maio 09, 2006

A História da Copa do Mundo - Capítulo I

Agora é oficial. O livro que escrevi para adolescentes sobre a história da Copa do Mundo não vai dar mais tempo de sair antes do Mundial da Alemanha. Talvez se ganharmos... enquanto isso, vou publicá-lo aqui em capítulos, até porque acho que ficou legal.
Tentando fazer algo no estilo do "Outline of History", do H. G. Wells, procurei mostrar a história do futebol como um processo contínuo e evolutivo, tentando ao mesmo tempo ligá-lo a um contexto histórico e sociolóigico. Acho que pelo menos como um painel da evolução do jogo, explicando por que jogadores como Puskas, Cruyff e Ademir foram importantes no desenvolvimento do esporte, eu consegui.
Talvez não seja minha melhor prosa, já que dispus de apenas um mês para pesquisa e confecção, nas horas vagas do TRT. Só no que eu já revi encontrei erro à beça. Mas eu escrevo bem - tá gostoso de ler.

A Copa do Mundo é o maior evento esportivo do Universo conhecido. Mais de 33 bilhões de espectadores assistiram aos jogos da Copa da França. A audiência média de cada partida é de 314 milhões de pessoas. Ela é acompanhada por mais gente do que as Olimpíadas, onde a cada quatro anos o futebol é invariavelmente o esporte que tem maior público, mesmo disputado por times sub-23.
E por que o futebol é tão mais popular? Basquete exige uma quadra lisa, dura e nivelada e uma bola saltitante (e jogadores também). Vôlei, além de não ser um esporte de contato, precisa de uma boa marcação das quatro linhas, uma rede e, é claro, um lugar onde amarrá-la (e jogadores saltitantes). E, para sonhar seguir uma carreira nestes esportes, é preciso ser alto. Bem alto. Futebol não precisa de nada disso. Pode ser jogado na areia, na terra, no cimento, na grama, no asfalto. A bola pode ser de plástico ou mesmo improvisada com meias e papel. Duas pedras marcam o gol. A altura da trave superior pode ser medida pela altura do goleiro, o que vai dar muita discussão, mas não vai impossibilitar o jogo. É na rua? Se passar gente todo mundo pára onde está. Se a bola ficar presa debaixo de um carro, é de quem tocá-la primeiro e o outro time tem que ficar a três passos de distância. E qualquer um pode jogar. Qualquer um?
Qualquer um. Qual técnico dispensaria um jogador gordinho? Pode ser um Maradona ou um Puskas. Baixinho? Pode ser um Romário. Franzino? Pode ser um Zico ou um Bebeto. Com as pernas tortas? Pode ser um Garrincha. Qualquer um pode tentar ser um grande jogador. O único requisito é talento. Foi assim que um país que em 1958 era ainda muito pobre e subdesenvolvido pôde se tornar campeão do mundo e seguir ganhando Copa após Copa até ter a única seleção cinco vezes vencedora - o único pentacampeão.

A PRÉ-HISTÓRIA DO FUTEBOL

Pode parecer incrível, mas o futebol é ainda mais antigo do que o Romário. Há quatro mil anos o imperador da China, Huang Ti, botou seus soldados para correr atrás de uma bola de couro recheada de cortiça, supostamente para treiná-los para a guerra, embora alguns eunucos da corte dissessem que era porque as tardes de domingo eram muito chatas no palácio e assistir às partidas era divertido. O jogo se chamava tsu-chu e tinha como gol um par de estacas cravadas no chão. É difícil de imaginar exatamente para que tipo de combate servia esse treinamento, mas como os chineses estão por aí até hoje - e em enorme quantidade -, deve ter funcionado bem.
Os gregos também tinham sua própria versão, o epyskiros. Entre nove e quinze atletas em cada time chutavam uma bexiga de boi cheia de areia através da meta. Os romanos adaptaram o jogo, batizando de harpastum, também para treinamento militar, mas, como eles levavam guerra mais a sério, a pancadaria estava liberada para derrubar quem carregasse a bola. Parece fazer mais sentido, mas acabou trabalhando contra as famosas invencíveis legiões, pois o esporte ficou tão popular que os soldados deixavam suas tarefas de lado para ir jogar!
Os romanos levaram o jogo para os territórios conquistados e foi assim que ele chegou à Bretanha, a futura Inglaterra, onde o futebol moderno seria inventado. O harpastum foi sofrendo muitas modificações com o tempo, até que por volta do século XII virou uma comemoração de Carnaval, com os habitantes das cidades saindo pelas ruas chutando uma bexiga de boi (e tudo mais que visse pela frente, invadindo até as casas), o que logo acabou se organizando em um tipo de competição. E uma competição tão popular e bagunçada que o escritor Philip Stubbs descreveu-a ainda no século XVI como "um jogo bárbaro, que só estimula a cólera, a inimizade, o ódio, a malícia, o rancor." E ele nem conhecia a Mancha Verde.
Nessa época também havia outros jogos de bola fazendo sucesso pelo mundo. Na Itália existia o calcio, nome pelo qual se conhece o futebol até hoje. E na América Central havia o tlachtli dos maias, ancestrais dos mexicanos. A competição era tão importante que os vencedores eram considerados deuses e sacrificados ao final da partida, para se juntarem aos seus iguais no Céu. Talvez por causa disso só só recentemente a seleção mexicana tenha começado a se destacar. Os jogadores devem ter feito anos de análise para acreditarem que nada lhes aconteceria se derrotassem o adversário.
Enquanto isso, na Inglaterra, o futebol foi adotado pelas escolas de Covent Garden, Strand e Fleet Street como atividade física. Logo outras instituições estariam fazendo o mesmo e no século XIX surgiria o jogo que conhecemos já praticamente com todas as regras que usamos até hoje. Mas, para chegar até lá ele teve que esperar pela Revolução Industrial e por... Napoleão.

