maio 04, 2009

A FRONTEIRA FINAL - Ensaios sobre JORNADA NAS ESTRELAS - A Série Clássica

A Primeira Temporada de "Star Trek" (The Original Series) - A Série Original

Parte I: Uma Introdução




O povo de hoje não tem ideia do impacto de “Jornada nas Estrelas” para quem até então de ficção científica só conhecia coisas como “Perdidos no Espaço” e “Thunderbirds”. O primeiro sempre foi ridículo e o último muito bom, mas só o fato de ser feito com bonequinhos já deixava claro a quem se destinava. Já a criação de Gene Roddenberry até pode ter sido adotada de coração pela garotada, mas um dos motivos foi justamente por sua pretensão e megalomania, tentando – e conseguindo – criar um universo próprio para apresentar temas complexos e discussões profundas.

É claro que esses temas complexos podem hoje parecer ingênuos, mas perto de “Perdidos no Espaço” ou mesmo as séries de aventuras e policiais de 1966, “Jornada nas Estrelas” está literalmente anos-luz adiante. O que nós tínhamos como parâmetro até então de viagem no espaço eram aqueles filmes B com cenários que, se alguém tropeçasse caía tudo, com todo mundo de macacões farfalhantes prateados e os controles eram duas alavancas, um volante de direção e um radarscópio no meio. Tudo isso em naves de 20, 30 metros de comprimento.

Enquanto isso, a Enterprise já começava revolucionando no design. Não era um disco voador e nem era um foguete. Não tinha caudas, asas, estabilizadores, nada disso. E era gigantesca. Ela não era uma daquelas navezinhas carregando um bando de “puny earthlings” para serem joguetes na mão de qualquer marcianinho com uma pistolinha laser, não, ela era uma sofisticadíssima máquina capaz de obliterar todo um planeta. Que “o dia em que a Terra parou” nada, era o capitão Kirk quem pousava em outros mundos e dizia que se eles não se comportassem iam ter que se ver com a Federação!

E, importantíssimo, a tripulação era de quase 500 pessoas, o que fornecia bastante provisão para a máquina de moer carne que era a exploração interplanetária. Refletindo a guerra diária do Vietnã servida com o jantar nos noticiários de tevê – raios, até eu, aqui no Brasil, me senti estranho quando soube que não mais teria filminhos de guerra no Jornal Nacional por causa da paz - “Jornada nas Estrelas” tinha mortes, muitas mortes, o tempo todo, e a maioria delas do lado dos mocinhos! Até mesmo séries de guerra, como “Ratos do Deserto”, deixavam todo o seu pessoal incólume ao final. A primeira vez em que vi um longa de guerra fiquei chocado ao ver um dos mocinhos morrer e fiquei esperando que ele reaparecesse mais tarde com uma explicação intrincada ou dissesse que estava simplesmente fingindo.

Se não bastassem todas essas mortes pra deixar bem claro ao espectador que o assunto era sério, ainda tinha todo o aparato tecnológico. A ponte da Enterprise não tinha um radarscópio. Nem ao menos tinha uma janela, levando-nos a raciocinar como realmente seria ridículo ter um parabrisa naquele leviatã. Tinha uma tela, com função bastante semelhante aos visores hud nos aviões de combate de hoje. Servia como comunicador, alça de mira e visor. Em frente a ela, a cadeira de capitão, no centro de uma estrutura circular com oficiais em seus bem definidos postos. Ao contrário de “Perdidos no Espaço” e congêneres, podíamos declinar quem fazia o quê e qual era o seu cargo. Ordenanças e ajudantes carregavam peças de equipamento, como o diário de bordo, para os comandantes.

E a maneira como os viventes todos se relacionavam com as geringonças também era perfeita. Ninguém segurava as armas com cuidado como se fosse algo que nunca tivesse visto. Os atores batiam nos botões com as palmas das mãos, sem nem olhar. Avançavam pelas portas automáticas como se tivessem a certeza que elas sempre abririam. Beliscavam enquanto operavam computadores. Tudo isso ajudava a criar uma ilusão de realismo, de que aquele era o mundo ordinário em que viviam e que nada daquilo os impressionava. Bastava ver o desleixo com que Kirk abria seu comunicador, como se fosse um Zippo, dando um golpe de pulso para desdobrar o flip e ativar o bichinho, com seu tradicional ruído. O comunicador, aliás, é um capítulo à parte. Tão bem desenhado que se tornou imediatamente reconhecível mesmo por quem não era fã do show, foi a inspiração para a criação dos primeiros celulares flip da Motorola, que substituíram aqueles pesados tijolões anteriores. O próprio nome do aparelho, Star Tac, era justamente para referenciar de onde eles tinham tirado a ideia.

E entre eles os personagens se tratavam com um formalismo que, se hoje soa avacalhado demais, na época era sem precedente. A primeira vez em que o blogueiro viu Star Trek, o que mais lhe chamou a atenção foi o uso dos títulos: ninguém era Kirk, Spock ou Uhura, mas sim “capitão” Kirk, “senhor” Spock, ou “tenente” Uhura, sempre enunciados com uma certa frieza. Parecia que ninguém era amigo ali, o que, é claro, não era o caso, mas frente ao clima de família em feriado de “Perdidos no Espaço” era outro universo.

