janeiro 25, 2009

Sílvia Machete canta "Carlos, Erasmo"


O Sesc de Copacabana está apresentando uma trinca de shows com o nome de "Off-Tropicália" com artistas diversos fazendo um verdadeiro "cover" de discos brasileiros do final dos anos 60 e início dos 70. O blogueiro prefere ouvir o próprio Artista Anteriormente Conhecido Como Jorge Ben tocando coisas como "Bebete Vãobora" em um de seus frequentes shows no Circo Voador e nem conhecia "Build Up" de Rita Lee, julgando que o primeiro disco solo dela fosse "O primeiro dia do resto de sua vida", que também não ouviu, mas sempre foi fã de Roberto e Erasmo Carlos e quando soube que iam tocar a íntegra de "Carlos, Erasmo", bandeou-se para os lados da Princesinha do Mar doido para reencontrar a sonoridade hippie do álbum, que, tecnicamente, está mais para o som pós-tropicalista de Walter Franco e Sérgio Sampaio do que para o movimento original.


Esta fila é pra comprar ou pra entrar?


A primeira surpresa foi a dificuldade para adquirir ingresso. Protegido pela sorte, o blogueiro pegou o antepenúltimo lugar vago no teatro. A própria cantora, Sílvia Machete, reconheceu que os seus shows não costumam estar tão cheios. Não sendo ela exatamente uma superstar e nem o disco exatamente um clássico da MPB, à sua época um produto algo inesperado para os fãs da Jovem Guarda apresentado por um artista então desprezado pela intelligentsia, a presença de tanta gente para assistir ao espetáculo só pode ser creditada ao lado bom da era dos downloads, já que o álbum não é exatamente fácil de achar.

Isso não deveria estar vazio?

E justamente por isso a idéia desses shows é ótima - com exceção daquele dedicado a Benjor, que toca músicas do disco selecionado até hoje - já que Rita Lee e Erasmo Carlos enveredaram por outros caminhos e hoje em dia raramente incluem faixas desses álbuns em apresentações ao vivo. Mantiveram-se os arranjos, o andamento e a instrumentação originais (o que, incidentalmente, faz curtos os espetáculos mesmo com a adição de algumas canções extras). E por isso mesmo uma resenha desse projeto certamente inclui uma apreciação da obra original.

"Meus shows não costumam ser assim"


"Carlos, Erasmo" é um tremendo disco. A Jovem Guarda esvaziara e Ronnie Von, por exemplo, já lançara discos psicodélicos acompanhado em estúdio por uma desconhecida banda chamada Mutantes. Erasmo viu seu parceiro e amigo de fé Roberto enveredar pelo soul e seguiu seu exemplo, mas enquanto o Rei era mais romântico e confessional, Erasmo resolveu ser mais hippie mesmo. Gravou os tropicalistas irmãos Valle, Taiguara, Caetano e Jorge Ben com arranjos mais roqueiros e ainda compôs com Roberto canções que jamais entrariam num disco deste, como a sutilmente intitulada "Maria Joana", com versos como "eu quero Maria Joana, só ela me traz beleza nesse mundo de incerteza" ou "Eu vejo a imagem da Lua, Refletida na poça da rua, E penso da minha janela, eu estou bem mais alto que ela". Quando logo depois, no arranjo bem largadão, ele canta que o amor (por ela) vem como nuvem de fumaça só resta imaginar o quê exatamente os caras da censura estavam pensando quando deixaram passar isso. Deviam estar todos doidões.


É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo


Se ainda fosse a única, mas o ótimo blues riponga típico da época "É preciso dar um jeito, meu amigo", tem coisas como "Eu estou envergonhado com as coisas que eu vi, mas não vou ficar calado, no conforto acomodado, como tantos por aí, descansr não adianta, quando a gente se levanta, tanta coisa aconteceu". Se gravado por algum artista engajado ia dar a maior merda. Mas a censura é o de menos, difícil é imaginar que a crítica desprezasse completamente os Carlos por causa de sua alienação. O que só mostra que crítico ou gosta de falar mal do que nem sequer ouve ou tem o QI de um censor.



