maio 30, 2006

A História da Copa do Mundo XII - A Copa da Argentina

Os capítulos anteriores estão abaixo deste. Role o blog para baixo para lê-los. Leia desde o começo e acompanhe o fascinante painel histórico sobre a evolução tática e as Copas do Mundo.

A COPA DE 1978 - 6 x 0, O NÚMERO DA BESTA

Em 1976, Isabelita, a outra esposa de Juan Perón, aquela que não era a Madonna, presidia a Argentina, depois da morte de seu marido. Terroristas, comandos paramilitares, caçadores de comunistas e amigos praticavam atentados e matavam pessoas. A economia ia mal. Então, quando parecia que nada poderia ser pior, os militares deram um golpe e tomaram o governo. E, como os argentinos iriam sediar a próxima Copa, decidiram que, para se tornarem populares, nada melhor do que ganhar o título mundial perseguido desde a final de 1930. Era o mesmo raciocínio que Mussolini teve em 1934, Hitler em 1938 e o governo húngaro em 1954.
Mas para os portenhos a coisa não correu tão suavemente. O presidente do comitê organizador foi assassinado por opositores do regime. Já existia a Anistia Internacional e eles ficaram perturbando a FIFA com relatórios mostrando que tinham desaparecido cerca de 10 mil pessoas desde o golpe. E assim como na Alemanha nazista, eles não tinham sido abduzidos por extraterrestres (nem pelo Garrincha).
Mas a FIFA manteve a palavra. E, para mostrar a importância do futebol no país, a oposição fez um acordo com o governo para que não houvesse atentados. E realmente não houve. A nação ficou em paz durante todo o Mundial. Repetindo o gesto de Mussolini, o presidente militar Videla chamou os jogadores da seleção e lhes fez um discurso apelando ao seu patriotismo para vencer o torneio. Eles deveriam fazer todo o possível dentro de campo. Fora das quatro linhas, insinuou Videla, ficaria a cargo dele.
E o Brasil também estava sob regime militar. Ainda. Só que com as crises econômicas do petróleo, os milicos estavam se tornando rapidamente impopulares. João Havelange, fora eleito para comandar a FIFA em 1974. Um almirante, Heleno Nunes, foi indicado presidente da CBD, com o intuito declarado de usá-la com fins políticos. Ficou famosa sua frase "onde a Arena vai mal, um clube no nacional". Onde o partido do governo, a Arena, fosse mal votado, era posto um time do local no Campeonato Brasileiro. Para se ver a quantas andava o prestígio dos arenistas, basta dizer que o "Brasileirão" chegou a ter 104 clubes disputando-o (!!!).
O técnico para a Copa era Cláudio Coutinho. Seu primeiro título com o Flamengo só viria em 1978, depois do Mundial. A lendária equipe de Zico & cia. ainda não havia sido montada. No entanto, Coutinho, que mal começara sua carreira de treinador, estava no comando da seleção desde 1977. Ele foi escolhido por trabalhar há muito com a CBD - era o preparador físico na Copa do México - e porque era... capitão do exército. No final dos anos 60 o presidente Médici, entusiasmado com o trabalho de João Saldanha, chegou a pensar em oferecer-lhe a presidência da CBD e Coutinho foi o encarregado de contar que João era comunista.
Assim, com uma patente inferior à do Almirante, Coutinho aceitou todas suas interferências, mesmo sendo um treinador brilhante, estudioso de teoria e, ao contrário de Zagallo em 1974, atualizado com as concepções mais modernas do jogo. Sendo, porém, um treinador jovem e inexperiente, não conseguiu transmitir grande parte de suas idéias aos jogadores. Usava expressões estranhas ("polivalente", "overlapping", "ponto futuro") e insistiu em experiências descabidas, tais como usar o brilhante quarto-zagueiro Edinho como lateral-esquerdo e o lateral Toninho como ponta-direita! Também cometeu equívocos como deixar Falcão no Brasil e levar o violento cabeça-de-área Chicão.
E assim, mais uma vez o Brasil chegava na Copa sem ter um time titular. As duas primeiras partidas foram medíocres, disputadas num estádio recém-construído, em que o gramado se desmanchava com os jogadores passando por cima. O Brasil empatou em 1 x 1 com a Suécia e 0 x 0. As duas promessas do time, Zico e Reinaldo, não conseguiam mostrar seu jogo, escorregando toda hora. Foi quando o almirante resolveu interferir e sugeriu a escalação do time "pesado", isto é, jogadores menos leves e ágeis, porém mais capazes de enfrentar as defesas fisicamente.
Zico perdeu a vaga para Jorge Mendonça. Reinaldo para Roberto Dinamite. No decorrer do torneio, Cerezo seria substituído por Chicão. E com essa nova formação o Brasil entrou para enfrentar a Áustria. Os austríacos haviam vencido seus dois jogos. Se o Brasil não ganhasse seria eliminado.
A partida foi dura e muito física. Os austríacos se fecharam na defesa. Estavam classificados, mas se perdessem por mais de um gol de diferença, ficariam em segundo na chave. O Brasil conseguiu marcar aos 40 minutos, num lance típico de "centroavante trombador". O brilhante atacante Roberto Dinamite, do Vasco, recebeu um cruzamento de Gil, dominou a bola entre dois zagueiros e chutou para a rede. Os dois times voltaram para o segundo tempo menos dispostos. A Áustria estava satisfeita com o resultado. O Brasil também. Não deveria.
A Argentina também ficou em segundo em sua chave. Seus resultados vinham sendo bem estranhos. Na estréia os portenhos jogaram mal e só viraram o placar contra a Hungria depois que o juiz expulsou dois magiares. Contra a França um pênalti duvidoso providenciou o primeiro gol. Mas a Itália venceu por 1 x 0 e assegurou o primeiro lugar. Assim argentinos e brasileiros integrariam o mesmo grupo na segunda fase. Ia voar pena para todo lado.

