Dourada a pele, dourados os cabelos. Eu sou o privilegiado, eu tenho a medalha de ouro, os cabelos podem ser pintados, a pele pode ser de bronzeamento artificial, ela é bela, bonita, gostosa e segura minha mão como se fosse minha filha, como se estivesse acostumada a fazê-lo, como se não estivesse sendo paga para isso, seus olhos, olhos claros - são claros, sejam lentes ou não - sem paixão mas com carinho e meiguice olhando o beijo molhado, apaixonado de minha esposa, olhos fechados, abertos os de todos em volta, observando minha linda mulher e minha outra bela mulher, invejando-me, eu sou o privilegiado, eu tenho a medalha de ouro, os cabelos louros que seguram minha mão, podem ser pintados, a pele bronzeada em lâmpadas ultravioletas em quartos fechados e suarentos, iria ver a marca em breve, se só da calcinha ou da calcinha e sutiã, se marca de lingerie ou de biquini, veria os pelos, se escuros ou claros, mas já não importaria, não importa, importa o beijo, o beijo da boca que eu conheço bem, igual a todos os outros que demos, os mesmos lábios, a mesma língua, o mesmo tempo, o mesmo timing, a mesma exploração nos dentes, no palato, o mesmo gosto na saliva e uma mão tão diferente, menor, menos quente, com os dedos mais finos, uma mão que não é daquele beijo, uma mão que não é daqueles lábios, uma outra mão me segurando, afetando afeto e um tanto de indiferença profissional, negada ligeiramente esta pelo leve puxão de "vamos embora" para longe do beijo da minha esposa.
O beijo termina, minha mulher abre os olhos lentamente, vê apenas a mim, assim como a maioria dos passantes invejosos do aeroporto.
- Tchau, amor. Boa viagem.
- Ele vai ter, pode deixar - sorri a loura provavelmente oxigenada. Quem diria, ela tem senso de humor, mais pelo mesmo preço.
E a mão dela me puxa de vez, andamos para o embarque e olho minha mulher me sorrindo, ela também se sente bem, ela também tem outros motivos de orgulho, ela também está excitada com o fim de semana, eu na feira, ela em casa, nosso apartamento só para ela, o Sol, a cidade e o tempo livre só para ela, sem contar o resto.
O resto agora segura o meu braço e o esfrega levemente.
E fala.
- Vamos logo.
E completa o porquê.
- Eu adoro andar de avião.
- Não faço nada em banheiros de avião.
- O quê?
- Eu não faço nada em banheiros de avião.
- Então você não deve fazer viagens longas.
Ela é melhor do que eu pensava.
A viagem é exatamente como eu pensava. O avião sempre o mesmo, a comida sempre a mesma, a aeromoça sempre a mesma, a aterrissagem sempre a mesma. Sem acidentes, sem desastres, sem cadáveres, apenas o ar condicionado. E as janelas de plástico.
Ela gosta, procura a paisagem entre nuvens e indefinição, se cansa e encosta em meu ombro, eu a acaricio e depois a beijo, ela se entedia e procura a paisagem novamente, ela gosta de viagens de avião, não deve viajar tanto assim, eu viajo, viajo sempre, preso entre janelas de plástico e vozes de comandante, quarenta e cinco minutos, uma hora, duas horas, doze horas, os aviões vêm e vão, muito mais belos e excitantes quando vistos de fora, cheios de promessas de viagens e viradas, por dentro esforçando-se terrivelmente para serem apenas ordinários, não assustarem ninguém, não querem mudar nada, não querem destruir nada, pode ficar confortável em seu assento.
A bela loura cansou de novo de procurar paisagem e encostou a cabeça no meu ombro. Acaricio-a de novo, a aliança prende levemente em um de seus cachos. A aeromoça traz o lanche. Eu, homem de meia-idade, controlo tudo o que como, quero me manter vivo, vivo e jovem. Ela, viva e jovem, pede o prato dela e o meu.
- Você vai estragar o seu apetite.
- Vou nada.
- Quando chegarmos, podemos jantar num lugar muito melhor...
- Ótimo - continua comendo - Eu vou adorar.
Eu sorrio. Eu gosto dela. Ela é adorável.
