Existe um entretenimento que une sons, imagens, tecnologia e interatividade e é capaz de prender a atenção do seu público por dezenas de horas a fio, movimentando mais dinheiro que a indústria cinematográfica, mas ainda assim é considerado - como o foram o próprio cinema, os quadrinhos, ou o rock - apenas lixo cultural destinado a crianças, adolescentes ou gente de pouca instrução. A esta altura quase todo mundo já adivinhou que é o videogame, ainda mais se leu o título aí em cima, mas isso não muda o fato de que neste momento está se escrevendo em qualquer jornal respeitável mais linhas e linhas resenhando romances obscuros que serão considerados sucessos editoriais se venderem 20.000 exemplares enquanto joguinhos eletrônicos eletrizando milhões de pessoas merecerão algumas linhas analisando sua jogabilidade e a competência de seus gráficos.
Enquanto artistas fazem performances envolvendo dançarinos e jarros ou fezes e mulheres gostosas, os americanos - e também os japas, complementando o ataque de três pontas com os mangás e os animês - cooptam a formação cultural de mais uma de nossas gerações. Videogames violentos como GTA e Poderoso Chefão exaltam as virtudes do hipercapitalismo de forma divertida e brutal - confie (ainda assim desconfiando) apenas em seu clã, faça tudo em nome do sucesso e busque constantemente uma gratificação instantânea e pessoal - ideia reforçada pela recompensa imediata dos placares e jogos bem-sucedidos. Épícos como Civilization ou Age of Empires ensinam seu público a pensar maquievalicamente e manipular a informação e os recursos disponíveis. Já longe se vão os tempos mitológicos de Space Invaders, em que seus heróis solitários e em extrema inferioridade numérica e de poderes podiam contar apenas com sua habilidade e esperteza para sobrepujar seus inimigos. E quando falo em mitológicos, estou falando literalmente, pois o cenário do avô dos jogos eletrônicos inclui uma força e uma inocência típica dos super-heróis da Era de Ouro (ou mesmo da Era de Prata).
É claro que nem tudo é lavagem cerebral ianque. De maneira tipicamente oriental, a série Mário Bros. estimula a curiosidade, contendo um mundo de poesia e maravilha a ser mais desbravado do que conquistado. Um verdadeiro treinador de futebol poria seus atletas todos em frente a um console com a série FIFA (dizem que há melhores) preles aprenderem como troca de passes rápidos é muito mais eficiente que dribles sem fim - até os detratores do futebol de resultados talvez pudessem aprender como o roubo de bola - lançamento longo - cruzamento é uma tática extremamente eficiente. O blogueiro há muitos anos desistiu dos games (1), mas ouve falar maravilhas de coisas como Okami ou de jogos em que o objetivo seria a pura exploração, como Endless Ocean (com a ajuda do inovador controle sensível a movimentos do Wii). O último jogo que me deixou viciado é do começo do século XXI e embora já naquela épóca estivesse afastado dos joysticks, o conceito era tão instigante que não pude deixar de experimentar. O videogame era a primeira versão de The Sims.
The Sims era simplesmente um simulador de gente. Sua mecânica básica segue as linhas dos mais tradicionais jogos de estratégia, o gerenciamento de recursos. Meu primeiro contato com esses gerenciadores foi numa revista sobre programação que publicou um programinha para TK 85. Com os recursos da época, a publicação trazia caractere por caractere o código de progamação (em basic) e você tinha que copiá-lo digitando em sua máquina. A vantagem é que o software vinha comentado e assim você aprendia a programar seu micro (2). O joguinho chamava-se "Feudo". Você era um senhor feudal e o recurso disponível eram seus servos. Eles tinham que plantar trigo, construir represas e defender o feudo. Equilibrar a quantidade de gente em cada uma dessas tarefas era vital e quanto melhor você fosse sucedido, mais trigo você tinha, o que evitava as mortes e aumentava o número de nascimentos (mas aí começava a ter muitas pessoas para serem alimentadas e se você aumentasse a quantidade de agricultores deixava a terra exposta a inundações ou ataques bárbaros).