BOX

Contra a Hungria os franceses usaram um estranhíssimo uniforme branco com listras verdes verticais. Na verdade as duas seleções haviam ido para o estádio somente com as mesmas cores e não haviam levado trajes reservas. A solução foi fazer um sorteio. O perdedor usou a camisa do clube dono do estádio, disponível nos vestiários.

No grupo 4 estava a sensação da Copa passada, a Holanda. Mas Cruyff não viera. Alegou que não queria ser conivente com a ditadura argentina. Seus companheiros de time espalharam que ele pedira um prêmio em dinheiro. Sem o craque o carrossel não conseguia rodar e a "Laranja" apresentou um futebol bem mais convencional. Quem chegou em primeiro na chave foram os surpreendentes peruanos, com 2 vitórias e 1 empate, 7 gols a favor e 1 contra. Os holandeses só conseguiram a vaga no saldo de gols. Alemanha e Polônia completavam os grupos da segunda fase.
Sem Beckenbauer e Gerd Muller os alemães perderam o brilhantismo. Seu jogo marca-lança-corre-cruza-gol os deixou com chances até a última rodada. Contra os holandeses saíram na frente, mas a "Laranja" partiu para cima no desespero e conseguiu o empate a sete minutos do fim. Van der Kerkhof fez um gol contra e outro a favor. A Holanda também venceu a Itália, o time mais regular da competição, e ganhou a vaga na final.
Do outro lado as coisas foram mais complicadas. O Brasil começaria contra o Peru. O técnico peruano não resistiu a se vangloriar de como seu time era melhor do que os tricampeões mundiais, seu ataque bem melhor e seus jogadores mais habilidosos. Em meia hora a seleção canarinho já tinha feito 2 x 0 em dois chutes de Dirceu, um deles um frango de Quiroga. Os peruanos continuavam com um goleiro tão fraco como em 1970. E olha que eles tinham naturalizado um argentino para ficar debaixo dos paus. Pelo jeito não tinha adiantado muito. Roberto sofreu um pênalti no final e Zico bateu. Placar final, 3 x 0. No outro jogo os argentinos enfim tinham jogado bem e feito 2 x 0 nos poloneses.
A próxima partida já era Brasil x Argentina.
A seleção canarinho entrou assustada, mas logo tomou conta do jogo. Roberto se contundira no pênalti contra o Peru e estava fora de condições. Perdeu gols que normalmente não perdia. Zico entrou no final e também desperdiçou sua chance. O Brasil inteiro acompanhou a partida vendo-a por detrás do gol, já que só havia duas câmeras no estádio, uma atrás de cada meta. A torcida cobria o gramado com confete e rolos de papel higiênico para atrapalhar o adversário. Coutinho achou que o 0 x 0 era bom, já que os brasileiros tinham saldo de gol melhor.
PEEEEEEEEENNNNNNN!!!!!! Erroooooooooooo!!!!!!!
Preocupados em que todos os argentinos vissem como os militares tinham armado uma grande seleção, os organizadores da Copa tinham arrumado para que a Argentina jogasse num horário próprio. Na última rodada eles entrariam depois do Brasil.
Os brasileiros enfrentavam a Polônia, que ainda tinha remotas chances. Os canarinhos saíram na frente, a Polônia empatou aos 44 do primeiro tempo e exibindo em dez minutos mais futebol do que em todo o resto da Copa, o Brasil fez 3 x 1, aos 12 e aos 17 da etapa final. Antes do segundo gol a bola bateu três vezes na trave. A Argentina entrou em campo duas horas depois. Sabia que precisava fazer pelo menos 4 x 0 nos peruanos. Seus jogadores estavam visivelmente nervosos e apressados. Mau sinal.
Para os brasileiros.