- Você tem namorado?
Ela nem pára de tomar o vinho, a primeira coisa que pediu no restaurante, não lhe sugeri nenhum de brincadeira, como se fora um desafio e ela perguntou diretamente ao garçom qual ele recomendava. Não pediu o mais caro. Gosto cada vez mais dela. Penso que a pergunta seria um exame clínico, tudo isso, tudo que estamos fazendo, essa falsa corte, esse falso amor, tudo seria impessoal, orgânico, fisiológico, mas eu sei, eu sou pragmático, tudo isso na verdade é apenas pragmatismo, um entendimento cínico da meia-idade sobre o temperamento humano, sobre o meu temperamento, eu sei que estou perguntando isso com uma ponta de ciúme e ela, ela nem pára de tomar o vinho enquanto balança a cabeça de um lado pro outro.
Não.
E põe o vinho sobre a mesa e é a vez dela.
- E você?
- Eu? Eu o quê?
- Tem namorada?
- Você viu a minha mulher.
- Mas tem namorada?
- Já não bastam minha mulher e você?
- Ela é sua mulher e eu sou garota de progama.
- Não, eu não tenho namorada. Basta a minha mulher.
- Ela é mais nova que você.
- Não tanto.
- Mas é.
- É.
Pausa.
- Ela é minha segunda mulher.
- O que houve com a primeira?
- Nos separamos.
- Por causa dessa mais nova?
Minto.
- É.
- Viu? Então você já teve namorada.
- É.
Pausa. Minha vez de perguntar.
- E você, por que não tem namorado?
- Com essa vida?
Eu me calo e falo sobre a comida, o restaurante e o vinho. Este faz ela rir à toa o resto da noite.
Até ela sair do banho, toalha na cabeça, roupão e lingerie elegante por debaixo deste.
Ela é boa.
- Tá certo, amor. Eu sei. Amanhã vai tudo dar certo.
Ela senta na minha frente e olha pra mim.
Ela percebe que eu estou falando com a minha esposa, eu fico esperando que ela vá fazer alguma gracinha, vá fazer uma careta, vá me abraçar, me acariciar, me chamar.
Ela fica quieta.
Eu me despeço, digo tchau, amor.
- Tchau, amor.
Desligo o telefone e subitamente estou num quarto de hotel, fechado entre paredes sem os meus livros, sem os meus discos, sem os meus quadros, sem a minha mulher.
A moça loura me olha e me sorri, um sorriso compreensivo, um sorriso de perdão, um sorriso lindo, um sorriso profissional.
- Hoje não.
- Não - confirmo - Não deu.
- Tudo bem, amor.
E me dá um beijo longo, molhado e de carne, um beijo como aquele que ela me viu dando no aeroporto, parecido, ela se lembra, ela guardou na memória, por um instante eu esqueço que não é minha cama, não é minha casa.
É apenas o meu corpo.
Descemos juntos no dia seguinte, as mãos dadas, os dedos entrelaçados. Sinto os cabelos dela no meu braço. Sinto o calor dela quando ela encosta a cabeça no meu ombro, quando entra gente no elevador. Seus dedos, macios, unhas bem tratadas, continuam entrelaçados nos meus mesmo quando entramos no táxi. Sinto uma pequena resistência quando tento soltar, mas seus olhos continuam olhando a paisagem úmida na janela, mesmo quando já livre abro a maleta.
O motorista de táxi ajeita o espelho tentando ver melhor o decote dela. Ele nem imagina que não é tão difícil quanto ele pensa. Devia ser mais, devia ser quase impossível, ela não devia ter preço, chamando tanta atenção, desviando tantos olhares, desejada ainda que completamente desconhecida, fantasiada em mentes que normalmente não conseguem visualizar um espaço tridimensional, ela devia desdenhar de todos, se apaixonar somente por um rapaz fechado e calado, misterioso e sombrio, que só ela conhece. Ela é dourada, ela é linda, ela é a medalha de ouro. Tão bonita quanto minha esposa, ambas quase da mesma idade.
- Pensei que depois desse casamento tu ia dar um tempo...