A ORIGEM DO FUTEBOL MODERNO

Pode parecer coisa de maluco, mas um dos causadores da explosão do futebol foi Napoleão. E não foi porque era um esporte em que baixinhos marrentos e geniais podiam se destacar. A partir do século XVIII, principalmente depois da invenção da máquina a vapor, as fábricas aumentaram muito sua produção e começou a sair uma invenção atrás da outra. Era a Revolução Industrial, que iria fazer a Europa mais rica e próspera do que em toda sua história e tirar muitas e muitas pessoas da pobreza.
Na mesma época Napoleão conquistou quase todo o continente. Até aquela época, os países que iam à guerra contratavam guerreiros profissionais para seu exército, juntavam a um bando de bêbados violentos e punham todos sob o controle de aristocratas engomados. Todo esse povo se deslocava até o campo de batalha caminhando lentamente e trazendo junto carroções e carroções com provisões e comerciantes para vender bens aos soldados.
Pois o baixinho genial da França mudou isso tudo. Alistou o povo - os cidadãos franceses -, deu-lhes armas e fê-los marchar velozmente em perseguição às tropas inimigas, obtendo suas provisões pelos lugares que passavam. Foi assim que durante quase vinte anos Napoleão foi o pesadelo dos monarcas da Europa. Depois que todo mundo se juntou contra ele e conseguiram derrotá-lo, os outros países resolveram fazer um exército igual. E, para isso, seus cidadãos teriam que estar em boa forma física. Por sorte, com a Revolução Industrial eles estavam bem melhor alimentados. Só faltava um estímulo para fazer o pessoal correr. E eis que surge o futebol.
Quando o futebol foi adotado pelas escolas inglesas, apesar de não mais invadir a casa de ninguém ainda guardava os chutes sobre os sujeitos que carregavam a bola. As regras também mudavam de instituição para instituição. Em alguns lugares a bola podia ser pega com as mãos, além dos pés; em outras era proibido o uso de pés e só se podia jogar com as mãos. Em comum apenas a regra de que era proibido passar a bola para a frente. O jogador que a carregasse tinha que ir até o gol driblando sem parar. Por isso, antes de você reclamar com o seu companheiro de time que ele não passa a bola, verifique antes se ele usa expressões como "cáspite" ou "vá pentear macacos" ou usa suíças (e não é o Oliver Kahn). Talvez ele não seja fominha, pode ser que seja um viajante do tempo.
É claro que um jogo assim podia até ser divertido de jogar numa arruaça de Carnaval, mas não num colégio inglês de rígida disciplina. Desse jeito fazia muito mais sentido carregar a bola com as mãos e foi assim que surgiram primeiro o rugby e depois o futebol americano. Mesmo assim, quando as regras foram unificadas em 1863, manteve-se a proibição do passe. Era a regra do impedimento: "quando o jogador de um time chutar a bola, qualquer companheiro que esteja mais próximo do gol adversário está impedido de participar da jogada". Mas não durou muito. Ainda em 1866 ela foi mudada, permitindo o passe, desde que o atleta que o recebesse tivesse três adversários entre ele e a linha de fundo. A partir daí o futebol passou a parecer muito com o que se joga até hoje, com dribles, passes, cruzamentos.

