resistindo e unindo-se a eles. E ainda tem aquela mulher gostosa. Depois do tiroteio em que ela atira o vaso pra distrair os bandidos, ela fraqueja um instante, acha que não é talhada pra conviver com esse ofício. Mas no final ela aceita a profissão de Wayne - que é sua própria vida - e quando ele aceita o que ela é - uma ex-vadia agora disposta a ficar com ele, mas (implicitamente) indisposta a abrir mão de sua sexualidade (mesmo que disposta à monogamia) e seu jeito de ser atirado. Ambos aceitando as condições do outro, estão prontos para uma união muito mais atraente do que os finais felizes tipicamente assexuados da Hollywood da época. A gargalhada de Brennan e Dean Martin ao verem a meia-calça de Dickinson atirada pela janela deixa isso bem claro.

E eles viveram felizes e fodendo muito para sempre.

(1) John Wayne apareceria nos três; Hawks insistia em que não era tuo a mesma história, por isso Wayne, quando convidado pra fazer o terceiro, perguntou, "mas dessa vez eu vou ser o bêbado ou o xerife?"

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