Ela não entrou na sala, bastou ao gerente vê-la ali fora sentada folheando uma revista desinteressante, um house organ sem sequer muitas fotos. Ela vai se entediar. Iria acabar se entediando de qualquer maneira. O tédio é nossa arma. O tédio está do nosso lado. Nossa empresa não existiria sem o tédio. Nossas vendas não cresceriam sem o tédio. Tantos olhos não se voltariam a ela não fosse o tédio. Ela nem lê a revista, procura as fotos que não aparecem. Olha a parede. Ela não ganharia tanto dinheiro se não fosse o tédio, o que ela faz para combater o tédio? Eu vim para cá discutir isso, onde devemos procurar melhor o tédio? Ela faz como nós, põe anúncio nos jornais, gente entediada que já leu o que queria gosta de ler os anúncios de acompanhantes nos classificados. O tédio é nosso aliado. O tédio convive com cores e movimento, com monocromia e monotonia. Não iríamos longe sem o tédio. Morreríamos cedo sem o tédio. As civilizações morrem de tédio. Meu primeiro casamento acabou por causa do tédio.
Minha esposa sozinha, entediada.
Só há uma recepcionista para olhar na sala de recepção. A decoração é elegante. Limpa. Moderna. Entediante.
Nossos planos de campanha, nossas idéias e nossos projetos, nos preparamos o melhor possível para discordar bastante antes de concordar em alguma coisa. Digo não até mesmo quando ele fala algo com que ele concorda. Ele diz não mesmo quando digo algo que sei que ele aprova e me faltam argumentos para rebatê-lo. Mesmo tão preparado, mesmo pronto para entrar em batalha, mesmo tendo posto todo mundo para trabalhar nesse projeto por mais de duas semanas, ainda assim minhas convicções não são racionais.
E, no fim concordamos com exatamente tudo em que esperávamos que houvesse concordância.
- Não vai me apresentar a ela?
- Você não acha que a minha mulher merece um mínimo de respeito?
- Engraçado.
Ele pára.
E diz o esperado.
- Você agora só deu pra arrumar mulher bonita, hein?
- Tirar o tempo perdido. Fui muito tempo fiel no meu outro casamento.
- E qual que trepa melhor?
Ambas. Juntas.
Já vamos nos beijando de volta no táxi. Esse taxista não se impressiona tanto com ela. Ou comigo. Ou com nossa esfregação. Nem tentou puxar conversa. Desde que entramos.
Profissional.
- Você demorou tanto lá dentro.
- Negócios. Mas também vou demorar muito lá dentro quando a gente chegar.
- Desde ontem que a gente está pra chegar.
- É um longo caminho para Délhi, moça...
- Como?
- É a longa Estrada da Perdição.
- Ih, começou...
- É que de minha vida em meio à jornada achei-me em selva tenebrosa, tendo perdido o verdadeiro caminho...
- Saco. Pára com isso.
- É uma escadaria para o paraíso.
- Tá melhorando.
- Chegamos.
- Eu não disse?
O taxista puxa a tabela do porta-luvas e ela a minha carteira, dentre beijos e mãos na coxa.
Pago.
Estou entrando no hotel.
Agora não há volta.