BOX

A regra do impedimento existe para evitar o comportamento antiesportivo que era o atacante querer fugir da marcação. A regra do Colégio Eton, por exemplo, mencionava que um jogador era considerado "se esgueirando" se tivesse menos que três adversários entre ele e o gol.

A primeira federação nacional foi a inglesa, criada justamente com a unificação das regras em 1863. Em apenas 8 anos 50 clubes já faziam parte dela. A FIFA, a Federação Internacional de Futebol, foi fundada em 1904. Desde então o jogo só vem se popularizando e espalhando pelo mundo inteiro, apoiado na simplicidade de suas 17 regras, em comparação com jogos como o futebol americano, que tem 2 volumes para as regras do jogo.

Aqui viria o capítulo sobre as regras do futebol, mas acho que podemos pular esse pedaço.

COMEÇA O FUTEBOL NO BRASIL

A primeira notícia que se tem de futebol no Brasil é que um bando de marinheiros ingleses desembarcou do navio Criméia em 1876 e jogou uma animada pelada em frente à residência da Princesa Isabel, com a devida permissão, é claro.
Dizem que a princesa se entusiasmou com o jogo, mas como o conde d'Eu não respondeu às perguntas que ela ficava fazendo, "benhê, quem que é a bola?", "benhê, por que aquele sujeito macambúzio e taciturno que fica o tempo inteiro debaixo daqueles três paus tem uma camisa diferente dos outros?", "benhê, por que não dão uma bola para cada um e todo mundo fica satisfeito?", ela acabou se desinteressando. Sem público os ingleses acabaram voltando para o navio e terminou assim a primeira excursão-relâmpago de que se tem notícia nestas terras. Seria preciso um autêntico brasileiro para realmente trazer o bárbaro esporte bretão para nossas praias. E este autêntico brasileiro tinha um nome: Charles William Miller.
Charles Miller tinha dois anos quando os marinheiros do Criméia fizeram a pelada aqui. Era descendente de britânicos e foi mandado para estudar na Inglaterra, então a maior nação do planeta, quando tinha dez anos. Lá passou dez anos e se tornou o astro do time de seu colégio. Ele também se tornou um bom jogador de críquete, mas felizmente quando ele desembarcou aqui em 1894 trouxe duas bolas de futebol, evitando que hoje em dia andássemos por aí cravando arames no chão e batendo em bolinhas com palmatórias gigantes.
Charles ficou surpreso ao descobrir que ninguém sabia como se jogava o bárbaro esporte bretão por aqui, ao contrário de hoje em dia, quando só comentaristas de futebol não sabem. Os primeiros times que conseguiu armar eram quase todos de ingleses que trabalhavam aqui, no Banco de Londres, na Companhia de Gás e na Ferrovia São Paulo Railway. Estas duas últimas equipes protagonizaram o primeiro jogo entre brasileiros. Os ferroviários ganharam por 4 x 2.
O esporte também foi rapidamente adotado nas escolas católicas do país. Os padres e professores aprovavam porque evitava que na hora do recreio os alunos ficasem conversando entre si, em rodinhas que os monges não sabiam sobre o quê falavam. Também deixava os alunos sem energia para outras atividades mais temidas pelos religiosos. Não por coincidência o primeiro fabricante de bolas de couro cru no Brasil foi o padre Manuel Gonzales, do Colégio São Vicente, de Petrópolis.
Charles Miller fundou o São Paulo Athletic Club, criou o drible que leva seu nome, "charles", uma puxada de calcanhar também conhecida como "chaleira" (embora alguns digam que o "charles" original era uma espécie de drible do elástico) e marcaria o primeiro gol brasileiro contra argentinos em 1908, quando já pensava em abandonar o esporte para se tornar juiz e dirigente. Mas aí o movimento que ele começou não tinha mais como parar, tornava-se cada vez mais e mais popular. Nas palavras de Mário Filho, que antes de ser estádio era jornalista e escritor, era "tudo simples, simples demais. Era fácil jogar, meter o pé numa bola, sair correndo atrás dela. A bola era tão grande que não havia jeito de errar. Quando a bola entrasse, gol, nova saída. O quíper (goleiro) podia segurar a bola com a mão".
Os jogadores, quase todos de boa situação financeira, pois como visto estudavam em bons colégios ou no exterior, começaram a fundar os clubes. Garotos em não tão boa situação financeira viam-nos treinando e jogando e começavam a se interessar. Como vimos no capítulo sobre a origem do futebol moderno, no mundo inteiro havia na época uma fascinação pela prática de exercícios. O remo, que dava ao praticante muitos músculos, era então o esporte mais popular. As moças adoravam ver os remadores e os rapazes gostavam de torcer pelos seus ídolos. Mas como todos nós sabemos, assistir de longe a uma corrida dentro d'água não é tão envolvente quanto ver o pessoal jogando bola. Logo havia um público para os matches do bárbaro esporte bretão, que foi crescendo, com os espectadores torcendo para um time ou para o outro e dando início ao que Mário Filho considera o grande motivo que faria o futebol ser levado muito a sério e ao profissionalismo: a gozação.
Sim, isso mesmo, a gozação. Os torcedores do time ganhador começaram a fazer piadinhas com os perdedores, tais como mandar um chapéu vários números maior para a "cabeça inchada" ou telegramas de pêsames. Isso era inaceitável. Era preciso fazer alguma coisa. Treinar mais. Arrumar jogadores melhores. Levar o jogo mais a sério. E assim foi. Em pouco tempo foi abandonado o amadorismo e os ideais racistas da época. Eles precisavam manter a ilusão do amadorismo, então o clube lhes arranjava empregos aos quais muitas vezes eles nem compareciam. As federações tentavam combater este hábito com fiscais aparecendo de surpresa nos pretensos locais de trabalho dos jogadores e pedindo para vê-los, mas logo todos os clubes estavam fazendo o mesmo e por volta de 1933 o profissionalismo começou a ser implantado no país. Era o caminho que o resto do mundo também vinha tomando, inclusive porque foi por essa época que apareceu a primeira competição internacional exclusiva de futebol: A Copa do Mundo.