Tudo isso, bem como os procedimentos padrão, estavam presentes numa ficção científica dos anos 50, provavelmente a melhor fita do gênero da década, o clássico “Planeta Proibido”. Lá também o disco voador não era de invasores, mas de humanos, a nave seguia regras militares, havia postos bem definidos, um capitão espada e matador, um médico grande amigo dele e um engenheiro chefe capaz de operar milagres. Roddenberry, ex-milico, adorou o conceito, e mais ainda o roteiro, que se valia de uma história de suspense, um monstro invisível e assassino que matava vários tripulantes secundários, para na verdade fazer uma adaptação de “A Tempestade”, de Shakespeare, trazendo para primeiro plano o tema de incesto e abordando temas filosóficos como o papel do desejo, ou seja, passeando pela mesma temática do posterior filme cabeça “Solaris”, só que de maneira bem mais divertida.

Reunindo um naipe de escritores de responsa para um gênero tão pouco respeitado, Roddenberry uniu-os em torno de sua visão positivista de ex-milico. Tão positivista que o lema da Federação poderia ser o dístico da bandeira brasileira, “ordem e progresso”. O humanismo agnóstico do criador de Star Trek o impediria de cair na armadilha hiperconservadora do pensamento militar que tantas ditaduras criou na época. A Enterprise não sonda o espaço para criar um império, comercial ou político, mas para aumentar o conhecimento da humanidade e assim melhorá-la, num futuro em que a cooperação entre as pessoas, em vez da competição, fez do autoaprimoramento o grande objetivo social e criou uma fartura tão sem precedentes que tornou a propriedade privada e o dinheiro obsoletos. Mas essa parte filosófica vai ser melhor desenvolvida pelo Antônio Rogério da Silva, o Roger Filósofo.

É claro que esse autoaprimoramento requer também lazer, o que inclui sexo. O blogueiro, que há muito tempo não via com atenção os episódios do começo da franquia, ficou surpreso com todo o subtexto sexual da série, atípico dos anos 60. A maior parte dessas alusões lhe passou desapercebida quando era fã contumaz do programa porque... bem, como bom nerd espectador de “Jornada nas Estrelas”, ele não tinha comido ninguém e lhe faltavam as referências...

Mas esse tempo já passou e, embora hoje a série original possa ter um ar antiquado aos espectadores de hoje, devido a seus efeitos especiais ruins mesmo para a época (compare-os com os de “Thunderbirds”, por exemplo), uma certa ingenuidade nos roteiros (os altamente treinados oficiais da Frota Estelar têm uma incrível tendência a deixar alienígenas perigosos rodando sem escolta ou segurança na nave) e lutas pessimamente coreografadas, o que se tornou uma marca registrada do seriado. Mas porradaria e efeitos não eram o cerne do programa. A direção de tevê de então ainda era bastante cinematográfica e a iluminação ainda não se tornara a monotonia chapada que iria dominar os anos 70 e 80. Com excelentes histórias e bons personagens, os diretores podiam manter o interesse apenas com diálogos e ação dramática, em vez de ter que enxertar cortes rápidos de igualmente inverossímeis brigas em kung-fu. Daqui a alguns anos certamente o público vai achar ridícula a tevê dos anos 90 e 2000, em que qualquer marginal de rua é um mestre em artes marciais e fica bloqueando soquinhos à distância em vez de se atracar com o oponente e rolar pelo chão mordendo e batendo como puder.

Numa época em que as referências de ficção científica eram uma bicha velha tentando aliciar um garotinho, no meio de uma família que parecia mais estar viajando num trailer num feriadão em vez de perdidos no espaço, e o programa mais parecido com uma organização militar era um submarino comandado por um almirante que às vezes virava lobisomem, Jornada nas Estrelas tornou-se um marco tão grande, tão imitado, que pode não se perceber o quanto foi revolucionário na época. Os programas anteriores mostravam o cosmos como os mares pareciam às pessoas comuns no início das Grandes Navegações: cheio de monstros e hostil, explorado apenas por um punhado de aventureiros indisciplinados. “Jornada nas Estrelas” seria o primeiro show de tevê a ter um universo já bem mapeado e explorado, embora ainda romântico e misterioso. Como parecia à humanidade o mundo no começo da Revolução Industrial.

Mas... estou me contendo pra não dizer que eles audaciosamente foram onde nenhum programa de televisão jamais tinha ido, mas não vou fazer isso. Aquela turma de um futuro utópico, com preocupações outras que não ir trabalhar todo dia pra trazer um dinheirinho pra casa e comprar um carro novo, e que ensinava aos nerds que havia um lugar para todo o mundo, com a humanidade transformada numa enorme família funcional, foi pra muita gente da minha geração o primeiro contato com o pensamento provocador, quando muita gente acreditava que o eterno destino da tevê fosse ser um aparelho alienante e emburrecedor.



Amanhã: "Praticando uma Variedade Peculiar de Diplomacia", pelo blogueiro convidado Marcos Pedrosa.

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