Crítica publicada originalmente na www.revistazepereira.com.br durante o festival de cinema do Rio de Janeiro
Ontem RINHA veio dizer que a abundância e a riqueza numa sociedade miserável (ou semi-miserável, afinal a classe C agora compra computadores) transformam o sujeito, por trás de um verniz de sofisticação e elegância, numa besta-fera, presa de deus desejos. Hoje A FESTA DA MENINA MORTA veio mostrar que a miséria transforma as pessoas em bestas-feras, presas de seus desejos. Sobrou pra classe média acuada dos dois lados fazer filmes denunciando seus predadores antes que sua predação contumaz acabe transformando-a numa besta-fera, presa de seus desejos.
Tudo bem, estou sendo meio injusto com A FESTA DA MENINA MORTA. Antes de se transformarem definitivamente em bestas-feras, os miseráveis de Lá Onde o Afilhado de Crisma do Judas Perdeu as Botas agarram-se à religião para sobreviverem. Não exatamente, religião, mais a variante supersticiosa do cristianismo. Vinte anos atrás, um vira-lata sarnento trouxe na mão de um moleque o vestido rasgado de uma linda menina desaparecida e as pessoas (ou talvez o próprio menino) disseram que foi uma intervenção do sobrenatural e hoje o garoto é cultuado como milagreiro, tanto que nem tem mais um nome, sendo conhecido apenas como Santinho (e seu pai, como... Pai; a menina, revela-se no final, chamava-se Maria; assim pelo jeito sobra para Tadeu ser o Espírito Santo).
Homem feito, Santinho usa há vinte anos como traje o vestido da menina morta e a responsabilidade de ser a solitária esperança de um comunidade sem perspectivas, onde a única edificação de alvenaria parece ser a igreja, transformou-o num monstro egoísta, homossexual e incestuoso (desculpe se estou estragando a surpresa contando algo que só é mostrado com trinta segundos de filme). Ainda assim, Pai e Filho são hipócritas o suficiente para promoverem aquilo que dá nome à fita, lucrando com vendas de bebidas, comidas e até mesmo propaganda e show de música (paupérrimo, remetendo a BYE BYE BRAZIL).
O Zé já comentou algumas postagens abaixo que teve gente que se sentiu enganada, achando que ia ver um filme do Mateus [AUTOTEXTO] e acabou vendo um do Cláudio Assis, mas [AUTOTEXTO] opta por um ritmo ainda mais lento. As cenas “de ação” usam câmera na mão; as de “diálogo” são muitas vezes rígidas e formalistas. A edição entra nas sequências antes do começo da ação e saem depois e os ângulos escolhidos deixam personagens que falam ou acontecimentos fora de quadro, deliberadamente buscando um clima tão arrastado quanto a vida daqueles interioranos. O problema com essa estética é que exige uma concisão narrativa absoluta, sob as penas da Teoria da Relatividade: o tempo se estica e os minutos tornam-se horas. E o roteiro de FESTA DA MENINA MORTA não consegue resistir a ser um tanto redundante ao mostrar os ataques de fúria injustificada do Santinho com suas beatas e sua hipocrisia. A história “fatia-da-vida”, em que a maioria das pessoas que aparece não passa por um arco dramático completo, mas é mostrada como é, também colabora um pouco para aumentar a vagareza do longa. Felizmente os belos visuais do filme – cor, fotografia, iluminação, composição, sem falar nas uniformemente excelentes atuações – distraem o espectador nesses momentos.
Em suma, FESTA DA MENINA MORTA mostra a interligação entre miséria, conformismo e religião. Alguns personagens não têm fé no Santinho, mas vão pedir sua bênção porque, afinal de contas, “não custa nada”. Outros, como suas tias beatas, agarram-se a ele como única esperança numa vida vazia e sem sentido; a santidade dele torna não só o garoto especial, mas, por extensão, também elas e, por isso elas suportam seu egoísmo e suas inseguranças (às vezes até com o roteiro forçando a barra um pouco). Jackson Antunes, como o Pai, tem talvez a melhor atuação; mesmo com sua hipocrisia, explorando a venda de cervejas no ponto onde o pai da menina morta costumava ficar e esticando faixas com patrocinadores, é tão sedutor e charmoso que leva todo mundo a perdoar seus defeitos. No final, a festa é o grande momento, onde pode por um momento escapar-se da realidade de uma existência paupérrima. Enquanto o Santinho fala, abalado por um acontecimento que esse não, eu não vou falar qual é, vemos na multidão as moças do show, um garoto que gosta de dançar break (ou sabe-se lá que nome tem isso hoje em dia), envoltos pela transcendência do momento, ainda que talvez tudo aquilo seja falso e que quem mais comemore sejam o Pai e o Vendedor de Cerveja. Nesse momento [AUTOTEXTO] mostra algum entendimento do que é o misticismo cristão, além de toda a hipocrisia, comercialismo, superstição e vícios dos quais é acusado. O nome da menina é revelado e o Santinho mergulha na água, porque, no começo dos tempos, o Espírito de Deus caminhava livremente sobre as águas
junho 12, 2009
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