O argentino naturalizado peruano Quiroga deve ter se confundido. Provavelmente entrou em campo, viu que a camisa dele não era igual à de nenhum dos dois times, mas como um monte de argentinos estava do outro lado então era com eles que ele deveria jogar!
Quiroga falhou feio em vários lances. Com 5 minutos do segundo tempo o jogo já estava 4 x 0. Terminou 6 x 0. A Argentina estava na final.
Quiroga concedeu recentemente entrevistas dizendo que fora instruído pelo comando da delegação a facilitar as coisas em nome da amizade entre os dois países. Que os dois governos estariam envolvidos. Mas desde aquela noite não só os brasileiros como o mundo inteiro já achava a história toda suspeita. Criaturas mais isentas (provavelmente com sangue de barata) lembravam que o arqueiro peruano tinha falhado grotescamente num gol de Dirceu e que sua seleção entrou em campo eliminada, sem nenhuma motivação. Não funcionou. O jogo ficou conhecido como a maior suspeita de "marmelada" das Copas. Coutinho declarou que o Brasil era o campeão moral da competição, saindo como o único invicto e com mais pontos. Depois da confissão de Quiroga esse título já não parece tão patético e ridículo como a imprensa fez questão de frisar na época.
A final começou catimbada. Como já dizia um engraçadinho, juiz que apita jogo da Argentina merece ganhar adicional de insalubridade. O capitão Passarella, líder e alma daquela equipe, implicou com o gesso que van der Kerkhof usava na mão desde o início do torneio. O jogo atrasou enquanto se discutia o que fazer. O holandês ficou algum tempo debaixo da torneira para amolecer a proteção ortopédica.
Os argentinos jogaram melhor no primeiro tempo e fizeram o primeiro gol aos 38 minutos. No segundo voltaram para segurar o resultado e a "Laranja" apertou, mostrando o brilhantismo de 1974 em alguns momentos. Empataram aos 38 do segundo tempo. No último minuto Resenbrink entrou livre na área, deslocou o goleiro Fillol com um toque e viu a bola bater na trave. A partida iria para a prorrogação.
E nela só deu Argentina. Os holandeses pareciam sem condições físicas. Os portenhos, cheios de fervor patriótico e empurrados pela torcida, correram muito mais e fizeram 3 x 1. A "Laranja" faria companhia à Hungria e ao Wunderteam no rol de seleções brilhantes e sem título. Provavelmente aqueles jogadores andam por aí até hoje dando entrevisttas na tevê holandesa de como o futebol era mais bonito no tempo deles. Na disputa pelo terceiro lugar o Brasil bateu a Itália por 2 x 1, com uma bomba de Nelinho da lateral que fez uma curva de virtualmente 90 graus antes de entrar na rede, um dos mais belos chutes da história. O gol italiano veio de uma jogada de um certo Paolo Rossi.
Foi a Copa mais equilibrada da era moderna. A maioria dos times estava recheada de atletas velhos demais misturados com outros inexperientes demais. Todos tentavam imitar pelo menos algumas idéias do carrossel holandês, mas a maior parte de seus jogadores já estavam na ativa bem antes de 1974 e não compreendiam bem os conceitos de alta movimentação. O técnico da Argentina era César Menotti, que se advogava defensor do futebol ofensivo e utilizou um 4-3-3 com pontas abertos. Com o apoio dos laterais e do zagueiro Passarella em certos momentos os argentinos reviviam o 2-3-5 da Pirâmide do século XIX!
César Menotti, num gesto bem mais significativo do que a ausência de Cruyff, recusou-se a cumprimentar os militares na festa da vitória.

