maio 10, 2010

A Fronteira Final - A Série Original de Star Trek - A Clássica Jornada nas Estrelas



O Outro Lado do Espelho

Anteriormente: O Lamento de Adônis

Todo mundo gosta de universos paralelos. Quatro décadas atrás, então, quando o conceito ainda era novo na televisão, devia ser o maior barato. A ponto de transformar não só este episódio como também o cavanhaque de Spock em clássicos da cultura pop.

A hora de cinquenta minutos começa com Kirk tentando convencer uns alienígenas togados a cederem direitos de mineração pra Federação, mas os pacíficos etês não querem nada com frotas estelares cheias de naves capazes de obliterar planetas. Eles até estão conscientes de que a Enterprise poderia tomar o minério à força, mas nosso capitão estelar favorito assegura que jamais praticaria tal agressão – uma prova de que talvez eles pudessem reconsiderar sua decisão.



Em seguida Kirk sobe pra Enterprise, acompanhado de Scott, McCoy e Uhura, e o velho artifício de roteiro, o defeito no teletransporte, manda eles prum universo paralelo (e, assim como em “Inimigo Interior”, ainda se dá ao trabalho de mudar seus uniformes) onde todo mundo é mau, as mulheres envergam trejes ainda mais sucintos e Spock usa um cavanhaque. E onde, para seguir os procedimentos da Frota Estelar do Mal, Kirk tem que fazer toda a raça que negou direitos de mineração se chamar saudade.



O conceito é uma adaptação para ficção científica do doppelganger e da sombra junguiana, a personificação da parte de nossa personalidade que nosso subsconsciente percebe como nossos maiores vícios e defeitos. A projeção desta sombra sobre outras pessoas, segundo o discípulo de Freud, formaria a base de nossos preconceitos. Assim podemos aproveitar e ver o que Roddenberry e sua galera entendiam como piores traços de caráter da Humanidade.



Pra começar, o sexo. O criador de “Jornada nas estrelas”, espada e matador, sempre foi favorável a tal atividade, como bem demonstrado na série, mas aqui os uniformes já minúsculos das mulheres (a bem de Roddenberry, por exigência da rede, que vetou as calças compridas pra elas) viram top e minissaia (deixando ver que Uhura, lá nos anos 60, além dos coxões tem um abdome sarado) e é violentamente assediada por… Sulu! (faz sentido, como no universo-espelho tudo é ao contrário, ele é heterossexual). Além disso, Sulu tem uma cicatriz na face e é o chefe da Gestapo da nave, um serviço de segurança e repressão. E faz uma cara ótima quando a Uhura do nosso universo precisa distraí-lo seduzindo-o e depois negando seus favores, o que é mostrado como um comportamento típico das mulheres de lá… sacaram a mensagem, moças que gostam de provocar e rejeitar os outros, são…?

As promoções é que são fantásticas: os oficiais sobem de posto assassinando seus superiores, assim todo mundo abaixo do falecido sobe um posto. Qualquer falha também é punida pelo Alto Comando com a morte. Assim, a marujada toda permanece alerta e competente e, de uma maneira extrema, a competição torna todos tão eficientes quanto a cooperação no universo bonzinho. Neoliberais iam adorar o universo-espelho e sua ideia de que lobo comendo lobo acaba trazendo benefícios para a alcateia, dando rédeas livres para os melhores empurrarem a sociedade adiante.



Os vulcanos, pelo menos, se sentem à vontade. O Spock de lá está tão confortável em seu posto quanto na Frota Estelar benigna. O Spock de cavanhaque, acessório capilar que tornou-se tão famoso quanto o episódio (v. “Digno de nota”) justifica suas ações sob a lógica de que um único homem não pode fazer a diferença contra todo um império. Desculpa esfarrapada, como o nosso Kirk frisa para ele, já que no sistema de valores da nossa Federação o idealismo sempre fala mais alto e dá como recompensa uma consciência tranquila. Mas o Spock barbado é treinado para ignorar sentimentos como o remorso e tem noites de sono tão boas quanto as dos justos, deixando pairando no ar a noção de que o povo de Vulcano é realmente um bando de monstros insensíveis, como sempre faz questão de frisar o dr. McCoy, preocupados apenas com a sobrevivência e em empurrar seus genes adiante, da maneira que lhe pareça melhor – através da cooperação no nosso universo e descaradamente aderindo à brutal competição darwinista-social do universo-espelho.



Estarão os autores de “Jornada nas estrelas” insinuando que não existe ética se não há um julgamento emocional como base? Analisando fria e biologicamente, o comportamento vulcano é realmente exemplar para a sobrevivência da espécie. Sem que em algum momento se trace uma linha moral apriorística e entregando-se apenas à tarefa de sobreviver e prosperar geram-se os monstros vulcanos do universo-espelho. Não há um custo psicológico, graças ao seu treinamento de supressão de emoções.

Mas e os humanos, como sobrevivem nesse universo sem tal treinamento? Muito bem, obrigado. Como crianças a quem foram dadas as melhores armas disponíveis. Não há superego na Frota Imperial, todos vivem em função de seus desejos e instintos mais baixos. É o reino do Id. Não há mecanismos repressores sociais para o comportamento. Não há culpa. No mangá “Lobo Solitário”, o personagem principal pretende atingir o Nirvana dedicando-se ao mal absoluto, pois assim como o bem absoluto, ele leva à negação do “eu” e à sintonia com todo o cosmo. Aceitando, sem julgar, todos os trabalhos de assassinato que lhe sejam passados, e apenas estes, o samurai Itto Ogami torna-se através da sincronicidade um instrumento de Deus.