FRIEDENREICH

Arthur Friedenreich nasceu em 1892, mas Charles Miller teve tempo de popularizar o esporte o suficiente para que aquele garoto humilde pudesse crescer jogando futebol na várzea. Sua mãe era mulata e seu pai alemão, o que lhe deu pele clara e olhos verdes e permitiu frequentar os clubes da elite e tornar-se jogador de futebol numa época em que o amadorismo servia para mascarar o racismo - acreditava-se que os brancos eram superiores aos negros em qualquer atividade. Mas com o esporte profissional os negros poderiam treinar o dia inteiro, enquanto os brancos, mais inteligentes, com empregos melhores que não poderiam abandonar par ajogar bola, ficariam em desvantagem. É claro que isso é uma completa e absurda bobagem, mas no começo do século XX o governo estimulava a vinda de italianos para o Brasil porque o problema do país era a falta de europeus (!!!) Por conta dessa absurda tolice Friedenreich passou a maior parte de sua carreira alisando o cabelo por duas horas no vestiário antes de cada jogo para que os espectadores não percebessem que ele tinha ascendência negra.
Friedenreich foi o introdutor no futebol brasileiro do drible curto e da finta de corpo. Antes dele os atacantes apenas estavam preocupados em chutar a gol e, para se livrarem dos marcadores, basicamente jogavam a bola na frente e corriam atrás dela, dando um corte de repente. A idéia de fintar o adversário frente a frente nasceu no Brasil com "Fried", como era chamado. Também a ele são creditados os primeiros chutes de efeito (intencional) vistos por aqui.
Friedenreich tornou-se famoso internacionalmente em 1919, quando a seleção ganhou sua primeira competição internacional, o Campeonato Sul-Americano, decidido nas Laranjeiras, quando marcou o gol da vitória de 1 x 0 sobre os uruguaios, que reconheceram o talento do centroavante e apelidaram-no "El Tigre". Ainda em sua época foi considerado o melhor atacante já surgido no Brasil. Em 1925 Friedenreich excursionou pela Europa com seu time, o Paulistano, e venceu nove dos dez jogos, levando a imprensa a chamá-lo de "melhor do mundo".
Friedenreich jogou pelo Germânia (atual Pinheiros), Mackenzie, Ypiranga, Paulistano, São Paulo FC e Flamengo, onde encerrou a carreira aos 43 anos. Ele também foi um dos primeiros jogadores a ter seus gols contabilizados, primeiro por seu pai e depois pelo amigo Mário de Andrada. Em 1962, Mário de Andrada procurou a imprensa e avisou que tinha as anotações completas provando que "El Tigre" assinalara em sua carreira 1.239 gols em 1.329 jogos, marca à época inédita e hoje só superada por Pelé. Infelizmente Mário morreu dias depois, antes que pudesse entregar as fichas dos jogos, e uma pesquisa só conseguiu apurar 554 gols em 561 jogos, ainda assim números extremamente respeitáveis.
Friedenreich nunca se profissionalizou e faleceu em 1969. Após abandonar o futebol ele empobreceu e morava numa casa cedida pelo São Paulo.

Sem comentários: