Nômade
Anteriormente: O Outro Lado do Espelho
Imagine uma série onde uma pacífica, ainda que poderosa e sofisticadíssima, espaçonave cheia de humanos das mais diversas culturas (e mesmo um alienígena, isto em plena tevê americana dos anos 60) explora o universo em busca de conhecimento, usando para tanto ferramentas avançadíssimas – tricorders, computadores, defasadores... não soaria meio estranho se eles resolvessem fazer um episódio virulentamente anti-tecnologia?
Uma sonda terráquea perdida no espaço profundo tem um encontro com alguma coisa misteriosa que a conserta e a torna uma máquina indestrutível e invencível. Após destruir alguns viventes, ela encontra a galera da Enterprise, com quem topa bater um papo antes de de desintegrar tudo. Sim, se você curte “Jornada nas Estrelas”, já sacou que a história foi recauchutada pro primeiro longametragem, provando pela segunda vez que ela não era uma boa ideia. Mas, pelo menos no cinema, o final celebra a união do homem com a máquina e o cosmos, fazendo uma apologia à tecnologia não só na trama como também nos efeitos visuais caríssimos pra época. Já na série original, mesmo passando-se no famoso universo “treknológico”, temos mais uma vez uma ressurgência da paranoia dos anos 50 de que tudo que tenha luzinhas piscando e saía da mente de um cientista é o Mal Encarnado (eles tavam meio cabreiros com a bomba atômica, lembra?).
A Enterprise descobre que um sistema inteiro foi devastado. Quatro bilhões de almas foram assassinadas. Logo em seguida é atacada por uma espaçonave indestrutível e invencível. Antes que os espectadores pudessem se perguntar se eles teriam MAIS UM encontro com um ser semidivino, o atacante para com as hostilidades assim que o capitão Kirk tenta parlamentar. O atacante então é teletransportado pra dentro de nossa nave estelar favorita. E certamente ajudaria muito se o poderosíssimo artefato irresistível não parecesse tanto com uma garrafinha de Yakult ou um espremedor de laranja gigante.
Sério, Jornada nas Estrelas pode parecer retrô hoje, mas seu design era avançadíssimo pra época. Até hoje a Enterprise tem um ar futurista. Mas a sonda malvada flutuante é muito, muito trash. Poderia ter saído de um daqueles filmes com foguetes guiados através de volantes de direção e radarscópio dos anos 50. Raios, qualquer satélite artificial da época já parecia mais moderno do que aquilo. Em pouco tempo a tripulação descobre que a geringonça foi lançada da Terra no começo do século XXI (obviamente por uma agência espacial sem consultores de desenho industrial), sofreu um acidente colidindo com algum artefato alienígena semidivino e os dois se fundiram e se transformaram numa maquineta semidivina com danos em alguns bancos de memória, tanto que confundiu o capitão Kirk com seu projetista, Roykirk. Ah, e sua programação é esterilizar tudo que encontrar, i.e., matar todos os seres vivos, igual ao Bender em Futurama quando dorme (“matar... todos... os... humanos”).
A direção até que consegue gerar alguma tensão mantendo em suspenso até quando a sonda maligna irá obedecer às ordens do capitão Kirk, pensando que ele ainda é seu criador (e usa até uns inusitados planos de visão subjetiva do satélite psicopata). Enquanto isso o povo da Frota Estelar tenta descobrir o que aconteceu com a geringonça, já que ela era apenas programada para encontrar novas formas de vida, novas civilizações... isso, vocês pegaram a ideia. Os espectadores ficam pensando – quem encontrou a Nômade (o nome da maquineta) e por que mudou assim sua programação? Como eles conseguiram concentrar tanto poder em algo tão pequeno? Será que essa diretriz primária traduz algum desejo obscuro de seu criador e por isto a Nômade estaria tão obcecada em reencontrá-lo que nem percebeu que ela também era uma “unidade biológica”? Será que para alguma outra cultura avançadíssima, o objetivo de todo conhecimento é aniquilar tudo que estiver vivo e levar o universo de volta à sua placida mecânica celestial inicial? O que foi afinal o acidente que a transformou?
A Nômade antes de virar um artefato onipotente e com cara de Yakult
Pois ninguém responde nada! Spock faz uma fusão mental para descobrir exatamente o mesmo que a própria sonda já tinha dito no início do programa – que esbarrou em outro artefato e os dois se transformaram num só e, por pura coincidência, sua programação “encontrar novas formas de vida bla bla bla” virou “exterminar novas – e velhas – formas de vida bla bla bla”.
Ao fim, Kirk consegue destruir a Nômade perguntando se ela precisa destruir tudo que for imperfeito e em seguida explicando que com os bancos de memória funcionando mal, a própria sonda também não era perfeita. Dã. Desta vez, ao contrário de “A Hora Rubra”, sai até fumacinha do computador flutuante mesmo.
Pois é, em “A Hora Rubra” já tinha aparecido um computador maligno, mas ele no fundo era bem intencionado. O episódio claramente não era antitecnológico, mas anticonformista (embora de maneira bastante confusa e canhestra, apesar dos brilhantes vinte minutos iniciais e a suruba obrigatória pra dar vazão aos instintos reprimidos). “Nômade” simplesmente retoma a temática paranóica dos anos 50 de que toda a ciência, mesmo quando pacífica e bem intencionada, acaba se tornando perigosa e aterrorizante, ainda mais se uma cultura forasteira põe as mãos nela. Nada a ver com o resto da série provocante e especulativa. De bom mesmo só sobra a boa construção de tensão, com o contumaz diretor Marc Daniels se dando ao luxo de usar travelings seguindo a ameaçadora geringonça flutuante, no que talvez seja a mais bela e cinematográfica tomada de Jornada das Estrelas desde o soberbo “A Consciência do Rei”.
Digno de nota:
Contagem de corpos: quatro seguranças.
Avistamentos de tenente Leslie: ele escapou do massacre por estar com uma camisa bege, na ponte da Enterprise.
O blogueiro passou um bom tempo bestuntando se “Nomad” teria algo a ver com “No mad”. Talvez o roteirista tenha tido que correr com o roteiro, não gostou do resultado final, mas queria deixar claro que não estava maluco quando o concebeu.
A foto do criador da Nomad, Roykirk, é na verdade do próprio diretor, Marc Daniels.
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