janeiro 02, 2006

POESIA SEM TÍTULO

O foguete era movido a água e pedal
Pisava-se num êmbolo e a miniatura do Saturno 5
Subia aos céus e nós éramos os astronautas
Eram foguetes e bombas atômicas e discos voadores
e cérebros eletrônicos e televisões
e raios lasers e interferona e a cura do câncer
E nosso foguete ia decolar do meio da rua
que tinha poucos carros e muita criança onde a gente morava
E brincávamos e fazíamos barulho quando um homem calvo e de peito grisalho
ou era a camisa que era branca e hoje se faz corpo em minha memória
Abriu a porta e nos chamou do quintal de sua casa
Que entrássemos e acompanhássemos com ele
O Saturno 5 ia subir
Ia decolar
Levar o homem à Lua
Levar o homem a outros mundos
Levar o homem ao futuro
E nós entramos e vimos em embaçadas imagens em preto e branco
deformadas pela curvatura das velhas telas
A voz emocionada do locutor - não me lembro quem
ser engolida pelas chamas e fumaça e fogo e labaredas
E a plataforma pegou fogo
E o homem tirou os pés da terra
E Marcos, um amigo nosso
que a gente tratava com um certo carinho,
com pena e com medo, porque nossas mães mandaram
e porque sabíamos que ele o pai dele tinha morrido
e ele mesmo era meio bobo, ou como falávamos longe dele, retardado,
Mais do que nós ficou impressionado
E assustado até
"O foguete vai incomodar papai
e vai machucar papai do céu
vai passar pelo céu rápido e grande
e papai do céu e papai, que tá lá junto dele
vão ser atropelados"
E ele saiu correndo e assustado e a Marcinha
que ainda não tinha chegado na idade de não gostar de coisa de menino
começou a chorar que iam machucar papai do céu
e o que ia ser do mundo sem ele
E mesmo eu fiquei preocupado
com o que os astronautas iriam encontrar e enfrentar quando subissem no céu
e além dele
E se eles não iam se perder
Mesmo sendo uma criança
Porque os foguetes que iam à Lua foram feitos para levar a bomba
E os filmes e as histórias em quadrinhos e os especiais de tevê
E os garotos mais velhos e as meninas mais velhas
Falavam da bomba atômica e de Nostradamus e do fim do mundo
E às vezes eu começava a imaginar que um dia eu não ia pensar
Falar Conversar Respirar
E nem lembrar do meu próprio nome e me sentia só muito só na minha cama
E tinha vergonha de dormir com os meus pais
E tinha a bomba e eu sabia
que eles não podiam fazer nada
E tinha a morte e eu sabia
que eles não podiam fazer nada
E ninguém e ninguém e ninguém e ninguém
Mil chegará e dois mil não passará.
E o homem pisou na Lua e passeou de jipe lá
E os foguetes a água sumiram
E também os foguetes a fogo
E os céus foram abandonados pelos homens
E uma vez eu li uma reportagem num suplemento infanto-juvenil
Dizendo que Nostradamus previa o fim do mundo em 1973
E este foi o pior ano
Quando às vezes na cama eu lembrava disso
Eu tinha medo do escuro
E estrondos na rua eram as bombas
E roncos de motores de aviões misteriosos na noite adentrada
Eram os bombardeiros
E o relógio atômico e o Oriente Médio e a guerra do Yom Kippur
E Nixon e Watergate e o Vietnã todo dia na mesa do jantar
E o fim da guerra e a guerra continuava eu sem entender nada como nunca entendi
Os Estados Unidos estavam em guerra mas eu nunca via os americanos em guerra
Estavam em filmes, programas, noticiários e livros e quadrinhos
e não pareciam que estavam em guerra
E eu tinha medo de guerra, de qualquer guerra, as pessoas morriam e
a pior de todas ia matar todas
E eu queria ser grande, queria crescer e ser grande e forte como o homem calvo
Como meu pai
Que sempre sabia o que fazer
Pagar as contas
Consertar a máquina de lavar
Consertar meu robô a pilha
Montar guindastes com Montebrás
Serrar e cortar e martelar e a parte elétrica da casa
E ligar todo os cabos de um aparelho hi-fi
Gravador estéreo, vitrola Phillips automática
e o projetor de slides que fazia cineminha pras crianças da rua
Com os slides da Disney e outros multicoloridos
E um dia, enquanto meu pai passava para nós a história
da Velha e do Boneco de Piche
Os ferimentos do macaco
A maldade do boneco
e o poço sem fundo em que ela caía e parecia não ter mais salvação
Me trouxeram idéias de escuridão
A velha indefesa escorregando para o seu fim
E gritando num túnel escuro
E quando a história acabou e naquele sábado era só eu e meu irmão
E meu irmão foi comer sorvete que a gente tinha comprado tijolinho
Eu estava assustado e meu pai, meu pai percebeu e perguntou o que aconteceu
E eu disse que um dia, um dia ele ia morrer
E meu pai não entendeu o meu medo, ele era um homem que consertava as coisas
E comprava novas somente quando não tinha mais nenhum conserto
E sabia pechinchar e comprar só o que precisava
Meu pai riu e disse que eu também
Eu um dia ia envelhecer e morrer
E naquela noite eu não dormi direito
E sonhei com dinossauros
E monstros alados que me devorariam à minha simples visão
E a qualquer momento eu poderia vê-los
E eu cresci e aprendi a ler como gente grande
A fazer contas como gente grande
A entender história como gente grande
E aprendi a jogar bola e a montar kits Revell
com a inestimável ajuda do meu pai
Que me ensinou a desenhar quase tão bem como ele
E aprendi a ficar sozinho em casa e não ter medo do escuro
De lâmpadas apagadas
Mais escuro, descobri e aprendi
São alguns corações, algumas almas
E mesmo em nós, vários pedaços do espírito
E era menos opressivo, mas mais constante
Este medo da escuridão final e definitiva
E assim aprendi a fantasiar e imaginar
Mundos onde nada disso acontecesse
Onde eu podia mandar e reinar
Quase como meu pai
E Marcinha se foi, um dia eu tinha dado um beijo nela
E meus amigos
E vieram novos amigos e novos - e melhores - beijos
E a escuridão me atraía
A escuridão da noite
Os beijos ganhavam em umidade
Meia-noite
E textura e tato belos seios
Uma da manhã
E cheiro
Duas da manhã
E umidade e textura e tato belos seios
E cheiro e tato eu estava dentro de uma mulher
Três da manhã
E esqueci a escuridão e esqueci o medo
E me derreti e perdi o controle e gozei
Quatro da manhã
E meu pai me perguntando por onde eu andava
Quase não me via mais em casa
E quase eu não o via mais
Os segredos da noite não eram tão mortais
E - surpresa - meu pai não os conhecia tanto
E amanheceu e eu dormi
E entardeceu e acordei e não encontrei mais a moça que eu beijara
Ela se fora, outras viriam, outras iriam, mas eu não sabia
E fantasiei forte e mais e escrevi poemas e contos e músicas
Pois ela me lembrou que tudo se vai
E ela foi durante um momento a minha vida
e eu vislumbrei como seria quando eu não mais fosse
E enchi a cara e fumei e traguei e cheirei
E contei tudo isso para outras moças e as beijei e amei
E toquei-as todas em suas partes mais negras
Que eu ansiava e desejava
Como parecia meu pai nunca ter desejado em minha mãe
E esqueci todas as bobagens e acordes que pus no papel
E cresci e cresci eu era grande e forte como nunca em minha vida
E conhecia meus braços e minhas pernas com perfeição
Meu rosto não mais com acne, minha voz firme
Meus dentes definitivos e meu cabelo e minha barba e meu pau grande e grosso
Atingi o topo do meu corpo e do alto via a todos
E meu pai eu via aos poucos se curvando ao peso de sua barriga
De suas pernas fortes que emagreciam e sua pele que se encovava
E ainda assim ele consertava a máquina de lavar e pagava as contas
E trazia as compras para casa
Mal eu pagava as contas com meus primeiros dinheiros
E foi quase como conquistar a mulher conquistar meu primeiro emprego
Eu menti e me escondi e ocultei e afirmei e me fizeram assinar
E me enganaram
Em pouco tempo tudo aprendi
E um dia era igual ao outro e ao outro e ao outro
Os dias se pareciam um com o outro e passavam numa sucessão tão rápida
Que eu só podia medir olhando a face de meu pai
E vendo a ceifadora trabalhar dia a dia
E quanto ainda teria eu que me enrugar para lá chegar
E essas contas todas comprar, estas máquinas consertar, esta casa reformar
Esta mulher satisfazer, estes filhos sustentar, educar e ensinar e ainda na hora mais negra Confortar
Mesmo que ele grande e crescido se sinta como uma criança
Pensando que um dia o seu pai irá passar
E depois será ele próprio e tanto por fazer, aprender e ensinar
Um dia eu vou crescer e morrer
Já chegou o dia de crescer
Menos mulheres eu beijei
Mais empregadores eu enganei
Mais dinheiros eu ganhei
E a festa do dia em que meu pai se aposentou
Foi igual à do dia em que tive meu primeiro emprego
E me acompanhava neste dia uma mulher de quem não gostava muito
Não nos dávamos bem na cama e nem ela era brilhante ou deslumbrante
Mas os segredos da noite só os superficiais ela me entregou
Os profundos me negou
E eu, ao contrário de meus amigos, ainda assim escrevi, compus, poemei e sonetei
Implorei à escuridão que me contasse suas mais negras histórias
Mas ela permaneceu indecifrável e me mostrava um dia igual ao outro
E por mais que eu fantasiasse eu sentia, mesmo que muito pouco, meus braços já não tão fortes
E meu pai mais fraco do que eu e já não entendia de computadores e vídeo-cassetes
Era eu quem instalava e cabeava
E a tevê a cabo e eu sabia instalar todos os fios e era exatamente da mesma maneira
que ele tinha me ensinado a ligar a aparelhagem de som quando eu era pequeno
Mas ele dizia que não entendia, que estava velho e nem música mais ouvia
E bebia com os amigos e conversava com o filho como se fosse um homem
E eu me sentia ainda distante, eu tinha medo do futuro e da escuridão
E meu pai se encurvava, envelhecia e sabia que se ia e ria
Ria com os amigos em meio a um chope
E eu tinha medo e abraçava e beijava a mulher que eu não amava
Assim eu tinha um corpo onde podia, nem que por um momento,
entregar minha vida e nào sendo ela minha eu não tinha que me preocupar
Com o dia em que eu a perdesse
Pois um dia eu ia envelhecer e morrer
Um dia eu ia envelhecer e morrer
E me sentia mais e mais envelhecido
Ao lado da moça que eu não amava
E ela se foi e outras também
Que de mim não levaram muito
E delas mesmas pouco deixaram e por causa delas
Minhas fantasias e meus mundos quase não se alteraram
Continuaram decaindo e cínicos
Sem super-heróis e grandes paixões
Mas um dia esbarrei em Elsa
E ela sorriu e me encantou como uma feiticeira
Uma bruxa que em seus pactos satânicos
Conseguiu a imortalidade e a perenidade
Uma órfã da eternidade
E eu lhe escrevi poemais
E lhe compus canções
E lhe li minhas obras prediletas
Mas nada disto a impressionou
Pois ela podia ler direto em mim
O que eu tinha que demonstrar
Vindo de minhas fantasias e meus mundos paralelos e perdidos
E ela rasgou meu peito e varou minhas costelas
Minha carne já não tão firme e muito tecido adiposo
Músculos já não tão possantes quanto há dez anos
E cortou e jogou fora e o meu sangue jorrou e caiu ao chão
Aos seus pés
Ela destruiu meu corpo, imolou-me e com sua mão bela e fina
Segurou em suas mãos meu coração
Ainda pulsante
Como se fora uma ninja de história em quadrinhos
E meu corpo agonizante ao chão
Aos seus pés
Ainda pulsante
E não tinha mais que me preocupar
Com o dia em que eu não mais fosse
Eu já não mais era
Era outra criatura
Meu coração pulsava nas mãos dela
Meu cadáver caído aos seus pés
E o coração dela pulsava em minhas mãos
Seu cadáver caído aos meus pés
Estávamos apaixonados
E saímos de casa e mudamos de cidade para um emprego melhor
E o olhar de meu pai assustado que seu filho se ia
Como eu quando pensava no dia em que ele se fosse
Mas não, era eu que ia e ele que estava com medo
Mas eu também estava com medo
As contas para pagar, as máquinas de lavar a consertar
Mas eu não tinha crianças a ensinar
Tinha primeiro uma mulher a amar
Amar muito