MARIO KEMPES

Kempes foi em 1978 o artilheiro da Argentina e da Copa, com 6 gols. Rápido e ciscador, com chute forte e preciso, foi o coração do ataque portenho no Mundial. "Ele é forte, tem excelente técnica, cria os espaços e tem um tiro poderoso. Jogadores como ele podem decidir uma partida", definiu-o César Menotti.
Kempes era extremamente disciplinado. Nunca levou um cartão amarelo jogando pela Argentina e talvez por isso tenha jogado apenas 48 vezes pela sua seleção, embora já integrasse o time na Copa de 1974, com apenas 20 anos. Possivelmente os outros jogadores não viam com bons olhos aquele certinho. Quem ele pensava que era? Será que ele achava que era melhor do que eles?
Brincadeiras à parte, Kempes realmente terminou cedo sua carreira com a camisa azul e branca. Com apenas 28 anos cedeu a camisa 10 a Maradona e o novo técnico, Billardo, não se preocupou em tentar pô-los para jogar juntos. Sua estratégia era liberar o baixinho para jogar, com os outros 10 defendendo e correndo.
Kempes fez os dois gols que decidiram a Copa de 1978. Presente no 4 x 1 que a Holanda aplicou na Argentina em 1974, ele credita boa parte da raça que demonstrou em campo à vontade de vingar aquela humilhação (e foi um banho de bola mesmo, o melhor jogo do carrossel holandês).
Ainda em 1978 Kempes foi contratado pelo Valencia, um dos primeiros do grande êxodo de jogadores para a Europa que ocorreria no final dos anos 70. Jogou por um ano no River Plate, em 1981/2, e voltou para o Velho Mundo. Pendurou as chuteiras somente em 1996, aos 41 anos, tornando-se técnico. Sobrte sua relativamente curta carreira no selecionado argentino, certa vez declarou, com seu tradicional cavalheirismo, que "meu país deu a sorte de produzir extraordinários jogadores um atrás do outro".

2 comentários:

André Gonçalves disse...

Não sei porque nenhum comentário a esse excelente texto.
Parabéns, "revi" toda a Copa de 78 agora.

Abraço, bom 2008.

Ave disse...

Obrigado, André.