O mesmo acontece neste episódio. Sem culpa e dando completa vazão aos seus instintos, os tripulantes da Enterprise imperial sentem-se tão realizados e completos quanto suas contrapartes benignas. Tão atraente é a perspectiva de viver dando rédeas aos instintos que o capitão Kirk em dado momento sente-se completamente à vontade. Quando o Chekov malvado tenta matá-lo (e assim toda a oficialidade seria promovida um posto) e um guarda-costas o salva, pois achou que seria mais lucrativo ser o homem que salvou Kirk, o nosso herói o esmurra violentamente, para lembrá-lo de não cobiçar seu cargo. É uma cena inesperada para o espectador e coerente com o personagem, que progrediu através do controle de seus desejos mais baixos, e não de sua negação, como Roddenberry sempre enfatiza (cf., por exemplo, “Um pedaço da ação”, onde, num planeta dominado por gangsters e bandidos, Kirk também dá sinais de estar se sentindo em casa). Em contrapartida, o povo maligno que vem parar aqui não tem superego e nem autocontrole e são rapidamente descobertos como originários de outra dimensão, graças a seu comportamento.

O episódio, além de levantar essas questões, ainda é divertido, mantendo o suspense do disfarce de nossos heróis com o velho clichê da contagem regressiva – se não voltarem para seu universo em tantos minutos, nunca voltarão – e é cheio de detalhes interessantes: os guarda-costas dos oficiais, sendo que os de Spock são vulcanos; a horrenda cicatriz de Sulu; a câmara da agonia; os uniformes duas-peças das moças; e, principalmente, falando de roupas de moças, a lingerie da amante do capitão, em que a calcinha é apenas uma tira que desce desde o alto do abdome, coberta apenas por um negligée transparentíssimo. É impressionante como a desculpa esfarrapada de que os figurinos eram futuristas justificava a “Jornada nas estrelas” mostrar tanta mulher seminua (repare que os figurinos futuristas dos homens não eram tão esparsos) na rigidamente conservadora tevê dos anos 60. Havia mais do que a atração de um futuro onde todos encontrariam seu lugar e enredos cabeça para atrair os adolescentes nerds dos anos 70 para esta série.

Digno de nota:

Contagem de corpos: quatro tripulantes da Enterprise maligna.

Ao final a Federação continua sem ter os direitos de exploração do planeta pacífico abaixo. Ver os personagens não serem perfeitos o tempo todo (cf. o magnífico episódio “Missão de misericórdia”) na verdade ajuda a identificação com eles.




O cavanhaque de Spock para indicar que ele era maligno ficou tão marcado que uma banda de rock adotou esse nome (Spock’s Beard) e o artifício foi usado em todas as paródias possíveis. Só em Futurama apareceu duas vezes, quando os personagens caíam num universo alternativo e suas contrapartes chegavam à conclusão de que eles não eram malignos por não usarem cavanhaque, e quando Bender encontrava seu irmão gêmeo e ele usava um cavanhaque – embora neste caso, o gêmeo maligno fosse o próprio Bender.

2 comentários:

Ricardo disse...

Uma pequena correção: no mangá “Lobo Solitário”, o personagem principal NÃO pretende atingir o Nirvana dedicando-se ao mal absoluto. Ele só quer se vingar e nessa vingança recuperar sua honra. Pra isso precisa de dinheiro, que ele consegue fazendo o que sabe fazer: matando, já que ele tinha sido o executor oficial do Shogum. O drama todo é que ele tem de fazer isso com o filho pequeno a tiracolo, o verdadeiro herói da estória. O nome em japonês é "Kosure Okami", que quer dizer mais ou menos "Lobo Solitário e Filhote". Virou série televisiva no Japão, passava às terças feiras 20:00. Foi esse mangá que inspirou o Frank Miller a escrever "Ronin" antes de se consagrar com o "Cavaleiro das Trevas"...

Ave disse...

Oi, Ricardo, legal saber que tem gente realmente prestando atenção nas resenhas! Realmente, dizer que ele pretende atingir o Nirvana foi uma forçada de barra, mas não é só de dinheiro que ele está atrás: ele sabe que não é páreo para o patriarca do clã adversário (e todos os seus capangas) e precisa aperfeiçoar-se em sua arte de matar. Como parte desse processo de aperfeiçoamento, e para que sua vingança seja cosmicamente justificável, ele precisa aprender a ser um com o Universo, aquelas coisas de oriental. Ele tem que ser um instrumento do destino - por isso ele aceita todos os trabalhos que lhe são passados e não faz julgamentos - embora boa parte das histórias seja justamente ele dobrando um pouco essa ideia. Tanto que no confronto final com o clã rival, ele vai só com o filho mesmo. E eu via a série também, passava no SBT lááááa no final dos anos 70, início dos 80, mas o título era Samurai alguma coisa. Também saiu em DVD no Brasil pelo menos um longa dos vários que foram feitos - eu vi o da assassina tatuada. Um abraço e aguardo mais comentários seus. Luiz.