Vou resolver minha vida. Minha vida amorosa, sexual, afetiva, social. Mulheres. Tempo. Seus seios, suas bocetas, suas bocas, suas línguas, suas carências, suas mãos correndo pelo peito, seus cabelos caindo por nossas costelas suas coxas subindo pelas nossas enquanto elas falam e falam e eu ainda hoje busco o cigarro que larguei há cinco anos depois das primeiras dores no peito e linhas erráticas no ECG, as mulheres que invadem minha vida e a abandonam, me abandonam, eu, divorciado, tanto que amei minha primeira mulher, amiga de todos os meus amigos, desconfiada de meus patrões, exigente de tempo, tempo que eu não tinha mais, tempo que eu não achava mais, amiga de meus colegas de trabalho, amiga de meus chefes após conhecê-los melhor, amiga minha, amiga de todos, com sua conversa envolvente, seu dom para deixar as pessoas à vontade, seu carisma, imenso carisma, movido a carência, a mulher que me acariciava enquanto eu ficava em frente do Apple II, do XT, máquinas que ela não entendia, ela gostava de pessoas e conversas, Ana, simples, palíndromo, palíndromo curto, óbvio e simples, uma mulher óbvia e simples, uma mulher adorável e eu, mal tinha tempo para adorá-la, todos a adoravam, eu também, até hoje a adoro, mesmo quando a vejo passando, nós nos cruzamos, ainda hoje, nos cruzamos em corredores de agências, de academias, em filas de cinemas multiplex e restaurantes, em filas para pagar o estacionamento do shopping e para comprar o ingresso para a sessão da meia-noite, podia ser até a das dez, hoje tenho tempo, tempo e dinheiro, eu ralei, ralei muito, até mesmo porque já nem tinha mais sua companhia, ajudava a esquecer, ajuda a esquecer, como essa moça loura, loura e limpa, limpa e cheirosa, Ana não estava sempre limpa, seu cabelo descabelava com facilidade, ficava uma mecha caindo pela fronte, pela frente, Ana ainda hoje, ainda hoje sorri e fica nervosa na minha frente, ainda hoje se perturba um pouco, por que me largou então, eu sei, eu sei porque ela me largou, Ana,
mas aí chega o Leonardo, amigo meu de faculdade e ela arruma uma desculpa para ir embora com o marido.
- Cara, ainda bem que te peguei antes de vocês começarem.
A bela loura olha para ele, desafiadora.
- Começarmos o quê?
- A noite.
Boa saída.
O homem com quem passei a tarde conversando e discutindo e ouvindo sobre a beleza da garota que trouxe à cidade comigo explica-se.
- O Souza tá na cidade. Você precisa falar com ele.
- O Souza? Mas ele não tinha uma reunião hoj...
- É. Ele tá vindo de helicóptero. Ele quer ver o projeto.
Tempo, sempre o tempo.
Quanto antes nos livrarmos desse projeto, melhor. Para frente, para trás. Há outros vindo. Diferentes e iguais, idéias velhas e recicladas, conceitos econômicos e informáticos e se procurarmos, procurarmos bastante, procurarmos bem no fundo, bem debaixo da pele de qualquer proposta nossa para o nosso trabalho, seja recolher lixo ou neve, seja criar computadores ou bicicletas, sistemas de informática ou jogar futebol, sempre, sempre vamos achar uma mensagem sobre a nossa vida pessoal, nossa vida privada, algo, um pequeno segredo. Facilitar as viagens para nos lembrarmos daquela em que encontramos um amor agora perdido. Aumentar as taxas, saudade de quando contávamos o dinheiro para jantar fora.
O tempo, sempre o tempo.
- Vai - Ela dá o conselho.
Ela não recebe por hora.
Eu vou.
Vou andando para frente e de vez em quando me viro, viro para olhar a beleza de seus olhos.
E lá no fundo, bem no fundo, ela não parece aliviada ou contente, ela parece um pouco, um tanto, melancólica, triste.
Ela parece com saudade.
E eu vou partindo.
Então me lembro, já dentro do táxi.
Preciso telefonar para minha mulher e não posso fazê-lo na frente de ninguém, muito menos desse colega de trabalho me levando ao Souza. E muito menos na frente do Souza.
- Preciso dar uma ligada.
- Tá sem celular? - Ele me passa o dele.
- Não... não é isso.
- Qual o problema? - Ele já suspeita de uma traição. Eu não sou um funcionário tão graduado assim.
- Minha mulher.
- E..?
- É particular.
Ele se lembra da bela loura que estava comigo e da qual ele sentiu inveja. Ele se lembra da minha bela esposa. E ele não entende.
Continua suspeitando, ele quer suspeitar.
- Não pode ligar daqui?
- Não.
- Liga quando chegarmos.
- Tem que ser agora.
- Cara, o que você tem que falar com tua mulher aqui no meio da rua?
- Eu preciso.
- Liga de lá.
- Vai ser tarde.
- Voc
- Pára esse táxi!
- ê tá ficand
- O táxi! Pára o táxi!
- o malu
- Agora! - Agarro o braço do motorista, ele tem o reflexo de todo o motorista, mete o pé no freio.
O carro derrapa um pouco e discutimos os três um pouco. Finalmente, ele me empresta seu celular.
Inclusive porque ele vai poder ver pelo aparelho para onde eu liguei.