Até o dia em que eu envelhecesse e morresse
Até o dia em que eu envelhecesse e morresse
Voltei à cidade para visitar meu pai
Menos vezes do que eu queria
E amei e os meus dias pareciam mais longos e verdadeiros
E subi de vida e de emprego e melhorei
Quase com a mesma velocidade que os microcomputadores
E a tevê a cabo e os micro systems e os vídeo-cassetes
E os DVDs e a Internet
E meu pai dizia que estava velho para essas coisas
E eu o via cada vez mais velho
Até o dia em que o telefone tocou lá em casa às três e meia da manhã
Num dia de semana
E não era engano
Era interurbano
E eu chorei e chorei
Menos que minha mãe e menos que meu irmão
E fizemos as contas do inventário
E acertamos as coisas com o advogado
E eu não entendia nada disto, mas tive que ir adiante
E improvisava e seguia, mesmo sabendo estar cheio de erros
Que eu esperava consertar mais à frente
E pensava se era assim que meu pai se sentia
Quando eu lhe dava meu robô com metralhadoras que piscavam e faziam barulho
Para ele consertar
E eu voltei para casa e a minha mulher
Meu lar
E ela me beijou e eu precisava ser beijado
E ela me amou e eu precisava ser amado
E nove meses depois eu queria beijá-la
E a beijei
Ela precisava ser beijada
Pois era mãe
Estou mais velho e mais grisalho
Já faz tempo que perdi a conta dos fios de cabelos de branco no meu peito
E devo ter alguns no cabelo também
E estou mais gordo do que gostaria
Embora Elsa não ligue
Já que meu corpo ela destruiu há tanto tempo
E erramos e erramos e erramos quando ensinamos
E erramos e erramos e erramos quando criamos
E erramos e erramos e erramos quando amamos
Nosso filho
Mas ele cresce apesar de tudo isto
E tenho vontade de lhe escrever poesias e contos e músicas
Que ele não entenderá
Mas são de mundos cada vez menos irreais e fantásticos
São de carne e osso como ele
Quando corre e tropeça e cai e chora de dor
E já lhe ensinamos as primeiras letras
E os primeiros jogos
No computador que eu domino tão bem
Que instalei lá em casa ligando certo todos os cabos
E dizendo ao técnico que veio entregá-lo que ele estava fazendo tudo errado
E ainda outro dia, enquanto assistíamos ao Discovery Channel
Na tevê do quarto que eu fiz uma ligação pirata da Net para termos vários pontos em casa
Logo depois de um especial sobre a estação espacial internacional
E antes dele jogar o videogame em que não consegue me vencer
Vimos um documentário em que o guepardo morria chifrado por uma gazela
E os filhotes morriam de fome sem ninguém para cuidar deles
E eu vi que meu filho se entristecia
E se preocupava
E chovia
E, num momento em que tudo parecia mais escuro
A luz do quarto estava apagada, somente acesas a tevê e as lâmpadas
Do pisca-pisca natalino - a árvore estava na sala
Ele me perguntou, naquele instante mais preocupado com a pergunta
do que com o presente que iria ganhar
"Pai, um dia você vai morrer, não vai?"
E eu sorri longa e longa e longamente
E exultei
Com o medo e a preocupação dele
E sorri e disse que sim, eu iria envelhecer e morrer
E ele, um dia, iria crescer
E envelhecer e morrer
E ele aquela noite deve ter dormido mal
E sonhado mil pesadelos
Assustados
E eu, estranhamente,
Amei sua mãe como há muito não amava
Pois eu não tinha corpo e agora vencia
Vencia tudo que me assustou minha vida inteira:
A Morte.
Meu filho é como eu
Meu filho é exatamente como eu
E eu vou envelhecer e morrer
E meu filho vai crescer
E envelhecer e morrer
Exatamente como eu
Meu filho é como eu
Meu filho é exatamente como eu
Meu filho é como eu
Meu filho é exatamente como eu
Meu filho é como eu
Meu filho é exatamente como eu

1 comentário:

blogdomarcelodavid disse...

Cara meu! Não foi atoa que o Arnaldo blog (Bloch) recomendou uma visita ao seu. Quem lê "Poesia Sem Título" pluga os cabos e fios dos Neuros e assiste a um belo filme de sua própria vida. Parabéns por sua sensibilidade e por sua vida