Ninguém Chora Mais

Da dupla ainda há a pesada "Mundo deserto" e "Sodoma e Gomorra", uma doideira misturando culpa cristã com a idéia de Erich "Eram os deuses astronautas?" von Daniken de que o relato bíblico descrevia um ataque atômico alienígena. A própria Sílvia Machete conta que "esta música me dá medo", o que soa como elogio, já que em algum lugar do horror acusatório ali dentro se esconde uma metáfora da Guerra Fria - e quem estava lá, mesmo na infância, sabe o que era viver à sombra da bomba.



Mundo Deserto


Apesar da sombria tenebrosidade dessa canção, a sonoridade hippie pós-tropicalista da época se destaca pelo entusiasmo. Mesmo sob uma ditadura, a música brasileira estava cheia de apaixonada intensidade. Os refrões convocam os ouvintes a mudar sua vida, repetem-se cheios de vigor mesmo em baladas como "Gente aberta" (eu vou! Eu vou! Eu vou!), com coros em destaque e instrumental agudo e distorcido, e mostram porque o misticismo grassava entre os hippies - afinal eles estavam cheios de fé, na humanidade, num futuro melhor, na liberdade que viria. Após a suave (e não das melhores) "Não te quero santa", Sílvia encaixa uma composição sua que teria feito em resposta e o contraste entre as épocas salta aos olhos - a primeira, no clima (embora não na qualidade) do resto do disco em tempos de revolução sexual é um pedido a não se prender a valores tradicionais. A segunda conta a história de uma mulher chegando bêbada em casa arrependida depois de umazinha, num tom cínico típico de "Radical Chic" (a personagem do Miguel Paiva, não o termo do Tom Wolfe) ou "Sex & the City" e é quase um caso de estudo de como a busca da felicidade através da libertação de obrigações com o que os outros pensam acabou levando à libertação de obrigações com os outros em geral e a um egocentrismo materialista que faz a farra dos analistas, gurus, bispos e neoliberais.



Em Busca da Canção Perdida II

Sílvia Machete é uma excelente cantora em ascensão e, sob os arranjos originais, compensa o vigor áspero (em algumas faixas) de Erasmo com maior técnica e extensão, conseguindo os mesmos efeitos emocionais sem problemas. Na semana em que o blogueiro assistiu ao show, ela estava também se apresentando no Rival com outro repertório, mas mesmo isso não é desculpa para seu único (e grande) erro na apresentação - ela cantou lendo as letras (ou pelo menos assim parecia), o que a levou a, num teatro de arena, passar virtualmente todo o espetáculo de costas para metade da platéia. Para engordar o tempo de duração, Sílvia adiciona ao final duas versões de Roberto & Erasmo, a genial "Sou uma criança, não entendo nada", em arranjo cabaré (não funciona bem) e a brilhante "Ilegal, imoral ou engorda" em versão "big band" de bolso - imagine aquelas orquestrações de Simonal (fica maneira). Seu timbre lembra realmente as artistas da época, inclusive Mariana Fossa, que no álbum original reparte os vocais de "Masculino feminino" e casa muito bem com as músicas. Pra quem gosta desse som pós-tropicalista daquele povo cabeça daquela época em que vivíamos sob uma ditadura, mas tínhamos esperança, é um achado. Pro resto, também.





Sílvia Machete repete o show no Sesc Copacabana neste sábado, dia 31. O blogueiro talvez até volte lá.

2 comentários:

Unknown disse...

Oi! É a própria Silvia quem escreve. Gostei da crítica. ótimas observaç˜øes. Vc só não entendeu que quando eu disse "meus shows não costumam ser assim" eu não estava falando do público mas sobre o show mesmo. Foi a primeira vez que eu simplesmente só cantei num show. Vou levar em consideração suas obsservaç˜øes. Apareça!
Abraçø!
s

Ave disse...

Ooooops, desculpa, Sílvia.