Ela atende.
- Amor?
- Oi, amor... tudo bem?
- Tudo.
- Tô morrendo de saudade.
- Eu também.
- Peguei uma praia hoje... o tempo aqui tá ótimo... e aí?
- Tá bom também...
- Como é que foi a conversa?
- Foi boa, foi muito boa... nada demais, aquilo que eu já esperava mesmo... quer dizer, não resolvemos nada ainda...
- Eu fui à praia sozinha hoje... Sabe, acho que nunca tinha ido à praia sozinha... Sempre ia com uma amiga, quando eu tava sozinha...
- Legal... olha... você tá sozinha agora?
- ...
- Amor?
- Não.
Ela pausa e completa.
- Você sabe que não.
E pára mais um pouco antes de continuar.
- Aquele amigo... aquele cara que a Teresa... a Teresa falou...
- Você está bem.
- Eu... eu não sei.
- Como ele é?
- Ele é legal. Acho que tão legal quanto a moça. A moça é muito legal, não é? Ela é um amor.
- Você é muito mais.
- Eu estou com saudades.
- Eu também, eu já disse. Eu queria estar com você, amor. Eu queria não ter que viajar tanto. Eu queria não ter que trabalhar tanto. Eu queria tanto estar com você. É justamente por isso, amor.
- Ele é legal.
- Hm?
- O cara. Ele é legal.
- Qual é o nome dele?
- Ele disse Maurício, mas eu duvido que seja.
- Você está ficando mais esperta.
- É a convivência.
- Olha, é o seguinte: não começa nada agora não. Eu vou ter que falar com o Souza.
- Quem é o Souza?
- É o superdiretor regional.
- Caraca...
- Eu não gosto quando você fala isso...
- O que você quer que eu diga? Tem gente aqui.
- Pois é. Manda esperar. Eu tenho que ir. Daqui a pouco a gente se encontra.
Já estou sendo olhado com muita raiva.
- Olha, eu realmente tenho que desligar. O gerente daqui já está ficando muito desconfiado dessa conversa longa que eu tive que fazer escondido dele.
- Eu entendo.
- Eu sei que você entende. Você é muito esperta, amor. Por isso que eu te amo.
Eu desligo.
- Vamos nessa.
O táxi roda mais um pouco. Chegamos a um portão. Não é um hotel. É uma casa. Uma casa com portão e caminho. Jardim e regatos. Esculturas modernas em pedra.
Limpas.
O jardim também está limpo. Não é aristocrático. Sua imponência está na limpeza e na iluminação.
Há um valete ou algo que o valha para pagar o táxi.
Há um mordomo ou algo que o valha para nos abrir a porta.
A iluminação do escritório onde entramos é indireta. Há uma televisão embutida na parede ligada no Bloomberg. Tudo somado, há pouca luz. Há um abajur na grande mesa no fundo, Um foco revelando um rosto.
Souza.
- Boa noite.
Ainda não é meia-noite quando saio da casa do Souza. A criadagem chamou um táxi e eu embarquei.
Os metais impecavelmente polidos. Os bronzes brilhando dourados. Os vidros sem rachaduras. As tábuas corridas sem falhas.
Uma das casas de Souza. Ele vive percorrendo a região. Tem outras.
Eu chego ao hotel e subo ao quarto.
Abro a porta, mas antes de acender a luz da ante-sala, ouço a voz da bela loura.
Ela está conversando com alguém.
No telefone.
Eu paro e não me revelo. Eu vou espiá-la.
- Eu sei, amor. Morro de saudades. Não devia ser assim.
A idéia de estar vendo-a sem que ela me veja me excita. Vai ser melhor do que eu pensava.
- Não pensa nessas coisas. Esse corpo é só teu, meu amor.
A voz é chorosa.
Ela mentiu para mim.
Eu fico mais excitado ainda.
Sento o mais silenciosamente possível, sorrindo.
- Eu gosto é da tua boca. De você me chupando. Me beijando. Gosto do teu peito.
Meu coração aperta.
- Gosto do teu suco, amor. Gosto dos teus dedos, você sabe que eles me machucam. Eles me machucam e eu fico só pensando em você.
Meu coração aperta mais ainda.