The Sims usava essa mesma mecânica do começo da história dos videogames, mas tinha a grande ideia de fazer do recurso a ser gerenciado o tempo. Você tinha que trabalhar, descansar, se divertir, dormir, se alimentar e namorar. Se você não se divertia, se estressava e não ia bem no trabalho, não ganhava dinheiro, não conseguia comer. E além disso tudo ainda tinha que volta e meia animar sua namorada. Em pouco tempo não só estava raciocinando em termos de minutos disponíveis para dormir ou me divertir vendo um filme em frente ao monitor como até na realidade. E aí eu percebi o quanto The Sims era no fundo um game materialista (no sentido metafísico), existencialista e um tanto depressivo, pois acaba tornando-se inevitável comparar à sua própria vida e pensar no quanto ela era vazia e passageiras suas recompensas, bem como na impossibilidade de verdadeira comunicação entre duas pessoas (os bonequinhos não falam e pra animar seus parceiros eles têm essencialmente o contato físico, que melhora o humor do outro apenas por algum tempo). Nunca vemos os personagens no emprego, mas parece tão sem sentido quanto os outros aspectos das banal existência que eles levam, ainda mais com as habilidades que eles precisam cultivar para serem promovidos: carisma (treina-se falando em frente ao espelho), boa aparência e disposição (compre aparelhos de ginástica, dão pontos também no quesito DIVERSÃO) e conhecimento (leia livros, também dá pontos em diversão).
Somando-se a isso havia também a falta de objetivo no game. Não se vencia realmente o jogo (o manual até comentava jocosamente, no capítulo VENCENDO O JOGO: Este é um jogo da Maxis, você não o vence. Não há um objetivo), como no similar SimCity, apenas seguia-se com ele até um ponto em que não dava mais pra aguentar. Como a própria vida.
Como já disse acima, na época fiquei viciado em The Sims. Tinha acabado de terminar com uma moça muito importante pra mim, alguns projetos pessoais em que investira muito tinham dado com os burros n'água e minha família atravessava problemas financeiros. Mergulhar na vida de outros, ainda que num mundo virtual, me ajudava a esquecer os problemas. Mas foi durante um curto período. A visão desiludida dos criadores do jogo acabou por me afastar dele, bem como de suas expansões e continuações, que fizeram dele o maior sucesso da área em muitos e muitos anos. Foi merecido, o conceito e a jogabilidade são brilhantes. Mas sua mensagem - sua poderosa mensagem, seu avassalador conteúdo artístico - era deprimente demais pra mim.
Videogames são uma forma de arte. Há mais de dez anos, pelo menos, que eles clamam por uma análise estética, além da resenha especializada de sua funcionalidade. Eles dominaram os corações e as mentes da geração com menos de 40 anos (e mesmo de muito do povo acima dessa faixa etária). Roquenrou, cinema e quadrinhos já foram encarados assim. Assim que uma primeira cabeça em um jornal ou órgão de ressonância se der a esse trabalho, vai abrir caminho pra geração que cresceu em cima de um joystick pensar um pouco mais em sua formação intelectual e escrever fascinantes ensaios sobre o mundo virtual interativo. O que só dará mais incentivo pros criadores do setor inovarem mais em linguagem, conceito e conteúdo artístico.
(1) O blogueiro se criou com os Telejogos, o Atari e teve um TK 85. Na época da Nintendo já havia se tornado um jogador casual, a menos que os jogos fossem da série Doom ou Civilization. Após dez anos longe dos consoles, ele voltou a se tornar um casual gamer graças ao divertidíssimo sensor de movimento do Wii, que fez até minha mãe de 76 anos pela primeira vez na vida curtir um videogame.
(2) O blogueiro realmente aprendeu a programar em basic. Um dos games que programou era sobre uma faculdade de comunicação, onde os sujeitos passavam num supermercado pra comprar cachaça, revistinha com musica pra tocar no violão e ENGOV. Pra gerenciar a grana, ele podia economizar no táxi e pegar carona com um amigo bêbado pra festa, correndo o risco de bater e ir parar no hospital. Uma vez na festa, ele deveria atrair mulheres tocando musiquinhas no violão e dando-lhes cachaça. O risco eram os empata-foda, um bando de chatos bêbados que ele tentava afastar dando cachaça ou ENGOVs. Obviamente, ele podia arriscar-se a gastar tudo com musiquinhas e/ou cachaça e não comprar ENGOV, mantendo distância dos empatas, mas eles estavam sempre perto das mulheres gostosas. No final, se mal sucedido, o jogador levava um chute da menina; se bem sucedido, ia com ela pruma moita que ficava balançando, em animações que usavam toda a fantástica resolução gráfica de 64 x 44 pixels em glorioso preto e branco, explorando toda a memória de 16 kb (isso mesmo, 16 QUILObytes - um milésimo de 16 megabytes, que é um terço da memória que só os celulares mais vagabundos e obsoletos de hoje em dia têm).
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