- Só em você.
-
- Também. Pára, Débora, pára com isso senão eu não vou conseguir fazer o serviço.
-
- Eu te amo. Você sabe que eu te amo tanto.
-
- Pra você também.
Ela desliga e entra no banheiro. Nem me viu.
Meu coração bate forte e apertado. Parece que há algo cinza dentro do meu peito. Parece que falta engolir alguma coisa. Parece que não há ar suficiente no mundo para mim. Que eu deveria rasgar meu peito para tê-lo, para que ele o atravessasse, para que eu conseguisse respirar.
Uma putinha.
Ela é uma putinha e eu fico assim só porque ela é lésbica? Eu me sinto como na faculdade, o Fernando agarrando em dois minutos a menina que eu passei o semestre e a festa inteiros paquerando gentilmente. Eu me sinto como quando eu e Ana conversamos longa e intimamente pela primeira vez porque nosso namoro estava ficando sério e ela me contou do grande amor da vida dela e como eles se davam bem sexualmente. Eu me sinto como no dia em que tive certeza que Ana voltara a ter vida sexual após nossa separação - e, pior, foi um amante de uma noite só. Um corpo que eu não voltaria a ter, uma mulher que eu amava tanto e um sujeito nem tão bonito assim, meio bêbado, a violentava assim com seu consentimento.
Ninguém mais fala violentar. Ninguém mais se importa com isso.
Garota de programa.
Piranha. Vagabunda.
Lésbica.
Sapatão.
O telefone toca. O chuveiro está aberto, será a Débora? Ela quer me ouvir? Débora? Vou foder tua mulher hoje a noite toda. Vou estuprá-la com o consentimento dela e você vai ficar sabendo.
E ainda assim, lá entre o coração, os pulmões e o diafragma, uma vergonha apertada tão constrangedora que chega a ser boa de tão velha conhecida minha, uma sensação de perda, de algo quebrado, de humilhação.
Débora.
Você vence.
Ainda assim você vence, Débora.
- Amor?
- Oi, Priscila.
- Já chegou?
- Cheguei. Tá tudo bem.
- Cadê a moça? A moça bonita?
- Tá acabando de tomar banho.
- O Maurício também. (Hi, hi) Eu saí antes pra não começar tudo. Foi difícil.
- Você bebeu?
- Um pouco. Eu tava nervosa. Você sabe que eu gosto de álcool. Me deixa com reflexos rápidos.
- Você tá excitada?
-
- Você tá excitada?
- Um pouco.
- Um pouco?
- É. Um pouco. Eu me sinto uma garotinha que os pais viajaram.
- Os pais?
- Devia ter dito o pai?
- Eu não tenho filhos.
- Você tá chateado?
- Por quê?
- Você tá chateado. Você que inventou isso. Eu não queria fazer isso. Você que inventou isso.
- Eu não estou chateado.
- Eu tava muito chateada.
- Por quê?
- Eu te amo.
- Eu também te amo.
- E a moça é muito bonita.
- Você é muito mais, Priscila.
- E você tava com ela aí há dois dias... você disse que a gente ia fazer junto. Mas me ligou com a história do Souza.
- Não era historinha, Priscila. Era verdade.
- Você queria transar com a menina sem eu ouvir.
- Não, Priscila.
- Você se arrependeu... a gente ia ficar junto, você que disse.
- A gente vai ficar junto, Priscila.
- Eu não queria beber, mas eu tava sem graça. O Maurício é bonito, mas eu tava chateada...
- Não fica mais, Priscila.
- Não. Não vou ficar mais. Não tô mais. Ele tá no banho.
Uma suspeita, uma suspeita leve, quase só uma aragem e de repente, de repente cai da cabeça ao coração, aperta o peito, oprime.
Outro aperto no peito. O Fernando. A Ana. A Débora.
Priscila.
Priscila, meu amor, minha garota.
Minha menina.
Meu amor.
A voz abaixa, mesmo sem que eu queira, fica mais grave, fica mais sem ar, mas pergunta.
- Vocês... já... transaram?
-
- Priscila?
- Não.
- Não?
- Não. A gente resolveu tomar um banho antes e... e foi... foi ficando bom, eu saí senão não ia dar.
Você está ficando mais esperta, amor.
Deveriam ser dois braços frescos e ainda úmidos do banho subindo pelas minhas costas. Deveriam ser dois seios maravilhosos, com sua consistência única, macia, sem ossos, sem dureza, apenas carne e sangue saudáveis envolvidos por pele lisa e sua ponta endurecida e firme encostando em minhas espáduas.
Deveria ser a menina subindo pelas minhas costas, tentando me seduzir, mas não. São dois braços de bonecas de pano me envolvendo. Dois pesados sacos de óleo com um canto plastificado.
Seus lábios, em contacto com meu pescoço, minha nuca, minhas orelhas, deveriam me arrepiar, com sua língua levemente úmida ciciando em meu corpo, mas não, não é, é saliva cheia de bactérias de dentes mal escovados, são saliências íntimas na língua me raspando, são dentes cortantes deslizando pela minha pele.
- É agora, amor?
- É agora, amor?
As duas falam, uma em cada ouvido e eu digo mecanicamente que sim, meu corpo funciona, minhas glândulas se ativam, meu pau se enche de sangue, uma boneca de pano me enlaçando, mas ainda assim estou enlaçado, sinto o cuspe pegajoso dela formar uma baba em meus lábios, mas ainda assim estou sendo beijado, ouço minha esposa murmurando, nos braços de outro homem, mas ainda assim é minha esposa murmurando, essa, essa era a idéia desde o começo, desde que ficou claro, minha vida ia prosseguir, meu trabalho ia prosseguir, as viagens, tantas, curtas mas frequentes, raramente longas, a distância, a ausência em momentos importantes, a carência, a ausência, eu tentei, pedi mudança de cargo, transferência, talvez um pequeno corte no salário, mas os tempos estão tão difíceis, tanta gente trabalhando tanto, tanta coisa de que necessitamos nesse pouco tempo que temos, tanta coisa que custa dinheiro, tanto coisa, a menina de cabelos dourados, de pele dourada, de coração de ouro, é preciso estimulá-la, provocá-la, ela não pode sentir o vazio nas minhas ausências, não pode ficar sozinha e ligar para os amigos, são tantas as viagens para o trabalho, são tão poucos os trabalhos que pagam tão bem, minha carreira, minha vida, trabalhei tanto para isso, para te dar o melhor, Priscila, para que você se sentisse a vencedora ao meu lado, Ana, Ana se sentia, mas tão pouco eu ficava ao lado dela, as amigas se divertindo, sempre acompanhadas.
- Você tá ouvindo, amor? Ele... ele tá entrando agora.
- Ela já entrou há muito tempo?
- E que que a menina tá falando? Deixa eu escutar ela? Deixa?
Deixo, Priscila, você sempre foi curiosa. Inteligência. Isso é sinal de inteligência. Uma menina tão nova e tão sozinha, abandonada em casa tanto tempo pelo marido, uma mulher na idade de namorar bastante, de galinhar, Ana, Ana que era mulher, mulher da minha idade, Ana não aguentou, ela queria família e filhos e eu, eu tinha que ganhar o suficiente para sustentá-los, eu ponho o fone para Priscila ouvir os gemidos da garota de programa, Priscila solta um tão grande e sensual que vejo que ficou excitada, imagina se ela soubesse que o murmúrio da garota provavelmente é mais de nojo de meu corpo peludo do que de prazer, Priscila grita que ele está enfiando, a moça se balança, me cavalga, bem-vindas ao meu mundo, um pouco aqui, um pouco acolá, nunca em lugar nenhum, tantos assuntos para resolver, é preciso vencer, conquistar, ganhar, vim, vi, venci e voltei correndo para a base porque tinha que ir, ver e vencer em outro lugar, o ganhador, tem que correr atrás, Priscila, tão bonita, uma medalha de ouro, belíssima, o troféu, os despojos.
- Meus peitos. Ele tá beijando. Ele lambe e chupa... Ele tá me tocando uma... siririca... hmmmmm...
- Hm... faz em mim também?
- Não dá. Lá em casa é viva voz. Eu...
Ela me beija e me cala. Beijo quente, de cuspe velho. Débora deve adorar. As duas devem dividir a escova de dentes. Não. Devem ser duas. Esta aqui deve ganhar o suficiente para isso. Pelo que estou pagando. O prêmio. A minha outra medalha de ouro.
- Eu... eu... acho... acho que vou... vou...
Eu sei.
- Vou...
Minha mulher. Minha esposa. Tanto que esperei para conquistá-la. A dúvida. A diferença de idade. De cabeça. Mas que cabelos. Dourados. Do ouro. Uma medalha de ouro. Muito. Demais. Boa família. Safada e pouco experiente. O troféu maior.
- Vou...
Ela vai, eu sei que vai, eu conheço, gosto tanto de ouvir isso, mas são tão poucas as oportunidades, eu ia ter que viajar, eu ia ter que viajar muito, eu tentei evitar, mas ela é uma medalha de ouro e merece um vencedor, um ganhador, Ana não aguentou, a distância atrapalha, não existe cabeça, existe o coração, não tínhamos filhos e Priscila também não quer agora, é nova demais, é um doce, um amor, tão inteligente e bonita e bem de vida e vai ficar tão longe de mim e vai se apaixonar, temos que ser pragmáticos, a vida é pragmática, os negócios são pragmáticos, estes não são tempos de ideologia, não são tempos de fé cega e faca amolada, o corpo fala, mais alto do que as promessas de amor, ia acontecer, mais cedo ou mais tarde, minha Priscila, minha esposa, por que não trabalhar isso, não tentar lucrar com isso?
- Vou gozar.
E goza, goza contraindo o abdomem, parece uma contração involuntária, às vezes me levanta, será que está levantando o Maurício ou ele tem um abdome capaz de se contrapor ao dela todo sarado? Ia acabar acontecendo, então por que não fazer que aconteça a meu favor, duas mulheres, duas maravilhosas, os cabelos dourados, a pele dourada, todos me invejam, tenho minha mulher e as melhores garotas de programa juntas, não serei traído, farei um jogo, eu e Priscila, minha mulher, ela não irá me abandonar como Ana, ela perceberá que sou um vencedor quando todos me olharem com inveja, duas mulheres me beijando no aeroporto, meu pau, meu pau começa a gozar mesmo que a pequena lésbica me pareça mais um peso na virilha sufocando meu pau com suor do que, eu começo a gozar e ouço os gritos, os gritos de Priscila enquanto gozo uma golfada tão longa de uma única vez que chega a doer o períneo, a próstata alongada demais, uma gozada tão longa e sem sabor, sem sentido, uma gozada de um vencedor, de um conquistador que perdeu sua alma, de Tamerlão que dominou o mundo todo para entregá-lo à mulher que já havia morrido quando ele voltou. Iria acontecer, de qualquer maneira. Só um pode ser o melhor. Só um pode conquistar a medalha de ouro. Mais cedo ou mais tarde ela me trairia. Tantos amigos sem trabalhar. Tantos amigos jovens e firmes. Tantos amigos de famílias ricas, com mesadas tão grandes quanto meu salário. Por que correr atrás da vitória? A medalha de ouro é difícil demais. O pódio está bom. Ficar com a medalha de bronze. Uma corrida boa. Uma excelente colocação. Só o hino que não toca. Uma medalha de qualquer jeito. Um pódio. Entre os primeiros. Entre os bons. Entre os melhores. O medalhista de prata odeia o que ganhou a medalha de ouro, o cara da medalha de bronze é da turma. Bronze. Terceiro. Pódio. Pontuar. Tábua de classificação. Conseguir a vaga. O índice.
- Eu gozei, amor. Amor?
A garota percebe que eu gozei e tenta me beijar. Priscila me chama.
- Fábio? Fábio?
Eu desligo. Eu fui criado para competir e vencer. Não sei perder. Nunca soube perder, nunca saberei perder.
Não sou bom perdedor.
janeiro 24, 2006
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1 comentário:
Caro Luis, cheguei aqui por causa do blog do Arnaldo Bloch, no Globo on. Li em seu perfil que vc trabalho no TRT. Coincidência, eu também! trabalhamos lá e vivemos por aqui, no mundo exterior e no mundo virtual. Muito bem. Nos falaremos.
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